Paulo Faria: a luta continua (cinco excertos)

Em Gente Acenando para Alguém que Foge, o seu segundo romance, Paulo Faria aborda novamente a questão da transmissão das memórias da guerra colonial, na esteira do trilho aberto no seu primeiro romance Estranha Guerra de Uso Comum (Lisboa, Ítaca, 2016). Numa perspectiva mais ficcional do que no livro de estreia, esta segunda obra de Paulo Faria constrói-se à volta de uma viagem do narrador a Moçambique em busca de uma criança que o seu pai tinha adoptado na altura da guerra, e que terá abandonado aquando do regresso a Lisboa. A este retorno simbólico aos lugares africanos em que o pai combateu, juntam-se outras narrativas que dizem respeito à infância, à vida amorosa e – elemento muito significativo – à própria condição de pai de Carlos, cujas filhas irão também receber, afinal de contas, os farrapos do «apocalipse em lume brando», como é nomeada a memória da guerra do Ultramar.
capa do livro | 2020 | cortesia do autorcapa do livro | 2020 | cortesia do autorNos cinco excertos aqui reproduzidos, Carlos assume abertamente a sua condição de filho do Império português, de cujas guerras se sente não apenas o herdeiro, mas sobretudo o protagonista de um novo conflito. Um conflito mais íntimo que, desta vez, se trava no terreno da escrita, fazendo apelo a uma grande quantidade de metáforas bélicas. É pela ficção que o filho, ciente usurpador do passado do pai, empunha as armas para se reapropriar das memórias da guerra, no duplo intuito de o libertar e de se libertar a si próprio. «Quem vai à procura da guerra tem já uma guerra dentro de si», «não fui eu quem começou a fazer sangue, mas agora não sou capaz de parar», diz o narrador, anunciando quiçá os futuros combates de Paulo Faria.

Felipe Cammaert 

 


PAULO FARIA, GENTE ACENANDO PARA ALGUÉM QUE FOGE

1
Esta terra não me explica nada. É um lugar onde um véu acrescido de distância me isola dos outros. Um lugar onde uma violência latente parece extremar posições. Um lugar onde se reencenam velhos conflitos que o tempo deixou em carne viva. Um lugar onde não há paz. Aqui, à primeira vista, é tudo à bruta, há vítimas e carrascos. Na verdade, é mais subtil. Em cada instante é preciso decidir se queremos ser vítimas ou carrascos. Podemos ser vítimas agora e carrascos daqui a cinco minutos ou o contrário. Isabela Figueiredo diz que há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Diz que há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. E diz que entre as vítimas há carrascos. O meu pai veio para a guerra à força, mas veio. A guerra deu-lhe cabo da vida, mas ele fê-la. Detestava a tropa, mas deitou-se com as pretas. Tinha pena desta gente, mas foi-se embora e nunca mais cá voltou. Adoptou o Artur no mato, mas, na hora de partir, deixou-o para trás e nunca, nunca me falou dele. Achava-se uma vítima da guerra, da tropa. As histórias da guerra que ele contava, mais do que uma narração, eram uma longa justificação. Não vale a pena dizer a esta gente que sou filho de um carrasco-vítima. Aqui, aos olhos destas pessoas, o meu pai foi apenas carrasco. O Artur é uma vítima, sobre isso não há dúvida. Por isso é que vim à procura dele. Talvez não o queira encontrar verdadeiramente. Talvez tema que entretanto ele se tenha transformado em carrasco. E eu? Sou vítima, claro. E carrasco também. Esta terra, aparentemente tão disjuntiva, é afinal o lugar da mais completa diluição, o lugar onde salta à vista a sobreposição dos papéis e dos corpos, vítima e carrasco, inocente e culpado. Julguei vir a Moçambique em busca do tempo em que o meu pai, carrasco-vítima, podia ainda dizer convictamente que era apenas vítima. Talvez tenha vindo, afinal, curar-me desta minha ânsia de compartimentação. E deixar aqui os meus mortos, se for capaz. (p. 34-35)

2
Os camaradas de armas do meu pai não eram o outro. Com eles construí a única cumplicidade que sei estabelecer com as outras pessoas, uma empatia distante, desossada e efémera, um afecto a termo certo, uma relação em que eu sou um filho dilecto que emigrou e vive muito longe e eles são meus pais por algumas horas, laços forjados em torno de uma guerra que não travei, mas de que aos poucos me fui fazendo veterano por afinidade. A guerra do Ultramar funcionou como a matriz ideal para esta minha pertença às coisas em segunda mão: um feito de glória duvidosa, historicamente anacrónico no próprio momento em que teve lugar, de resultado controverso — uma derrota por exaustão, mas sem derrota militar no terreno —, repudiado ou esquecido por quem nele não participou, manchado por crimes de sangue e de luxúria, cadinho de uma irmandade não propriamente secreta, mas regida por uma linguagem e por códigos próprios. Uma saga melancólica e obscura que o meu pai remoía solitariamente, recusando-se a participar nos convívios do batalhão, não mantendo contacto com nenhum dos camaradas de armas. Um apocalipse em lume brando de cuja crónica me fiz herdeiro. Em suma, um lugar onde eu posso estar dentro e fora ao mesmo tempo, ser protagonista e observador, ceder aos outros a boca de cena sem por isso desaparecer do palco. Um lugar onde cabe sempre aos outros a primeira palavra. Um lugar onde, no fim de contas, saboreei a fundo o gosto de ser e não ser ao mesmo tempo. E, como guerra que foi, um lugar fascinante e misterioso, repelente e confortável, um lugar de prepotência e de candura malsã, de amor, de loucura desenfreada, de brutalidade. Como a minha infância, afinal. E a verdade é que me senti desejado pelos antigos combatentes, sabes, senti que eles me acolhiam com o júbilo de velhos artesãos, correeiros ou embutidores ou amoladores de facas, ao verem apresentar-se um novo aprendiz cheio de empenho, talvez o último a abraçar aquele ofício em extinção, talvez alguém capaz de protelar por mais alguns anos o eclipse daqueles segredos, o apagar das legendas daquelas imagens. (p. 88-89)

3
Só falta explicar-te a razão mais importante de todas, Amália, o motivo que realmente me impediu de pregar olho, a razão daquela insónia eufórica. Foi a ânsia de superar o meu pai. Vi ali, naquele projecto, uma possibilidade, caída do céu aos trambolhões, de ombrear com ele, de lhe repetir os gestos, apurando-os, de lhe roubar a primazia de uma vez por todas. Tenho fotografias em que ele está a vacinar magotes de negros, filas e filas de crianças e mulheres, uma chusma de gente a perder de vista. Sei de cor quantas pessoas ele vacinou num só dia no Chicôco, em Fevereiro de 1968, porque ele teve o cuidado de o anotar no diário: trezentas e uma. Sete homens, setenta mulheres e duzentas e vinte e quatro crianças. Trezentas e uma pessoas. Era preciso fazer uma coisa tão extenuante como esta, que se pudesse traduzir em números, mensurável, palpável. «Nem penses em fraquejar», disse a mim próprio, à luz do frigorífico aberto. Depois de, nas páginas do meu romance, ter domesticado o pai morto, chegara o momento de o deixar para trás no mundo dos vivos. (p. 128-129)

4
Escrevi o meu romance sobre a guerra para desapossar o meu pai do exclusivo da narrativa bélica, para o destronar, para escrever o livro que ele próprio não foi capaz de escrever. Para reescrever as histórias de guerra dele, para as extirpar da mentira posterior. Para o enobrecer. Fi-lo à custa dos outros veteranos, que viram as suas narrativas reformuladas, subordinadas à infelicidade do meu pai, por mim usurpada. Escrevi o meu romance para, com o engodo da guerra colonial, contar aos veteranos uma outra guerra, a minha. Quem vai à procura da guerra tem já uma guerra dentro de si. Michael Herr escreveu: «Creio que a guerra do Vietname foi o que tivemos em vez de uma infância feliz.» (p. 156)

5
Telefonei ao furriel Gamito para lhe dizer que encontrara no almoço do batalhão o quarto alferes da companhia 1271, o Cristóvão Rosado, que até àquele ano nunca participara nestes convívios e de quem ninguém tinha o contacto. Ele disse-me: «Ah, sim? Não me diga.» Perguntei-lhe pelo meu romance, se estava a gostar. Era esse, afinal, o fito do meu telefonema. Desejava vê-lo vestir a pele da personagem a que eu dera o seu nome, queria-o espantado mas feliz como alguém que se vê ao espelho pela primeira vez depois de uma operação plástica bem-sucedida. Em vez disso, fui acolhido por um silêncio pesado. Como quem faz um esforço, ele disse-me que começara a ler o livro e que depois parara. Que agora era a mulher que estava a ler e que ela lhe ia contando certas coisas. Havia na voz dele uma nota agreste, de incómodo.
— Parece-me que o senhor fez ali certas confusões. A minha mulher disse-me que escreveu lá que, no Vera Cruz, na viagem de regresso do Ultramar, eu quis comprar o uniforme do Artur ao capitão da companhia. E que ele não mo quis vender. Como é que isso pode ser, se fui eu que trouxe comigo o uniforme do Artur? Tenho-o aqui em casa, fui eu quem lho mostrou, o senhor lembra-se bem.
Senti o meu edifício a abrir rachas, a desmoronar-se. Tentei limitar os estragos, disse-lhe que, no meu romance, essa cena se passa entre o Gamito e o meu pai, não entre o Gamito e o capitão, e que o Gamito não tenta comprar o uniforme do miúdo, tenta trocá-lo por outra coisa. […] Disse-lhe:
— Escrevi um romance. Sempre disse que ia escrever um romance.
— Pois — retorquiu ele —, mas o que interessa é o que fica para a história. Dá-me a impressão que o senhor não contou as coisas tal como elas aconteceram.
Pedi-lhe que lesse o romance. Como se o mal-entendido resultasse do facto de ele ter ouvido a história em segunda mão, distorcida pelo relato da mulher.
— Leia, vai ver que vai gostar. Vai ver que vai gostar da sua personagem.
Ele repetiu-me várias vezes:
— Atenção, eu não quero protagonismo. Não é isso que me move.
Voltou à carga:
— E o senhor diz lá que foi o seu pai que me convenceu a não desertar, a não me passar para o inimigo? Mas se eu nunca falei com o seu pai sobre isso, como é que pode ser? O senhor foi a primeira pessoa com quem eu falei sobre esse assunto, fique sabendo.
— O meu método foi só um — disse-lhe eu, já encurralado. — Não escrevi nada que não pudesse ter acontecido. Não escrevi nada que não tivesse um laço com a realidade.
Esta explicação nem sequer a mim próprio convenceu. Ele deve ter percebido o meu desamparo, porque suavizou o tom de voz. Ainda em tom contrariado, disse que ia ler o livro e, por fim, convidou-me para almoçar de novo em sua casa no tom de quem faz as pazes, relutante, depois de não deixar pedra sobre pedra numa discussão em família.
— Conto consigo em minha casa antes do Natal.
Despedi-me, desliguei. Fui à janela, pus-me a pensar no meu romance. Não me arrependo de nada do que escrevi. Só tenho pena que o livro não tenha cumprido a sua função. Pensei que me apaziguasse, mas a guerra não pára, não abranda, não dá tréguas. Só me resta continuar a contar a história, fazer novas vítimas, reabrir velhas feridas, impedir a cicatrização. Não fui eu quem começou a fazer sangue, mas agora não sou capaz de parar. Não fui eu quem ateou o fogo, estou encurralado a um canto. Ateio um contrafogo, sento-me e sufoco. A luta continua. (p. 165-167).

 

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por Paulo Faria
Mukanda | 24 Abril 2020 | guerra colonial, Memoirs, Pós-memória