A profunda vinculação com a experiência humana das literaturas africanas

Entrevista à professora Simone Schimidt, académica brasileira, que tem desempenhado ao longo da sua carreira um papel fundamental para os estudos de género, nomeadamente na REF (Revista Estudos Feministas). É bastante profícua a sua produção científica no âmbito das teorias feministas e pós-coloniais, das quais destaco: “Como e por que somos feministas”, (Revista Estudos Feministas, 2004), “Uma casa chamada exílio” (Revista Gragoatá, 2005), “Navegando no Atlântico Pardo ou a ‘lusofonia’ reinventada” (Revista Crítica Cultural, 2006), “Niketche, uma dança para muitos corpos” (Susana B. Funck e Luzinete S. Minella (orgs.), Saberes e Fazeres de Gênero: entre o local e o global. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006), mais recentemente “Desmundo, desmando, desencanto” (Portuguese Cultural Studies, 2007), “Oropa, França e Bahia, ou quando as madames viajam” (Revista Uniletras, 2007) e “De volta pra casa ou o caminho sem volta em duas narrativa do Brasil” (Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 2008). Feminista assumida, desde cedo revelou o seu fascínio pelo triângulo e trânsitos entre África-Portugal-Brasil que nos aproximam. Deles falaremos oportunamente, certo que os laços académicos foram sendo estreitados no curso da sua formação académica de que salientaria o Pós-doutoramento feito na Universidade Nova de Lisboa.

 

Em que está a trabalhar?

Estou trabalhando com as representações de gênero e raça nas literaturas africanas de língua portuguesa, particularmente nas literaturas angolana, moçambicana e caboverdiana. Meu enfoque, em primeiro lugar, incide sobre os modos de construção, nessas literaturas, de um pensamento acerca do problemático conceito de raça, buscando compreender de que modo os discursos e percepções sobre essa questão atuaram na formação de um pensamento anticolonial, e também como ele se manifesta hoje, em sociedades pós-coloniais que (re)elaboram  constantemente suas respostas aos problemas de identidade (nacional, cultural, subjetiva, etc.). Num segundo momento, interessa-me particularmente investigar como as mulheres, como sujeitos e objetos de representação, tomaram parte desse debate ao qual chamo de ‘elaboração de um discurso sobre as questões raciais’ nos países africanos. Nesse sentido, interessa-me a intersecção das  categorias de gênero e raça, buscando examinar os modos como se traduziram tais categorias, em termos de experiência representada na literatura, em textos de autoria feminina e/ou em textos onde as relações de gênero e raça têm relevância na economia narrativa.

Além dessa pesquisa que venho desenvolvendo, dedico-me, no momento, a ministrar, juntamente com a supervisora de meu pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense, Professora Laura Padilha, um curso sobre memórias de guerras por vozes femininas, que dá continuidade a um trabalho que há tempo vem sendo desenvolvido por um grupo de pesquisadores (dentre os quais se inclui a professora Laura) sobre o motivo da guerra nas literaturas africanas. Este curso aborda o tema da guerra no âmbito do colonialismo português e de seus desdobramentos históricos, a partir do ponto de vista das mulheres. Através da leitura de textos portugueses e africanos de autoria feminina, propomos um jogo de espelhamentos entre estas diferentes representações, discutindo temas como memória, violência e  trauma.

Como avalia as literaturas africanas neste momento?

As literaturas africanas vêm conquistando atenção e prestígio crescentes no sistema literário de língua portuguesa. Até muito recentemente, apenas os especialistas conheciam e admiravam a produção literária de países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. Hoje essas literaturas começam a ganhar mais relevância, a se difundir para fora do círculo restrito da academia, e a conquistar um público leitor efetivo. O que mais cativa esse novo público, creio, é a vitalidade, a força, a profunda vinculação com a experiência humana que essas literaturas trazem para seus leitores. Quando apresento os autores africanos aos meus alunos no Brasil, eles costumam se emocionar, e afirmam ter encontrado uma literatura capaz de lhes falar mais de perto, estabelecendo importantes laços de identidade com sua vivência pessoal.  E a isso se acrescenta um apurado trabalho de criação na linguagem, que instiga o leitor mais exigente.

Todo esse processo de ampliação do público leitor das literaturas africanas no universo da língua portuguesa produz um efeito muito positivo, que é o de dar a conhecer aos seus contemporâneos, dos mais diversos lugares, um pouco das culturas dos países africanos, o registro literário de suas vivências e de sua experiência histórica, além, é claro, de oferecer aos leitores a fruição de textos de grande qualidade estética.

Qual o lugar da literatura angolana no âmbito das literaturas produzidas nos países africanos onde se fala a língua portuguesa?

Um lugar de destaque, sem dúvida. Desde os tempos da luta de libertação (tomando este importante momento da história angolana como um marco significativo no impulso à produção literária), autores da importância como Luandino Vieira, Pepetela, Manuel Rui, e tantos outros, chamaram a atenção de leitores de vários países para o drama então vivido pelos angolanos, através de uma literatura pujante e de altíssima qualidade, que em muito ultrapassava o mero relato da experiência política, embora também fossem, é evidente, relatos movidos pela vontade política de mudança e de liberdade. Mas como disse, ultrapassavam a contingência do momento  vivido, e serviram como uma espécie de modelo para as demais literaturas africanas; é comum vermos, por exemplo, o relato de um  autor como Mia Couto, que declara a influência que Luandino Vieira teve sobre sua escrita literária. Hoje, num outro momento histórico, encontramos em autores mais recentes uma literatura que é sem dúvida herdeira dessa tradição de bons narradores e poetas angolanos, tradição essa que remonta, como sabemos, a períodos muito anteriores  à independência.

Gostaríamos, que estabelecesse uma relação entre as literaturas africanas produzidas em língua portuguesa e as outras veiculadas em francês e inglês.

É sabido que as literaturas africanas de línguas francesa e inglesa possuem uma tradição mais consolidada, se comparadas às literaturas de língua portuguesa, em termos de produção e recepção de seus textos, e possuem uma quantidade muito grande de autores, muitos deles consagrados junto ao público europeu e norte-americano. Contudo, é difícil estabelecer a comparação que me pede. Para tanto, seria preciso um domínio do corpus literário de cada uma dessas literaturas que eu, francamente, não possuo. Meu território, vamos dizer assim, tem sido o da língua portuguesa, e é dentro dele que me sinto razoavelmente confortável para emitir algumas opiniões, com base nas  leituras e reflexões que tenho feito ao longo desses anos em  que venho lecionando e pesquisando sobre essas literaturas.

Podemos falar de  angolanidade na nossa literatura? Em que medida se pode falar desta matriz e o que é isto de angolanidade?

Respondo às duas questões em conjunto. Creio que a reivindicação de uma ‘angolanidade’ à literatura angolana esteve muito ligada ao programa político de independência nacional. Não se pode discutir esse tema sem vinculá-lo estreitamente ao contexto histórico pós-independência, quando a construção de uma identidade nacional mobilizava todos os sujeitos da nação, especialmente os escritores, que haviam tomado parte ativa na luta anticolonial e ocupavam posições de destaque no novo governo. Hoje, contudo, percebo um certo anacronismo nesta discussão, já que o momento histórico é outro. Vivemos, em termos gerais, um momento de blocos internacionais, de redes transnacionais, onde se indagam identidades, pertenças e os muitos deslocamentos que a conjuntura globalizada nos impõe. Além disso, considero que a  ênfase na afirmação de uma identidade nacional pode ser bastante nefasta para uma literatura; há muito mais para se compreender nas admiráveis experiências humanas registradas na literatura angolana do que se elas são “autenticamente” angolanas ou não. Embora a idéia de nação exerça ainda um forte apelo sobre todos nós, e em grande parte de nossas vidas precisamos nos sentir ‘pertencendo’ a um lugar,  a uma comunidade, a uma nação, creio que, em alguns  momentos da cultura de um país, o  nacionalismo pode ser bastante problemático. O grande pensador  palestino Edward Said identificava no imperialismo europeu e nos nacionalismos do então chamado ‘terceiro mundo’, duas forças conservadoras que se alimentavam reciprocamente.

 Quais são os escritores angolanos com projeção internacional e por quê?

Há basicamente dois tipos de reconhecimento internacional. O primeiro deles é de natureza acadêmica, que atua na formação de leitores, na consolidação de uma crítica literária, na definição do que seria, digamos, o corpus de autores angolanos a conhecer, ler e estudar. No âmbito deste tipo de reconhecimento, encontram-se escritores angolanos que têm sido fortemente prestigiados por círculos cada vez maiores de leitores, como é o caso, por exemplo, de Luandino Vieira, Pepetela, Manuel Rui, Ana Paula Tavares, Ruy Duarte de Carvalho. Outra modalidade de projeção internacional se deve mais à atuação do mercado editorial, com suas estratégias de grande alcance midiático , que ampliam o público leitor, alargando suas fronteiras. É o caso de autores mais recentes, que têm se beneficiado grandemente dessas formas de contato com o público, movendo-se com desenvoltura na mídia e em outras formas de diálogo direto com os leitores, tais como debates, eventos literários, etc. São autores que vêm conquistando um público leitor mais amplo, e não necessariamente especializado. Dentre esses autores, eu destacaria, por exemplo, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, João Melo. É importante destacar que não há nesta divisão ‘didática’ que traço nenhum julgamento de valor: o fato de um autor ser mais divulgado pelo mercado editorial, ou de outro ser mais restrito ao ambiente acadêmico, não implica maior ou menor  qualidade do trabalho artístico de um ou de outro. Não sou, absolutamente, uma purista neste aspecto. Acredito firmemente que há excelentes textos literários com boa circulação editorial e divulgação na mídia, assim como pode ocorrer a ‘canonização’, via academia e a crítica literária especializada, de textos e autores nem sempre relevantes. Cabe ainda destacar que a divisão que apontei sinaliza apenas uma tendência, mas não se trata de uma divisão estanque. Na verdade, pelo menos no Brasil, hoje, se verifica uma forte tendência a ‘misturar’ esses dois lados da divulgação dos autores; felizmente (pois quem ganha com isso sem dúvida é o leitor), os escritores consagrados pela academia circulam cada vez mais no meio editorial e na mídia, assim como os autores que já surgiram sob os auspícios das estratégias mercadológicas de divulgação  de suas obras, têm sido lidos de forma crescente pela academia, o que considero extremamente saudável do ponto de vista cultural.

Alguns estudiosos das literaturas africanas dizem que a literatura angolana ocupa um espaço privilegiado no conjunto das outras literaturas dos PALOP concorda?

Sim, acredito que a literatura angolana ocupa um lugar de bastante destaque dentre as literaturas de língua portuguesa. Isso se deve, ao meu ver, a uma tradição literária  que já se pode considerar bastante implantada em Angola, e também a uma quantidade expressiva de bons autores, que circulam internacionalmente. Eu não ousaria fazer comparações do tipo “este país tem muito maior destaque em sua literatura do que aquele”, mas acredito, sim, no caráter referencial que a literatura angolana assume contemporaneamente perante os demais países de língua portuguesa.

Em seu entender, como é que é possível ocupar esse lugar, quando há uma critica literária angolana bastante incipiente?

Trata-se de uma literatura muito pródiga em autores, e isso faz com que dialogue vivamente com a crítica de outros países, como é o caso do Brasil. As redes de contato e as constantes trocas culturais que se dão entre os escritores angolanos e os críticos e estudiosos brasileiros são, como se sabe, intensas e muito ricas. Além disso, a crítica literária voltada para as literaturas africanas de língua portuguesa não tem cessado de crescer em muitos outros países, o que permite que o diálogo da literatura angolana com seus estudiosos tenha um caráter transnacional muito interessante.

Para terminar, gostaríamos de ouvir que conselho daria aos estudantes angolanos que pretendem aderir à crítica e aos estudos das literaturas africanas?

Que se dediquem a ler seus autores com atenção e respeito por seu admirável trabalho. Que desfrutem do privilégio de possuírem uma literatura de grande qualidade, mantendo, contudo, um diálogo permanente com aquilo que está sendo produzido e discutido fora de seu país. Este parece ser um bom conselho: que não percam de vista os valores e a riqueza daquilo que pertence ao seu país, à sua cultura, mas que também não se restrinjam a isso, ou seja, que não se deixem jamais enclausurar dentro de sua própria experiência cultural e histórica.

 

por Cláudio Fortuna
A ler | 17 Janeiro 2012 | literatura africana, literatura angolana, palop