Fazer nascer uma nação
O escritor Manuel Rui chegou a Portugal já a delegação da Casa dos Estudantes do Império de Coimbra tinha sido encerrada pela PIDE, mas a semente do movimento nacionalista crescia sem controlo entre os estudantes vindos das colónias.
«Saímos daqui sem saber o que era Angola e a história dos grandes lutadores contra a ocupação. Na escola estudámos a História de Portugal, decorávamos o hino nacional, conhecíamos as cores da bandeira nacional portuguesa, e era isto que nós sabíamos», relembra o escritor Manuel Rui sobre os tempos em que saiu de Nova Lisboa, hoje Huambo, para estudar Direito na Metrópole. Após a proclamação da independência, em 1975, viria a ser ele, aos 34 anos, o autor da letra do hino de Angola e Ministro da Informação do governo de transição do novo país.
Direccionado para a Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, Manuel Rui acabou por ir para Coimbra na companhia de António Faria (cineasta, autor do filme A Chafarica). Uma escolha deles: «Tínhamos lá muita gente nossa, havia a República e toda aquela mística da cidade dos estudantes», relembra na sua casa na Maianga, em Luanda.
Quando chegou a Coimbra já tinha sido fechada a delegação da Casa dos Estudantes do Império (CEI) e só se mantinha a sede em Lisboa, que viria a ser encerrada em Setembro de 1965.
O jovem foi parar a uma outra instituição estudantil, o Kimbo dos Sobas, onde só viviam angolanos. Apesar de já não haver CEI em Coimbra, Manuel Rui foi contactando com a Casa em Lisboa. Os estudantes viajavam entre as duas cidades e Manuel Rui conheceu Ruy Mingas (músico, antigo ministro dos Desportos em Angola e ex-embaixador de Angola em Portugal), e reencontrou conterrâneos como a professora e escritora Gabriela Antunes, entre muitos outros. «A Casa era um exemplo de organização», garante. «Dizíamos sempre ‘a Casa’, nunca foi a Casa dos Estudantes do Império».
A CEI era uma associação de estudantes com restaurante, biblioteca, alojamento, médicos voluntários, contabilidade apresentada ao final do ano, dava bailes e era uma editora que publicava livros. Obra de uma «daquelas gerações que aparecem de vez em quando», resume o autor de Quem Me Dera Ser Onda, clássico da literatura angolana, entre outros títulos traduzidos e objecto de estudo além-fronteiras.
Faculdade de Direito era «medieval»
Criada durante a ditadura salazarista, visava apoiar e controlar estudantes das colónias ou, nas palavras de Manuel Rui, «tinha o objectivo de educar a malta». A maioria dos associados eram filhos de gente com dinheiro ou posição nas ex-colónias. Não era o caso de Manuel Rui. «O meu pai não era rico, fui pela boa nota, deram-me uma bolsa e, depois de ser preso pela PIDE, fiquei sem ela». Dos tempos de estudante de Direito lembra-se de rasgar as sebentas a seguir a terminar as cadeiras. «A faculdade de Direito era medieval». O uso de gravata, a hostilidade latente, a exclusão das mulheres, a proibição de que estas usassem calças, era demasiado para quem vinha de outras latitudes.
O conservadorismo da faculdade de Direito era um reflexo do país na altura. O escritor José Luandino Vieira, que nasceu em Portugal mas foi novo para Angola, é um proscrito do regime. «Quando o livro do Luandino dá aquela maka toda de fecharem a Sociedade Portuguesa de Escritores, há uns palhaços que vieram à televisão acusar o Luandino de terrorista», relembra Manuel Rui. José Luandino Vieira, autor de A Cidade e a Infância, tinha sido distinguido pela SPE com o Grande Prémio da Novela com a obra Luuanda, facto que enfureceu o regime e levou ao fecho da SPE e de um jornal regional, o Jornal do Fundão, que noticiou o feito elogiando a qualidade e o talento da escrita de Luandino. Nessa altura, o escritor brasileiro de ideais comunistas, Jorge Amado, vem a Portugal. Os jovens estudantes conseguem que ele vá a Coimbra com a mulher e a filha visitar as repúblicas. «O Orlando (Rodrigues) e eu escrevemos a biografia do Luandino Vieira à mão e demos ao Jorge Amado com o livro para ele poder espalhar lá no Brasil e fazer confusão». Anos mais tarde iria reencontrar o autor de Capitães de Areia e Gabriela, Cravo e Canela, numa Angola já livre e soberana.
Naquele tempo eram poucos os que saíam de Angola politizados ou sensibilizados para a causa nacionalista. Manuel Rui levava «alguma formação de base» dos contactos com o General Piricas. Jorge Alves Pires ‘Piricas’ (morreu em 2004) tinha conseguido em Sá da Bandeira, hoje Lubango, um livro de Jean Paul Sartre, intelectual francês que se tinha associado ao movimento cultural e literário Negritude que valorizava a cultura negra. Piricas, que mais tarde viria a ser tenente-general das Forças Armadas Angolanas inseriu-se, em 1960, na cidade de Lubango, numa das células clandestinas do MPLA e deu continuidade à sua militância em Coimbra onde fora transferido para prosseguir os estudos. Em 1961, com um grupo de cem colegas, entre os quais Ndalu, Tozé Miranda, Daniel Chipenda e Augusto Teixeira de Matos, fugiu para Marrocos, onde integrou a União Geral dos Estudantes da África Negra sob dominação colonial portuguesa, protagonizando a famosa fuga dos estudantes. A rede montada na altura com o apoio do PCP levava estudantes para incrementar a guerrilha noutros países.
Tal como Piricas fazia em Angola, em Coimbra também havia os «fornecedores de livros» e era preciso reproduzir e espalhar a palavra revolucionária e o ideal nacionalista. Manuel Rui era o dactilógrafo de serviço. Tinha aprendido a escrever à máquina aos sete anos. Para ajudar o progenitor, uma espécie de «solicitador dos pobres» tinha-se tornado proficiente na arte de puxar a fita e a borracha que punha ao serviço da libertação nacional. As técnicas para despistar a polícia política da Ditadura estavam bem sabidas. Colocavam toalhas no bidé e a máquina de escrever em cima para abafar o som. «Se os pides ouvissem uma máquina de escrever iam logo ver o que os pretos estavam a fazer».
No dia em que foi preso, em Coimbra, não havia nada no Kimbo dos Sobas que lhe pudessem imputar, incluindo o Jornal Kovasso (significa ‘Em Frente’ em língua nacional umbundo). «Quem ainda deve ter algum exemplar é o Lúcio Lara», alvitra sobre o presidente da delegação de Coimbra da Casa em 1952 e mais tarde secretário-geral do MPLA.
Manuel Rui iria ainda publicar um poema na Mensagem, boletim mensal da Casa, na última edição que saiu antes do fecho da Casa, a 6 de Setembro de 1965, escrito numa mesa de pinho que servia de secretária no seu quarto em Coimbra. “Não vale a pena pisar”, assim se chamava o poema, mais tarde rebaptizado como “Nossa Força” onde o capim representa os que são explorados.
O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu. É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.
Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim renascer.
Propaganda revolucionária
Eram cinco e meia da manhã quando a PIDE chegou ao Kimbo dos Sobas e prendeu três de oito pessoas que ficaram presas na cadeia do Aljube. Chegavam à prisão e eram pesados, tiravam as medidas, deixavam a impressão digital. À medida que iam buscando mais um e outro dissipavam-se as dúvidas sobre possíveis bufos. Só um ficou de fora: o José Luis Cardoso, natural da província do Bié, que tinha ido estudar para o Lubango onde ganhou o nome de Zequinha da Gráfica, pois morava ao pé de uma. «A PIDE andou ali às voltas e nós a pensar que o Zequinha, o nosso camarada, tinha sido o pide infiltrado que furou isto». Quando, finalmente, chegou a vez de Zequinha chegar à cadeia apesar das circunstâncias de estarem detidos, houve festa: «Não tinha sido ele».
Desse período recorda os cinco dias que esteve sob a tortura do sono e a semana que esteve na sala 13 de castigo. «Mas não agarraram a cabeça da cobra, nem nós sabíamos quem estava à frente. Era gente amadurecida, muitos com a experiência e o contacto próximo com o Partido Comunista Português». O PCP divulgava as directrizes em caso de prisão que começavam com um «Se fores preso camarada…». Dentro da cadeia estavam organizados, recebiam notícias, sabiam onde estava Agostinho Neto. Mesmo para aqueles sem ligação directa ao PCP, como era o caso de Manuel Rui, a influência era grande desde as listas dos livros que deviam ler à forma de organização. Também por aí e inadvertidamente, a Casa muniu os quadros africanos das colónias de instrumentos essenciais para a condução dos processos que culminaram com as independências na década de 70.
Ligação com Angola
Nessa época o relacionamento com os estudantes subversivos com as famílias em Angola era péssimo ou inexistente. «Éramos vistos como terroristas, tirando um ou outro pai mais esclarecido». Manuel Rui tinha nos antecedentes um familiar com ligações à maçonaria, preso por causa dos episódios protagonizados por Norton de Matos e Humberto Delgado, que enfrentaram a ditadura. Talvez por esse historial o pai de Manuel Rui nunca falou com o filho sobre as suas andanças na metrópole.
Apesar de estar interdito de sair de Portugal em virtude de ter sido preso, consegue autorização para ir ao funeral da irmã em Angola e vai uma outra vez de férias. As férias na terra acabavam por ter outras motivações. Na bagagem traziam propaganda, panfletos, que depois reproduziam para espalhar nos Caminhos de Ferro de Benguela, frequentado pelo proletariado. Instrumentos que chegaram a estar no Palácio do Governo porque «o filho do Governador era nosso colega e estava connosco».
O escritor esteve ainda no quartel de Mafra a fazer - «de castigo» - o curso oficial de milicianos no ano em que não se gritou no juramento de bandeira. A semente que deu origem aos cravos de Abril começa a germinar. «No quartel de Mafra roubávamos munições que vinham parar aqui». Sobre a forma como isso era feito Manuel Rui fecha-se em copas.
Um hino para a nação
Em 1969 termina o curso e o activismo cultural é intenso. Foi membro da redacção da revista Vértice, fez parte da direcção da Editora Centelha, participou em trabalhos do Centro de Estudos Literários da Associação Académica de Coimbra, coordenou o Sintoma, suplemento literário do Jornal do Centro.
No 25 de Abril estava em Coimbra onde, entretanto, tinha aberto escritório de advogados. Mal os cravos vermelhos saíram à rua, tomou a decisão: «Pensei de imediato em voltar a Angola. Fui ao quartel, corrompi com 100 escudos um sargento para me passar uma ficha limpa que eu tinha a ficha suja e meti-me na confusão do aeroporto em Lisboa. Nem toga trouxe na bagagem», recorda. Uma vez em Angola o que encontrou? Manuel Rui responde com um poema de Agostinho Neto. «Cheguei para ver a terra». Era a força, a efervescência das pessoas, a mudança. «Foi uma avalanche. Aos 34 anos estava a ser nomeado Ministro da Comunicação Social», no governo de transição saído do Acordo do Alvor. Viria a integrar também a primeira representação de Angola na Organização da Unidade Africana e nas Nações Unidas. Foi ainda Director do Departamento de Orientação Revolucionária e do Departamento dos Assuntos Estrangeiros do MPLA.
Em vésperas da independência, na iminência da chegada de uma delegação de Maputo liderada por Óscar Monteiro, foi convocado de urgência para escrever o hino nacional. «Apareceu o Ruy Mingas, éramos amigos de estar em casa uns dos outros. Ele já trazia os acordes iniciais (trauteia os primeiros versos de Angola, Avante!) e em dez minutos fez-se um hino». Juntos fizeram depois canções emblemáticas como os “Meninos do Huambo” ou “Meu Amor”. E parcerias artísticas com o fadista português Carlos do Carmo, o brasileiro Martinho da Vila ou André Mingas, irmão de Ruy, falecido em 2011.
«Na proclamação da independência não baixámos a bandeira portuguesa, como aconteceu em Moçambique, só levantámos a nossa», recorda com ironia na voz. «E estamos aqui, cheios de cicatrizes mas sem cortes».
Hoje, quase 40 anos depois, ainda se emociona quando a bandeira de Angola, que viu a ser desenhada, dança ao vento, e quando ouve o hino nacional em dias de jogo da Selecção de basquetebol. «Emociono-me. O meu neto manda-me sair da sala porque me faz mal». Há marcas que o tempo não faz desbotar.
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade.
Artigo originalmente publicado no semanário Sol.