Esta guerra não é tua
O desconhecido entra na sala onde eu já me encontro sentado à mesa, um cubículo triangular sem janelas num centro comercial da Costa da Caparica. Aqui se vão reunir vários veteranos da guerra do Ultramar, amigos de um veterano meu conhecido, que hoje faz o papel de anfitrião. Chama-se Marco Mané, é o gerente deste centro comercial, antigo comando africano da Guiné-Bissau. É assim que venho fazendo há vários anos. Falo com um veterano, que por sua vez conhece outros, que por sua vez conhecem outros. Procuro novas histórias de guerra, novos pormenores, procuro vozes que se juntem ao coro que tenho na cabeça, para compor uma sinfonia coral, a sinfonia coral da nossa guerra africana. Para entender o que puder ser entendido e guardar o resto, que entenderei mais tarde, quando uma nova voz vier iluminar misteriosamente as sombras de uma voz anterior.
O desconhecido entra, o Marco entra com ele e diz: «Está aqui o primeiro camarada», e torna a sair. A linguagem corporal do recém-chegado é de relutância, de desconfiança. Diz que se chama Adriano Oliveira e acrescenta:
— Eu nem sei bem o que é que o senhor pretende…
E senta-se na cadeira em frente à minha, encostando-se à parede e oferecendo-me o perfil.
— É que o Marco não me explicou bem.
Dou início ao preâmbulo explicativo que preparei para estas ocasiões. Sou filho de um veterano do Ultramar, que morreu em 2013. Falei com muitos camaradas da unidade do meu pai depois de ele morrer. A memória viva da guerra do Ultramar vai perder-se, e quero conservá-la, na medida das minhas modestas possibilidades. Quero escrever sobre o assunto, embora não vá escrever as memórias dos outros, mas sim as minhas memórias das memórias dos outros.
Ele não me olha, fita a parede à sua frente, onde está encostado um painel já antigo a publicitar um filme de super-heróis. A frieza dele desconcerta-me, acabo a dizer, um pouco abruptamente, que já publiquei romances e ainda textos em jornais e noutros suportes. Calo-me. Adriano volta-se finalmente para mim e diz-me:
— É pena o Marco não me ter explicado isso, senão eu nem sequer tinha vindo.
A linguagem corporal dele torna-se mais fria, como alguém em presença de um mendigo importuno que pede esmola ou de um agente da polícia que lhe pede contas.
— Dizem que nós fizemos a guerra colonial, mas eu não fiz guerra nenhuma. Fui obrigado a ir para a guerra, o que é muito diferente, enquanto tantos fugiram para o estrangeiro, todos contentes.
Abstenho-me de contrapor, de rebater. O tom de voz em crescendo dá a entender que qualquer faúlha poderá atear um incêndio.
— Quando falo da guerra colonial, fico logo com vontade de partir tudo, fique sabendo. Estive na Guiné, participei na Operação Mar Verde, com o Alpoim Calvão, vi muita coisa. E olhe que não admito juízos de valor de quem não fez a guerra, ouviu?
Faz uma pausa, como que a desafiar-me a dizer seja o que for. Vem-me à cabeça uma entrevista que vi há pouco tempo de Lissette Orozco, realizadora de El Pacto de Adriana, o filme magnífico em que ela escalpeliza o seu processo de descoberta do passado oculto da tia, Adriana Rivas, agente da dina, a polícia política de Pinochet. As palavras de Lissette Orozco que me afloram ao espírito são: «Não faço juízos morais sobre a minha tia de dezanove anos, que entrou para a dina e se tornou torturadora. Mas faço juízos morais sobre a minha tia de sessenta e cinco anos, que continua a dizer que aqueles foram os melhores anos da sua vida.» Penso, mas não o digo em voz alta, que não me interessa compilar um almanaque de narrativas neutras da guerra colonial. Não há narrativas neutras. A tal luz que procuro nestes testemunhos surge nos momentos em que os veteranos se posicionam em termos morais, fazendo juízos de valor, explícitos ou implícitos, acerca da guerra em que participaram e dos actos que ali se praticaram. Uma guerra que foi o prolongamento e o corolário natural da nossa empresa colonial, da qual eles foram actores mais ou menos passivos. Não me sinto no direito de os julgar enquanto jovens de vinte e poucos anos, obrigados a embarcar para a guerra, como o meu pai. Mas não posso deixar de julgar as palavras que eles usam para falarem hoje da guerra e das suas misérias, cinquenta anos depois. Adriano disse-me que não admitia juízos de valor, mas abster-me de juízos de valor equivaleria a abdicar da minha humanidade. Cada geração, penso, mais do que o direito, tem a obrigação de tecer juízos morais sobre o discurso que as gerações precedentes produzem sobre os seus actos.
O que procuro nestes encontros com veteranos do Ultramar é algo que não sou capaz de traduzir numa fórmula simples e telegráfica. Há entre estes veteranos um sentido de comunidade fortíssimo, uma comunhão quase familiar, quase tribal, que em certos momentos me parece incompatível com um sentido de comunidade mais vasto. É uma comunhão que tende a excluir-me, a mim e a todos os que não partilharam a mesma experiência. O que busco nestas conversas são os momentos, semelhantes a epifanias, em que os veteranos exprimem a pertença a uma comunidade humana mais vasta, mais abrangente, necessariamente organizada em torno de valores morais. Uma comunidade que inclua, em pé de igualdade, os homens contra quem eles combateram, mais os filhos destes homens, o nós e o eles.
— Portanto, eu estou no ir — remata Adriano. — Mas olhe que não é nada contra si.
Levanta-se e sai. Já assisti várias vezes a situações destas. Há um veterano zangado, que barafusta, mas que diz que não é nada contra mim. Não é nada contra a pessoa que está fisicamente ali presente. O que ele recusa, parece-me, é a palavra de um não-veterano acerca da guerra colonial. Porque toda a palavra é, em certa medida, portadora de um juízo moral, e o veterano pressente-o difusamente. Não há palavras neutras.
Fico sem perceber de que é que ele estava à espera, com quem é que ele julgava vir encontrar-se. Uma frase que deixou em suspenso dá-me a entender que talvez me tomasse por alguém encarregado de recolher dados para compilar uma qualquer base de dados dos veteranos do Ultramar, com vista a proporcionar-lhes o acesso a cuidados de saúde.
Entram os outros veteranos que o Marco convidou, um por um. Apresentam-se. Guiné, Angola. Conversamos durante três horas. Um deles, veterano da Guiné, fala a certa altura da cadeira eléctrica que havia em Bula para torturar os prisioneiros do paigc.
Novembro de 2020
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