"Uma visita inesperada", entrevista a Carla Fernandes
“A escrita de literatura infantil é uma aventura. É um exercício de regresso a um tempo em que não se tinha certezas, mas em que havia muita ousadia. Um tempo em que se transformava as incertezas em certeza de que não se sabe, mas que tem de se descobrir. E descobria-se e criavam-se mundos e possibilidades. A escrita de literatura infantil é um processo de sobrevivência.” (Carla Fernandes)
Carla, fico muito feliz. Cada vez que recebo um autor [africano] que lança uma obra para as crianças fico super feliz, porque, infelizmente, é dos conteúdos com maior carência no mercado literário. E sendo um conteúdo também direcionado para as nossas crianças africanas.
Nesta obra falamos de emoções… Porque é que esta obra é dedicada às crianças?
Eu sou mãe. E acho que isto é algo que acontece com muitas mães criativas. Tenho dois filhos, um de três anos e um de cinco.
Bem pequeninos.
São bem pequeninos, sim. Ou seja, eu passo muito tempo com eles, sou uma pessoa que é naturalmente criativa e gosto muito de conversar. Então eu converso muito com o meu filho mais velho. E uma das coisas que eu reparei foi que quando aparece algum tipo de inquietação do lado dele, na escola, se está muito sozinho, se não consegue arranjar amigos, isto ou aquilo, eu recorria muito aos livros da biblioteca para explicar. Porque há sempre aquela história do menino que se sente sozinho na escola, do menino que não sabe brincar e quer aprender como brincar. Como eu recorria muito a esses livros, comecei a pensar “porque não lançar o meu livro?”. Porque eu já tinha começado a escrever antes. Mas não tinha aquela segurança.
Ou seja, a ideia para o livro surgiu há algum tempo…
Ela já vem dos inícios, dos inícios da “motherhood”, da maternidade. Mas só que uma pessoa tem sempre aquela coisa de “será que sou capaz de fazer?”, “será que isto é mesmo um livro infantil?” Começou como uma história bonita, mas muito longa para esta faixa etária, que aqui é dos 4 aos 8 anos. E à medida que ia lendo livros infantis ao meu filho, comecei a aperceber-me de que podia alterar a história para fazer com que coubesse naquela faixa etária. E talvez até reservar algum material para outros livros, do material que foi excluído da primeira versão.
Para mim, era muito importante escrever um livro. Eu sou uma escritora negra, então, à partida as minhas personagens hão de ser como eu. Vou me dedicar a isso. Acho que isso também é importante. A questão da representatividade, tenho sentido ultimamente, pode ser trabalhada de várias formas. E eu optei por trabalhá-la através da perceção. Há uma escritora que eu gosto muito que morreu há poucos anos, ela falava muito nisso, sobre como é que nós percecionamos a realidade. Eu não quero impor uma realidade agressiva aos meus filhos, eu quero impor uma realidade múltipla às crianças negras, em geral, e com a qual todas as pessoas se possam identificar. Então a questão da representatividade neste livro tem muito a ver com o facto das crianças terem cabelos de texturas diferentes… são todas negras, mas são muito diferentes uma das outras e representam diferentes emoções.
Então tem muito a ver com isso. Dá a possibilidade de elas se verem enquanto sentimentos, e sentimentos bonitos, como a curiosidade e a liberdade. E não estarem sempre associadas a uma realidade de violência, que muitas vezes isso nos acontece. E quando nós falamos de representatividade, alguns livros infantis que temos… eu acho que existe uma intenção boa, mas eu não me identifico com essa abordagem em que nós sublinhamos as agressões. É preciso falar sobre elas, mas eu optei por trabalhar a representatividade através da perceção. Passar a ideia para eles de que o mundo para eles pode ser muito maior. E que é.
Os teus filhos já tiveram contacto com livro?
Sim, sim, sim.
Ele foi lançado recentemente, não é?
Exatamente.
Isto no passado dia…
Vinte e dois de outubro. Exatamente. E eu também, na semana anterior ao lançamento, tive uma experiência fantástica, porque eu ofereci o livro ao filho de uma das minhas melhores amigas, e o miúdo adorou o livro. Então levou para a escola dele e os colegas pediram que a tia Carla fosse lá ler o livro. Foi uma experiência linda.
Essa experiência foi aqui em Lisboa?
Sim, sim. Foi em Lisboa. Foi num Jardim de Infância aqui em Lisboa. Eu nunca tinha sentido uma coisa… Eu já tinha lido o livro para o meu filho. E fiquei muito orgulhosa, numa das vezes que li ele pediu “Mais uma vez, mais uma vez!” Então tive de ler três vezes. Eu disse “Yes!”. Mas na escola, nunca tinha tido acesso a um público, eles eram quinze crianças, tão vasto, que me recebeu com muito entusiasmo. E quando eu fui ler a história, eles já sabiam o que vinha a seguir. Eles estavam a contar a história ao mesmo tempo que eu estava a contar história. Então eu senti que a história foi abraçada pelo público que interessa. Claro que interessavam os meus amigos, porque eu mostrei a muitos adultos.
Mas este primeiro contacto com o público-alvo foi neste jardim de infância e, para mim, foi muito gratificante ver que as pessoas para quem eu escrevi o livro se sentiam representadas. E eram crianças de diferentes origens. Felizmente aquela turma era muito bonita. E chama-se turma do abraço também… Eu não sei se isto é um spoiler, mas eles quiseram ter o livro porque se chamam a turma do abraço. Depois vocês vão ler e perceber a relação. Então, foi uma experiência fantástica a de ter o livro nas mãos das crianças, na boca das crianças. Elas deram vida ao livro, na minha perspetiva, ao ter essa experiência.
Eu estou muito entusiasmada com este meu primeiro livro, que, de momento, é uma autopublicação, na esperança de expor este livro e talvez trabalhar com alguma editora no futuro. Porque a questão da autopublicação é boa, mas é muito difícil…
Difícil de aceder…
A questão da distribuição.
Claro.
Adoraria que este livro chegasse aos nossos países.
Eu ia-te perguntar isso. Se existe a vontade de levar esta obra para Angola.
Existe a vontade.
Tu contaste uma história muito bonita. Foste convidada a ir a um jardim de infância partilhar informação sobre o livro, mas chegaste e os miúdos já tinham tido contacto com ele. É uma realidade distante da nossa e eu acho que seria uma mais-valia se esta obra chegasse a Angola. E, por favor, que as editoras que estejam interessadas em levar a obra para Angola, a Carla está disponível para conversar.
Trazes-nos aqui também questões das emoções, Carla. No teu ponto de vista, só conhecendo as nossas emoções é que podemos nos conhecer a nós próprios também? Eu faço esta questão porque é uma obra infantojuvenil, mas acho que para nós adultos também é muito importante.
Sim, tem muito a ver com as emoções porque é uma questão que eu acho que é importante especialmente… para todos. Mas eu lidei muito, quando era criança… eu não sabia muito bem como expressar-me, porque havia… Eu acho que isto também tem muito a ver com pais africanos, porque “não podes ser muito alegre”, “não podes ser muito livre”
Não podes ter muitos amigos…
Tens de reprimir um bocado e não há aquele equilíbrio. E eu achei que isto esta uma temática muito importante para nós, em especial.
Aliás agora que tocas nesse assunto, principalmente para os meninos…
Sim, também.
“É o homem não chora”; “onde é que já se viu”; “ainda usas isso”; “ainda falas assim”.
Exatamente. Então se nós tivermos acesso a esse mudo das emoções, se nós conseguirmos nomear as emoções… Eu não quero trazer aqui spoilers, mas também vão ver que existe a questão de nomear. Nós temos de saber identificar a emoção e nomear a emoção e não ter vergonha delas. E abraçar todas as emoções porque todas elas têm lugar. E isso é muito importante para as crianças. Tu disseste uma coisa que é interessantíssima e é isso mesmo, se nós não soubermos lidar com as nossas emoções, nós também não conseguimos nos conhecer, saber quem somos. Mas também não conseguimos nos dar a conhecer. Não conseguimos interagir.
E depois não compreendemos as crianças.
É isso, sim. E este livro, para nós também é interessante. Também é uma mensagem para os mais velhos.
Por isso é que eu perguntei isso. Porque primeiro os mais velhos têm que ter contacto com a obra e depois passar aos seus filhos. Ou os próprios filhos podem ajudar os pais nesse sentido.
Sim, sim… é um diálogo.
Porque se formos a ver o que nós temos é uma sociedade completamente doente a nível de autoconhecimento.
É isso.
Nós não nos conhecemos, logo não conhecemos o outro.
Nós reprimimos muito as nossas emoções ou então exacerbamos porque temos que estar sempre felizes, temos que estar sempre nas redes sociais a mostrar aquele sorriso, a mostrar aquele momento fantástico, que eu também vou fazer com esta entrevista [risos]. Mas eu acho que estamos em momentos extremos. Nós precisamos de ter espaço para tudo que é emoção que nós tenhamos e que tem lugar na nossa vida e nos faz avançar de uma forma mais integra. A questão da integridade é mesmo isso, é nós termos espaço para diferentes aspetos da nossa vida, bons, maus, melhores, piores. Então isso é muito importante.
Eu quis começar com esta questão das emoções porque é muito pessoal e eu quero aprender também a passar essa mensagem aos meus filhos. Isto é um processo de aprendizagem. Não estou a dizer que percebi tudo. Mas é um processo de aprendizagem em que vou aprender com os meus filhos, vou aprender com os leitores, vou aprender com as diferentes apresentações que eu vier a fazer, porque as pessoas têm realmente muito, muito, muito a ensinar-nos.
E esta visita que a Carla aqui nos sugere Uma Visita Inesperada, quem é que faz essa visita? Não sei se é spoiler também…
É spoiler.
[risos] É não é? [risos]
Big spoiler [risos]. Sim, mas leiam o livro. E perguntem-se se realmente é uma visita que nós deveríamos considerar inesperada. Se nós devíamos esperá-la. Acho que é uma reflexão interessante.
O livro também é muito rico a nível visual. Portanto, gostava de perceber também quem é que tratou desta… ou melhor, o Alexandre.
O Alexandre Matos.
O Alexandre Matos é o grande ilustrador desta obra.
Sim.
Como é que foi a composição visual desta obra, Carla.
Foi muito interessante…
Ele sugeriu? Tu já sabias exatamente o que querias?
Eu tinha uma ideia muito especifica do que queria. Ele fez-me também me fez perguntas. Agradeço muito ao Alexandre Matos, porque ele é um ilustrador maravilhoso…
Está espetacular.
Foi muito interessante porque coloquei um anúncio e fiz uma série de entrevistas a diferentes ilustradores e ilustradoras e com o Alexandre Matos, nós clicámos logo. Clicámos em termos de personalidade, em termos de forma de colocar ou apresentar o nosso trabalho.
E houve ali muito respeito pelo que eu tinha idealizado. Falei da questão da representatividade de crianças negras, e ele próprio teve a sensibilidade de representar as crianças todas muito diferentes. Por exemplo, esta personagem que é a Curiosidade…
Tem tranças.
Ela tem tranças, mas tem os olhos mais rasgados. Não é aquela coisa típica que são todos com o nariz bolinha, com o cabelo… E ele teve esse cuidado de diversificar o nosso fenótipo. Então achei muito interessante e isso foi iniciativa dele. Ou seja, ali uma sensibilidade…
Temos aqui um afro também.
Sim, porque ele já trabalhava com diversidade, no Brasil, trabalhava com manuais escolares. Ou seja, eu olhei e pensei, esta é a pessoa perfeita para fazer. E eu dei-lhe o cenário. Eu dei-lhe o cenário geral. Ele perguntou como é que tu imaginas isto? Onde é que elas vivem. E eu disse em muito verde, tem jardim, tem flores, uma casa com vida. Cores. Ele perguntou-me como é que tu imaginas cores. E eu, cores quentes. Foi um diálogo…
E ele cria a imagem?
Sim, depois ele vai criando as imagens. Mas foi dessas conversas que fomos tendo, em que me fazia perguntas e eu ia dizendo o que achas que era importante que a história tivesse e o resultado foi este.
Isto é o que se chama aquela conversa entre profissionais.
Mas foi precisamente isso de que eu me apercebi. Porque, realmente entrevistei várias pessoas, e ele soube o que me perguntar e eu também soube o que lhe perguntar para que este trabalho casasse tão bem, a imagem e o próprio texto.
Realmente o livro está muito rico, como eu disse, quer a nível visual quer a nível de texto. Carla, onde é que as pessoas podem adquirir a obra para quem estiver interessado. Pretendes fazer outras apresentações em Lisboa?
Sim, sim. Eu vou estar no dia… Eu não sei se posso já dizer isto, porque não é público, estamos ainda a conversar. Mas vocês podem comprar o livro, na livraria Baobá, na Distopia, na Insurgentes, na Tigre de Papel, que foi a primeira a receber o livro. Na Cova da Moura, nós temos na Dentu Zona, [vamos ter] no espaço Mbongi; temos a Literaturas Afrikanas que faz diferentes feiras, que costuma vender o livro; o Mercado Afrolink também está a vender o livro; a Bantumen, na Bantuloja, está a vender o livro. Então há várias hipóteses, mas sigam-nos no Instagram, o livro já tem uma página que é @umavisitainesperada, podem seguir o percurso do livro lá. Eu também vou começar a fazer apresentações, estou aberta a convites para fazer apresentações em diferentes espaços. E é isso. Espero que gostem do livro e que comprem e que sigam a página e que façam com que este livro chegue mais longe, porque eu acho que vai ser uma boa viagem conjunta.
Também desejo muito que o livro chegue às nossas crianças em África. Nossas crianças, digo, crianças e adultos…
Sim, crianças dos oito aos oitenta. Crianças de todas as idades como tenho dito.
É verdade. Faz toda a diferença. Carla, profissionalmente és tradutora, para ti, qual a diferença entre escreveres um livro de raíz e traduzires uma obra já concebida?
Isso é uma boa pergunta. Qual é a diferença… Porque eu acho que quando nós traduzimos…
Há algumas diferenças… Se o livro de raíz for bom, é capaz de ser uma experiência semelhante. Eu quando fiz a tradução dos poemas da Amanda Gorman, do poemário, foi uma experiência quase semelhante à criação de um livro de raíz. Porque eram textos aos quais eu me aproximava muito no inicio… o trabalho de tradução é isso, um exercício de proximidade e afastamento. Então havia aquela fase inicial de aproximação, de intoxicação quase, ficava dentro do texto…
Não é só traduzir palavras…
Sim, ficavas dentro do texto e depois saías e começavas a escrever. Que é a dita tradução, mas é uma reescrita. E se tu gostas muito das obras é quase como se fosse teu. Esta experiência, com este livro em particular, foi uma experiência mais cuidada, mais… até às vezes com um bocadinho mais de receio, porque escrever, por coisas para fora exige muita coragem também. Por isso, há sempre aquele momento anterior em que tens medo. Será que ponho, não ponho.
Agora sou eu na frente. Primeira pessoa.
Sim, sim. Sou eu e é o meu íntimo.
Já não estou a traduzir.
É isso, então já te dá um receio maior, por isso é que é tão bom quando é abraçado. Então vale a pena sair daquela tua zona de conforto, espreitar um bocadinho, funciona?
Então já te sentes abraçado e já te dá uma segurança diferente. É um momento de fragilidade, na verdade, quando tu trazes essas coisas para a frente, mas vale a pena. Então são processos muito semelhantes, com implicações um pouco diferentes. Eu lembro-me quando dizia sobre o que é tradução: tradução é tornar realidades inteligíveis. Então é isso também que acontece aqui é tentar tornar a possibilidades de entender as emoções para as crianças e adultos também. Criar reflexões sobre o que é que poderá ser isto. Tenho a certeza de que quando os pais lerem isto com os filhos, vão ter a possibilidade de pensar em diferentes momentos em que eles também não lidaram bem com as emoções deles e gostariam de melhorar. Acho que vai ser uma troca bem rica.
Carla, quanto ao projeto Afrolis, próximos passos? O que é que podemos aguardar?
Nós vamos fazer uma viragem. Recentemente recebemos um financiamento da Google. E eu também queria fazer alguma coisa de diferente já há algum tempo. E vamos nos direcionar mais, com esse, financiamento, um bocadinho mais para a mulher. Mas não vamos deixar de fazer o que nós fazíamos anteriormente. Eu não quero dar muitos detalhes agora, porque ainda não implementamos esta nova fase. Mas, sim a Afrolis vai voltar com outras abordagens às mesmas temáticas. Interessa, continua a interessar nós refletirmos sobre a experiência negra e de uma forma cada vez mais consciente. Não há ali um fechamento de nós para nós, mas a consciência de que nós estamos aqui para nós e para os outros. Essa é a nossa esperança que consigamos passar a esta nova fase e consolidar o trabalho de praticamente de oito anos que foi feito. E agora é tentar envolver cada vez mais pessoas e continuar esse trabalho.
Carla foi um prazer enorme conversar consigo. Muitos parabéns por esta obra. Aguardo tê-la mais vezes, obviamente, porque quem lança um primeiro livro é porta aberta para outras obras. Tenho a certeza absoluta…
Há outros que estão à espera.
Entrevista do Programa Bem-Vindos, RTP África, conduzida por Nádia Silva.
Instagram: https://www.instagram.com/stories/umavisitainesperada/2957809767621061535/