Ecos do gueto - os dias agitados de Maputo

Ao primeiro dia de Setembro deste ano, a população dos subúrbios de Maputo, maioritariamente jovem, saiu à rua para protestar. O aumento do preço dos bens essenciais impostos pelo Governo moçambicano serviu de mote. No rescaldo de violentos e mortais confrontos com a polícia, um mês após a “greve”, estes são alguns ecos daquilo que os jovens de Maputo estão a dizer.

beco do Mafalala, foto de Otávio Raposobeco do Mafalala, foto de Otávio Raposo

Niosta Cossa
27 anos
Bairro Ferroviário, Bloco 4
Escreve mensalmente o jornal Estado Livre, “totalmente independente porque não tem qualquer tipo de patrocínios, qualquer pessoa pode escrever e não há censura”, que vende aos moradores do bairro.

Madjer Rachid
23 anos
Bairro do Ingohoito B
Realizou o documentário O Quinto Elemento sobre a consciência do hip-hop, criado após ter frequentado um workshop no âmbito do Festival de Cinema Dockanema.

Artur Nhongwone
32 anos
Bairro de Maxaquene
Artista Plástico, faz parte do grupo de artistas que gere o espaço Núcleo de Arte na capital moçambicana.

Camila de Sousa
26 anos
“Gueto de cimento”, centro da cidade de Maputo
Estudou Antropologia no Brasil e é autora da instalação audio-visual Mafalala Blues, sobre o histórico bairro da Mafalala, lugar de resistência de inúmeros líderes políticos e culturais do movimento nacionalista moçambicano.

 

Parte 1

Niosta: Sim, fui fazer greve aqui no 1 de Setembro. Não recebi sms mas ouvi os tiros, começaram a dizer que a polícia estava a disparar e havia rumores de greve. Então pensei “o País não pode pegar fogo sem a minha participação”. E fui. Até me perguntaram se eu ia cobrir para o meu jornal, o Estado Livre. Disse que não, que ia fazer greve mesmo, cobrir para o jornal era depois.

Madjer Rachid, músico e realizador de audiovisual, no mini-estúdio que improvisou na sua casa no bairro Ingohoito BMadjer Rachid, músico e realizador de audiovisual, no mini-estúdio que improvisou na sua casa no bairro Ingohoito BMadjer: Filmei a greve. Quis dar um olhar, saí para ver o tipo de manifestação que o meu povo faz, e eu ainda não tinha visto. Somos muito pacíficos. A greve de 2008 não foi tão violenta. Condeno a forma que a gente tem de fazer a greve, e aqui incluo-me também. Há falta de sensibilização. Nem todos estão sensibilizados, não é preciso queimar pneus. É preciso escrever, ‘pixar’, falar dos nossos direitos com a escrita, com a nossa voz, falar aquilo que nós queremos com a música, a pintura. São esses meios que fazem chegar a milhares de pessoas aquilo que queremos como Povo.

Nhongwone: Estava em casa a preparar-me para ir para o Núcleo de Arte. De repente, vi pela televisão que estava a acontecer algo. Foi um choque. Tentei sair mas as pessoas  regressavam da escola e do serviço completamente baralhadas. Só me perguntava “o que é isto?”

Niosta: Aquilo era um caos, a polícia disparava balas de verdade sobre a população. Quando o Governo disse que ia baixar os preços, tudo acalmou, mas foi preciso termos chegado até esta situação: pessoas morreram. Isto é doloroso. Algumas pessoas ainda estão presas.

Madjer: Se conseguimos fazer uma greve, porque não fazemos outra por causa das pessoas inocentes que ainda estão presas e pelas que morreram? Foram vidas que perdemos. A polícia não tinha de agir daquela forma. As balas de gás entraram aqui na minha casa…Eu estava com os meus amigos a ‘rappar’ e a reflectir sobre o que tinha acontecido de manhã, e pelas 19h eles chegaram aqui a nossa casa, com os meus filhos cá dentro, e começaram a disparar.

Artur Nhongwone, artista plástico no interior do Núcleo de ArteArtur Nhongwone, artista plástico no interior do Núcleo de ArteNhongwone: Acho que as pessoas da cidade não sabem o que é viver com tiros. Durante a Guerra entre a Frelimo e a Renamo, fui raptado aos sete anos em Luabo na Zambézia, onde vivia. A Renamo chegou na minha aldeia e começou a disparar. No passado dia 1 de Setembro quando vi aquilo na televisão, pessoas mortas pelo chão, comecei a chorar. Lembrei-me do que passei. Senti logo um trauma e perguntei ‘onde nós estamos?’ Claro que tem que haver greve, sim, mas tem de ser manifestada de forma pacífica. O povo é a maioria e a maioria quando zanga, sai à rua. A polícia tem de se defender mas também tem de saber por que razão o povo se está a manifestar. Pessoas inocentes a serem baleadas na rua, que cresceram na cidade, não sabem o que é o tiro de uma arma disparada em plena cidade? Estamos em Paz, não em Guerra. Mas eu sou do Povo e sinto. Há pessoas que não têm nem alimento.

Camila: Fiquei muito assustada com a máquina de repressão do Estado moçambicano. Tinhas jovens a reivindicar algo, e o que mais me chocou foi o Governo chamar estas pessoas de “vândalos, marginais”. Sem sequer pensar que na altura da repressão colonial foram também “vândalos” que se insurgiram e resistiram contra o colonialismo, e foram esses “vândalos” de ontem que hoje estão no Poder. Dizem que o moçambicano é muito conformado e desta vez o moçambicano revoltou-se e, pela primeira vez, contra a figura do Presidente, que apareceu muito tempo depois, para não dizer nada. Vi uma mulher na TV a reclamar ‘quem é este senhor que está a dizer que os nossos filhos são “vândalos”? Exigimos justiça, porque são estes mesmos “vândalos” que votaram neste senhor.’

Geração dos pais

Camila de Sousa, antropóloga, junto à vídeo-instalaçãoCamila de Sousa, antropóloga, junto à vídeo-instalação

Camila: Quando os Acordos de Lusaka foram assinados, os portugueses que não queriam deixar Maputo começaram a matar gente. E a contra-reacção aconteceu no bairro suburbano, através dos moradores da Mafalala que montaram barricadas. Resistiu-se neste espaço. A revolução na época colonial começou na periferia de Maputo, e vai voltar a acontecer ali. É um fósforo que é só preciso acender. O que observamos hoje é que aconteceu uma volta atrás no tempo, uma inversão de papéis: saíram os portugueses e o Estado moçambicano entrou. Foi uma mudança de gentes mas a hierarquia continua, as fronteiras ainda existem. São fronteiras coloniais que ainda não foram desmistificadas e por isso é importante olhar para o passado. Mas parece que o Estado moçambicano tem medo de olhar para trás.

Niosta: Os meus pais foram colonizados, era outro mundo, outro tempo. O meu pai é reformado, era condutor de comboios do CFM (Caminho-de-ferros de Moçambique). Actualmente faz negócio com a venda do carvão que compra em Gaza e revende aqui, à porta de casa. A única coisa positiva daqueles tempos eram as relações pessoais: os meus pais estão casados há 30 anos, eu tenho seis irmãos. Claro que o meu pai é adúltero, mas olhando numa perspectiva masculina, o homem teve uma sorte que eu não vou ter. As mulheres perceberam mal a emancipação e querem tomar o lugar do homem.

Guerra civil

Nhongwone: Onde eu vivia em criança, havia uma açucareira e esse foi um dos primeiros sítios a ser ocupado. Vivia com a minha mãe e os meus irmãos. Tinha avós e primos. Uma vida normal, perto do rio Zambeze. De repente, a Renamo ataca. Eu tinha ido passar férias a casa de um tio e fiquei fechado em casa dele três dias até a Frelimo se render e a Renamo ter ocupado. Fui umas das pessoas que os militares foram buscar a casa. Arrombaram a casa e encontraram-me debaixo da cama, mais o meu irmão e o meu tio. A minha mãe estava no Chinde com o meu avó e conseguiram fugir. Fomos encaminhados para a mata. Estava lá muita gente raptada e íamos em coluna de um lado para o outro. A minha mãe foi-se entregar porque queria reunir-se com os filhos. O meu avô também se entregou, e reencontrámo-nos todos três meses depois.
Niosta Cossa, jornalista, com um exemplar do jornalNiosta Cossa, jornalista, com um exemplar do jornalNiosta: Eu tinha nove nove anos quando terminou a Guerra Civil e vivia na cidade por isso as recordações são inexistentes. Eu gostava que houvesse uma guerra civil agora, a oposição passou a ser posição.

Nhongwone: A vida nos campos da Renamo foi muito díficil: não havia alimentação, mesmo a água era precária, não havia sabão, começaram a aparecer certas doenças como anemias, sarnas. Havia violência para quem tentasse fugir.  Fugi graças ao meu avô. Ele dava-nos uma educação e sempre dizia que deviamos evitar falar a língua materna (sena) e falar português, para não ter dificuldades em comunicar com os outros. Diante disto a própria Renamo dizia que a nossa era “a casa dos brancos” e olha para a minha cor! Como o meu avô trabalhava na fábrica açucareira e trabalhava com alumínio, sabia moldar. Lá, ‘nas dificuldades’ ele ensinava-nos muita coisa: a fazer ratoeiras, panelas. Comíamos farelo de milho, papaia branca, não havia nada mais. Tivemos assim cinco anos e depois toda a família fugiu. Não sei como o meu avô conseguiu, não sei qual foi o combinado, deixámos o pouco que lá tínhamos mas viemos embora. Atravessámos o rio Zambeze e ficámos em Marromeu.

Camila: Sempre senti um grande vazio em relação à nossa história. A nossa história acaba com a nossa Independência. Depois já não se fala sobre nada, sobre Socialismo, sobre Guerra civil, não aprendemos isso no livro de História. Acaba assim: ‘Somos Livres!’ E depois? Encontrar este lugar passa por um diálogo, pelo debate da história política.

Parte 2

Cultura

Niosta: Uma vez por semana vou à loja de um amigo e tenho acesso à internet e ‘baixo’ livros e músicas - cheguei a dar-lhe um prejuízo de 10 mil meticais. Mas talvez eu seja uma excepção, porque tenho a sorte de ter alguém que me facilita a internet. Adoro ler. Na literatura tem um português que adoro, o Miguel Esteves Cardoso. A Causa das Coisas é um livro que adoro. Acho que é genial, se os portugueses o lessem, Portugal não era aquele país que eu vejo na televisão: uma merda! Um país como Portugal, com as Descobertas que fez, com poetas como Camões e Pessoa, e muitos outros grandes homens que teve, e a posição que tem actualmente na Europa… Péssimo! Se os portugueses lessem mais Miguel Esteves Cardoso e escutassem mais Zeca Afonso e António Variações, teriam um país melhor.

Madjer: Faço música, tenho uma banda, e o nome não tem nada a ver com a moçambicanidade, chama-se Profet Soldier, e tem a ver com a cena da União Soviética partir para várias partes do mundo e querer levar uma palavra. Procuramos, através de mensagens coesas, abrir a mentalidade dos nossos próximos, com letras diferentes, que nada tem a ver com o que ‘está a bater’ aqui.

Nhongwone: Na arte em Moçambique, há muitos e bons talentos, mas está tudo disperso. Tento, como jovem, fazer o meu papel  de servir os mais velhos, mas por vezes não há uma abertura de um mais-velho para o jovem. Enfim, cada um tem a sua sensibilidade.

Madjer: Gostava de fazer um projecto sobre artistas plásticos emergentes em Maputo, mas ninguém está interessado em patrocinar. Só querem os conceituados. Eu quero mostrar o que os jovens estão a fazer em Moçambique. Quero impedir que nos barrem.

Niosta: Moçambique é um país praticamente analfabeto e as pessoas até nem gostam de ler, mas no meu jornal falamos, como dizem os americanos, da everyday people, pessoas comuns que procuram ganhar a vida de todos os dias. Para dar a notícia do presidente que inaugura ponte em Tete, não tenho saco, entrevistar famoso, entrevistar ministro…não…entrevisto as pessoas que vivem connosco, pessoas do bairro.

Madjer: Quero afirmar-me como realizador e vejo muito cinema. Gosto muito do Charlot. Gosto do cinema brasileiro e do cinema francês que tem muita adrenalina, tem chama, qualidade, gostava de fazer um curso em França. Às vezes até sonho com filmes e acordo a pensar como o realizador fez determinada cena.

Niosta: Adoro cinema. O cinema americano é cinema pimba, como vocês dizem da música. Mas tem filmes que eu gosto como Million Dollar Baby. Filmes que são grandes tragédias mas a América que vemos até é pobre em tragédias… é mais bombástica, fantástica, ilusória e não real. A propósito, tens os clássicos de Fellini e Hitchcock que me possas emprestar? Eu tenho até planos de fazer um filme, mas como vou fazer filmes se nunca vi o que os grandes realizadores fizeram? Adoro o Padrinho, o cinema fantástico de Tim Burton… Mas nunca vi por exemplo o Citizen Kane de Orson Welles. Queria tanto ver, dizem que é um marco do cinema. Conheces sites onde eu possa ‘baixar’ esses filmes?

Trabalho

Madjer: Filmo já há sete anos. Filmo MC’s em shows que acontecem na cidade e no gueto de Maputo, em várias casas que estão abertas para a cultura. A convite de um amigo fiz em três meses o programa Mundo da Kandonga que era um programa audio-visual, gravado em DVD e passado de mão em mão. Às vezes vinha do estúdio de gravação e chegava a casa e encontrava um vazio. Então trouxe para aqui algumas coisas e montei este estúdio onde estamos. Trabalho com uma câmara, misturador, aparelhagem, microfone. Tudo emprestado. Quero obter material próprio para o meu novo projecto, um programa televisivo que não depende de um só apresentador e nos mostra certas realidades associadas com músicas de intervenção social.

Niosta: No meu jornal falo de tudo: homossexualidade, política, desporto, sociedade… Os temas que me interessam somos nós mesmos, decepções, frustrações, desgostos amorosos, mágoas com a vida. A obrigação que coloquei na minha vida foi ter mensalmente uma publicação para as pessoas, e isto também é um gosto. Eu sou um privilegiado. Em África, os pais “pegam no pé” do filho mais velho. É este que tem de se formar, trabalhar e dar orgulho à família para se dizer aos amigos. Eu tive a sorte de nascer depois, então posso ser vagabundo, que é escolher o que quero fazer e seguir isso.

Matesh na Mafalala, foto de Otávio RaposoMatesh na Mafalala, foto de Otávio Raposo

Camila: A instalação que fiz Mafalala Blues surgiu como uma ferramenta de análise que permitiu perceber a história da minha família, da resistência política, da luta contra o colonialismo e vida de clandestinidade do meu pai, Camilo de Sousa (realizador), e da minha tia-avó Noémia de Sousa (poetisa e jornalista). Mas também serviu para perceber a história das pessoas deste bairro e um pouco do país. É incrível como um bairro condensa a história de um país! Eu não me vejo como artista, para mim isto foi a construção de uma relação com o mundo, com o bairro e com as pessoas. É uma colagem de várias coisas: fotografias, zincos e madeiras de três casas originais de moradores que utilizei neste projecto, os poemas da Noémia passar, a montagem do som, uma série de coisas. Não me vejo como fotógrafa ou realizadora…Sou uma pessoa que está a fazer a colagem de várias coisas.

Niosta: Vivo da venda dos jornais. Em Moçambique há uma lei que diz que um jornal sem estar registado não pode ultrapassar os 500 exemplares, e então eu ponho aí na capa ‘483’ mas vou vendendo. Imprimo em Alto Maé, do outro lado da cidade. E depois fotocopio. A cópia de uma página são 0,75 centavos, mas um amigo tem uma fotocopiadora e faz a 0,5 centavos e outro amigo por vezes faz-me de borla. Vendo por 10 meticais e as pessoas aderem. O formato deste jornal, em tamanho A4, lê-se bem. Aqueles outros, enormes, é um cansaço, uma ginástica para ler.

Ser jovem em Maputo

Madjer: Tenho o objectivo de levar o rap das ruas para a universidade, mas sempre sem perder aquela originalidade do próprio hip-hop. O hip-hop muda a vida de muita gente. A partir do momento em que estás inserido na cultura tu mudas, a cena é outra, estás sensibilizado. Olha para mim! Sou pai de dois filhos. É através do rap que eu consigo abrir a minha mente, mostrar a minha maneira de ser, os meus sentimentos. Podia através de outro tipo de música e de cultura, prmover os meus ideais, mas é com o rap que eu consegui fazer isto. No documentário O Quinto Elemento, caracterizei o espaço, o meio, a cultura do hip-hop no meu bairro. Filmei em quatro meses e montei em dois dias. Foi o meu primeiro documentário (realizado no âmbito do Nomadlab, com a Luísa Homem e Pedro Pinho). A ideia é continuar com o mesmo projecto. Procurar saber como a cena do rap está a ser feita, do Rovuma a Maputo.

Niosta: A vida estava impossível com os aumentos que o governo queria. Eu ganho uma média de 2 mil meticais por mês (cerca de 45 euros). Dá para o quê isso? Olha, dá para outros jornais, para fazer a próxima edição. O que me preocupa não é a minha sobrevivência. O que me aflige é depois de eu morrer. Vão lembrar-se de mim? Terei deixado um legado? Isso é que me mete medo. Pessoas como Samora Machel, ainda hoje vivem. Ainda hoje dizemos, “Epá! Se ele estivesse vivo, não vivíamos como vivemos hoje”. Ele há-de viver para sempre na memória das pessoas. E tantos outros, cientistas, filósofos, Darwin, Newton, Camões, o próprio Miguel Esteves Cardoso, de quem tanto gosto, viverá para sempre.

(Isso é importante? Deixar algo para as outras gerações?)
Niosta Cossa e o músico e vizinho, Paulo Macamo, da banda MbiluNiosta Cossa e o músico e vizinho, Paulo Macamo, da banda MbiluVou responder à moçambicana, com outra pergunta: Gostavas  de passar por essa vida e ninguém se recordar que tu exististe? Morrer, e só deixar filhos e dívidas? Isso qualquer um pode deixar… Tem coisas que nem todos conseguem deixar e é isso que me preocupa. Não só por mim, mas pelo país. Cada um luta por si mesmo, quer dinheiro, já ninguém quer saber do país. Como vou preocupar-me em ser rico com tanta miséria à minha volta? A riqueza é vã mesmo…

Madjer: Aqui ninguém tem voz activa. Um jovem como eu, por exemplo… eu tenho um sonho: ser realizador e produtor de cinema e tenho noção daquilo que tenho de enfrentar para conseguir realizá-lo. Mas fazeres um trabalho e não seres reconhecido? Seres barrado? É demais. Esta casa onde vivo foi graças à minha mãe. Aqui vivo com ela, com o meu irmão gémeo, a minha cunhada e sobrinha, a minha mulher e os meus dois filhos, a Baiana, de 5 anos e o bébé, o Júnior. Aquilo que eu faço nas ruas, é importante, tal como chegar a casa e ser pai. Mas a vida aqui é muito dificil.

E agora?

Niosta: Consegui construir um quarto só para mim, numa dependência nas traseiras da casa dos meus pais. Mas foi com dinheiro do contrabando. Dos 24 aos 26, eu era contrabandista de medicamentos. Ia à África do Sul e à Suazilândia buscá-los e contrabandeava para cá: vendia às farmácias mais pobres medicamentos para a realização de abortos. Era um ‘Robin dos Bosques’, praticamente, mas tinha, claro, o meu lucro. Acho que na minha carreira de contrabandista tenho acima de cem abortos nas minhas costas. Foi isso que me fez parar. Claro que na vida de crime corre-se o risco de um dia ganhar uma estadia no hotel penitenciário e, por outro, eu estava a contribuir para mortes atrás de mortes. Não que seja religioso, mas qualquer homem tem o seu lado moral. Eu fazia aquilo para ganhar dinheiro e ganhava muito. Estou grato por isso, mas já não tinha tempo para fazer aquilo que eu gostava que é escrever e então parei para pensar. Conclusão: deixei disso porque não era o dinheiro aquilo que eu queria. Com o jornal tenho uma boa hipótese de deixar alguma marca.

rua de Maputo, foto de Otávio Raposorua de Maputo, foto de Otávio Raposo

Nhongwone: Não consigo viver, apenas sobreviver com o meu trabalho. Vendo as minhas pinturas ao público estrangeiro, portugueses e americanos, holandeses. Em tempos trabalhei para o jornal Escorpião, como fotógrafo. Tive formação com o grande Ricardo Rangel. Aprendi câmera escura. Nunca vou deixar a pintura, fotografia. Já consegui arrendar uma casa só para mim.

Madjer: Gostaria de dar aos meus filhos uma formação que eu não tive e que eles fossem livres no sentido de escolherem aquilo que eles quiserem, tal como eu fiz. Estou orgulhoso do que fiz e do que tenho feito em termos de cultura. Nem sempre dá taco (dinheiro) isto que nós fazemos. Mas gostava que os meus filhos fizessem algo sem serem explorados, sem dependerem. Para mim, quero ser um produtor e realizador audio-visual reconhecido. Quero criar um eixo de familiarização com que estou a filmar. Quero aprender muito ainda, trabalhar com técnicos que já não tenham as mesmas dificuldades que eu ao nível da comunicação. Não quero fazer nada que eu não saiba fazer.

Camila: No início do mês de Setembro, a cidade parou e nós, jovens daqui do centro de Maputo, não saímos à rua, era como se isto não fizesse parte de nós. Era como se estivesse a acontecer lá longe. Eu senti que me faltou iniciativa. Os problemas deles são nossos também. Nós somos eles e eles somos nós. Percebi isso, e por isso senti-me mal comigo mesmo por não ter feito parte dessa manifestação. Por medo. Porque realmente havia pessoas a serem mortas. As manifestações mostraram as divisões, que eram fronteiras supostamente invisíveis, entre a cidade e a periferia. Desta vez mostrou-se que havia essa fronteira física. Para mim foi um choque perceber a forma como o Estado olha para estes bairros. Ficou totalmente clara a posição do Governo: estas pessoas não fazem parte disto, da construção deste país. Por um lado, foi fantástico o movimento das pessoas, por outro, foi terrível, morreu muita gente e não havia um sindicato forte, organizado, preparado e que conseguisse ter voz. Acho que não mudou nada, são medidas provisórias, volta tudo na mesma.

Niosta: A greve? Queres falar da greve? A greve é só consequência de um problema mais profundo dos moçambicanos. Tudo começa na base, no sistema nacional de educação, cujos moldes em que está baseado são portugueses, ocidentais. Em Portugal, o ensino pode até ser credível, não sei, mas nós aqui só temos 35 anos de Independência, e continuamos subordinados e “escravizados” por modelos que nós próprios importámos e que, na minha opinião, são desajustados, desfasados da nossa realidade moçambicana e africana. O que se forma são alunos vocacionados para ganhar dinheiro, e não para trabalhar. Conheço estudantes de engenharia civil que dizem que, depois de concluir o curso, a assinatura deles vai valer 50 mil meticais. Não são engenheiros que hão-de fazer pontes, casas, estradas ou fazer algo que ajude a construir o país. E esses alunos até são inocentes mas a forma como as políticas de educação estão estruturadas provocam isto. Onde vamos parar? Deixei de estudar depois da 10ª classe. Cansei-me. Bem, na verdade, fui expulso porque entrei em conflito com o ensino de cá. Até acho que tenho capacidade para entrar numa universidade. Mas para quê? Para ser ensinado a ganhar dinheiro? Não vale a pena. Neste país ir à universidade é como lá um ‘rapper’ vosso, o Valete, diz “é ser formatado”. E como dizem aqueles latinos ‘é preferível morrer de pé do que viver de joelhos’.

por Joana Simões Piedade
Cidade | 6 Outubro 2010 | jovens, Maputo, motins