Mário Macilau - foto-relatos da contemporaneidade moçambicana

Mário Macilau, fotógrafo moçambicano, finalista do concurso BesPhoto 2011

self-portraitself-portraitEncontrámos Mário Macilau na esplanada ao ar livre do Centro Cultural Franco-Moçambicano, antigo Hotel Clube, em Maputo. Morador no bairro Polana Caniço, o jovem fotógrafo moçambicano gosta de passar pelo “Franco”, ao final do dia “para combinar trabalhos, falar com alguém, relaxar”. Ao som dos batuques vindos do ensaio de um grupo de dança que se prepara no auditório, pedimos que, dos seus 26 anos, recue até à infância.

Ele, comunicativo, tranquilo, conta a história, semelhante a tantas outras no início. O êxodo dos pais, de Inhambane para a grande cidade em busca de melhores condições de vida, o seu nascimento já em Maputo em plena guerra civil. A emigração do pai, “sem-papéis”, em 1990, para a África do Sul à procura de trabalho e sustento; a consequente deportação até à fronteira, de onde fugiu novamente, por se recusar a regressar para junto da família com as mãos cheias de nada. “Teve dez anos sem dar sinal”, lembra Mário que, na altura, vivia com a mãe e as irmãs. Lembra também o dinheiro que faltava, a sobrevivência graças ao negócio informal improvisado, sustento de tantas famílias africanas. Os biscoitos de trigo e açúcar que a mãe fazia e ele vendia no centro de Maputo. O mercado Janete, frequentado pela classe média-alta, onde ajudava a carregar sacos das compras dos clientes, lavava carros, arrumava bancas, fazia as cargas e descargas no princípio e no final do dia. A jornada de trabalho que se prolongava até às dez da noite, o transporte para ir para casa tantas vezes perdido. Dormir num pedaço de chão, dentro do mercado ou lá fora nas ruas de Maputo, longe da família primeira, mas na companhia de colegas com o mesmo ofício, a família segunda. Os tempos em que, à noite, com os outros vendedores-meninos, jogavam às cartas ilegalmente “para poder ganhar dinheiro um do outro”.

E também das ajudas de famílias abastadas com quem se cruza, das aulas na igreja, da conclusão mais tarde do ensino secundário. E de como o fascínio pela fotografia foi nascendo nele. Mário Macilau de tudo se recorda.

Life goes onLife goes onLife goes onLife goes on

 

20 meticais por um clique

Durante a adolescência, acompanha reportagens sobre exposições de fotografias na televisão e acompanha ao vivo o trabalho de fotógrafos-ambulantes do bairro. Mais coisas lhe interessam: o jornalismo, a literatura, a poesia porém, mais que tudo, a imagem em movimento e aquela que é possível congelar no tempo. “Recordo-me quando, uma vez, conheci um velho fotógrafo que fotografava casamentos e eu sempre o acompanhava. Ia atrás dele, fazia perguntas, tentava pegar a máquina dele para fazer uma foto. Ele fazia mais trabalho comercial mas tinha bom equipamento. Às vezes, comprava um rolo para colocar na máquina dele, dava-lhe 20 meticais e pedia-lhe para fazer uma foto. O prazer era só dar um clique. Um clique”, diz, imitando o som da máquina fotográfica a disparar.

cruzamentoscruzamentos

Teve a sua primeira máquina fotográfica profissional há três anos, numa troca pelo telemóvel da mãe. Nesse mesmo ano, em 2007, através de uma associação cultural de jovens, participa num intercâmbio que o leva ao Canadá. Durante três meses foi a galerias de arte, conheceu fotógrafos, trocou ideias, aprendeu técnicas. “Quando voltei para Maputo fui para Manhiça e levei a minha câmara. A primeira foto que fiz foi a de um dos participantes do Canadá a cortar o cabelo. Fez sucesso”. Em 2008, completa um curso de fotografia em Maputo.

Recorrendo à fotografia como forma de expressão visual da realidade social, Mário Macilau procura explorar “a relação que existe entre as pessoas, o espaço e o tempo”. Fotografia conceptual, documentário, arte fotográfica? O seu trabalho é uma combinação de géneros, com um denominador comum: o quotidiano das gentes e da terra, com enfoque nas questões sociais. Vejamos.

Left Behind

Left Behind, por exemplo, é o nome de um trabalho fotográfico sobre um enorme mercado informal numas das entradas da cidade de Maputo, o Xiquelene (significa “cova” em xangana, a língua local). O conjunto fotográfico procura documentar as relações que existiam, e existem, dentro daquele espaço. “Para mim aquilo que há de mais importante no Xiquelene são as relações que as pessoas criam. A construção de família, não naquele sentido de família tradicional, mas no sentido de conviver com outras pessoas com quem se tem algo em comum”.

Macilau seguiu continuamente, e de perto, o quotidiano do Xiquelene com a sua lente. Retratou o amanhecer do mercado, o montar das bancas, a criação do espaço para fazer o negócio, a compaixão exercitada entre vendedores, a partilha do almoço, a solidariedade para com aqueles que, num dia menos lucrativo, não têm dinheiro para voltar a casa, a extrapolação da rede de amizade para lá das linhas do mercado nas casas de cada um, nas festas de família. Macilau fotografou nos tempos de chuva, quando debaixo de condições inóspitas as pessoas continuavam a ir trabalhar. Fotografou quando “o Governo decidiu destruir o mercado de uma forma muito injusta”. E veste sempre duas peles que se sobrepõem, a de cidadão na defesa das causas prementes, à qual se junta o fotógrafo que as cristalizará no tempo. “Este mercado foi construído pelas pessoas depois da Independência. Essas pessoas fizeram do Xiquelene o que ele é, e sem ajuda de ninguém. Mas o Governo achou que estava em péssimas condições, e realmente estava, mas não houve uma negociação com o povo. A polícia chegou lá e começou a destruir tudo, e havia pessoas a chorar, porque essas pessoas estavam a ver os seus sonhos a desmoronar-se, a ficar para trás”. Left Behind.

mulheres de um único homemmulheres de um único homem

Grande Hotel da Beira

Mário Macilau leva entre dois e três anos para completar um trabalho. Primeiro aborda os fotografados sem câmara, faz um contacto “normal”, cria uma relação. “Depois de fotografar, imprimo as fotos e ofereço a quem fotografei”.

Em 2008 faz um outro projecto, sobre o Grande Hotel, na Beira, um hotel de luxo construído na época colonial portuguesa que, depois de alojar faustosamente colonos, serviu de abrigo a nacionalistas moçambicanos na luta pela Independência na década de 70, e a milhares de refugiados durante e após a guerra civil. Mário Macilau olhou para o passado do antigo hotel e fotografou essa história tatuada nas paredes e nas pessoas que hoje o habitam. “Dentro desse hotel há vidas. Em que condições essas vidas se encontram? Foi isso que eu quis retratar”. grande hotel da Beiragrande hotel da BeiraUma vez mais, Macilau aborda as questões sociais, as redes de solidariedade que se criam entre os que pouco têm. “Essas pessoas vivem em família e acolhem quem lá quer ficar desde comerciantes a imigrantes. No tempo em que houve a crise no Zimbabwé, muitos zimbabuanos foram para lá viver. Não interessa se és moçambicano ou de outro lado, para quem está à procura de um espaço para repousar aquele é o lugar certo”, a antítese do que foi outrora.

“Como fotógrafo acredito que as minhas fotografias ajudam as pessoas a ter mais informação”. Porque a câmara e a lente de Macilau permitem ver o que de outra forma não seria visto por muitos. “No Grande Hotel quero tocar a sensibilidade das pessoas, especialmente daquelas que trabalham para o Governo, que têm cinco ou seis casas, mansões. Quero chamar a atenção e provocar uma mudança”. A fotografia, o meio para atingir a transformação social, o fim.

Preso nas manifestações

Mário Macilau pertence a uma matriz de fotógrafo que coloca a câmara onde está a sua consciência social. No dia 1 de Setembro, quando ocorreram as manifestações em Maputo contra o aumento dos preços de bens essenciais, esteve junto dos acontecimentos. Mário Macilau, o cidadão ou o fotógrafo?, perguntamos. “Eu sou cidadão e sou um ser humano, acima de tudo. Havia uma manifestação com a qual estava de acordo. Como fotógrafo queria captar aqueles momentos porque, mais tarde, poderia fazer a sua divulgação. Mas por outro lado, eu queria estar lá como indivíduo, para testemunhar, ver e apoiar de alguma forma”, conta. Dirigiu-se à zona onde uma criança foi morta e acabou detido pela polícia. “Fui preso depois de me terem batido, ainda sinto dores nas costas. Estive na cadeia 27 horas, fiquei trancado num chiqueiro, ninguém nos dizia nada, era maltratado, parecia um criminoso.

Acordaram-me às quatro da manhã para fazer a limpeza das casas-de-banho que estavam tão sujas que impressionavam. Passei frio. Isto é ‘o Poder’!”. Mais tarde, conseguiu que um polícia lhe deixasse fazer um telefonema para um amigo que, por sua vez, lhe conseguiu um advogado. “Devolveram-me a câmera, mas sem fotografias, e estou agora a tentar recuperar as fotos do cartão”, conta.

Finalista do BESPhoto

Na semana seguinte a estes acontecimentos, recebeu a notícia que era um dos nomeados para o prémio BESPhoto 2011. Sobre a sua selecção o júri salientou “a qualidade da representação do panorama social e cultural de Moçambique e da linha ténue que situa o seu trabalho entre a ficção e o documentário” e a exposição A Terra da Boa Gente que esteve patente no Centro Cultural Português/Instituto Camões, em Maputo.

Um dos trabalhos em destaque na recente obra de Macilau retrata o grupo religioso Mazione, série iniciada em 2008, quando na praia da Costa do Sol os avistou nas suas práticas de rituais de expulsão de espíritos maus presos nos corpos humanos, conforme é da sua fé. Macilau quis ir à procura desses “actos que fazem parte da nossa história e da cultura moçambicana, menos conhecida, menos preservada e respeitada. Interessa-me a questão da fé, da crença. Aquelas pessoas acreditam. E através das rezas, das danças e da música, expressam-se de forma intensa”.

Sobre todos os trabalhos que efectua, Macilau afirma que “não quero falar da pobreza, mas da sensibilidade do ser humano”. Na série fotográfica Life Goes On, por exemplo, procurou retratar uma realidade que acontece a sete quilómetros da baixa de Maputo, na Lixeira do Hulene, para onde vai, sem qualquer tipo de tratamento, todo o lixo produzido na capital moçambicana. Nesta lixeira a céu aberto vivem famílias que perderam as suas casas durante a Guerra ou nas cheias de 2000 e muitos órfãos.

Life goes onLife goes on

Aqui, há mais de dez anos que é feita a queima de todo o tipo de resíduos, representando um perigo para a saúde pública. Nestas condições, um grupo de 700 pessoas vive do que consegue encontrar no lixo, através da selecção e posterior venda de bens recicláveis ou reutilizáveis. Em recorrência no seu trabalho está a revelação dos excluídos, dos marginalizados, numa sociedade que chega ao cúmulo da sobrevivência de alguns depender do supérfluo, do descartável, do lixo de outros. As fotografias de Mário Macilau permitem vislumbrar o edificar de relações sociais e o afloramento de mentalidades do Moçambique (do Mundo?) contemporâneo.
Life goes onLife goes on
Aos 26 anos, viver da fotografia é a difícil batalha de Mário Macilau, ganha através das obras que lhe compram mas também da realização de “trabalhos comerciais” e das funções exercidas como assistente de outros fotógrafos que o procuram. Tem o apoio da portuguesa Fundação PLMJ, que colecciona algumas das suas obras, particularmente no domínio da vídeo-arte, actividade que tem vindo a desenvolver e que o afirma como artista multidisciplinar. Quando o encontrámos no “Franco” de Maputo falava da ida para a Nigéria a fim de participar no festival “Lagos Photo Project”.

Em Novembro irá a Portugal, participar numa residência artística. E falou de alguns sonhos: ir à Índia e ao Quénia, porque “já sei exactamente o trabalho que quero fazer lá”, terminar um projecto fotográfico que iniciou na Bélgica, estudar Sociologia numa Universidade. Talvez possa ajudar a encontrar o lugar da fotografia na compreensão da nossa sociedade.

 

por Joana Simões Piedade
Cara a cara | 27 Outubro 2010 | Fotografia, Grande Hotel da Beira, Maputo, Mário Macilau