Ironia como poema como recusa: Mohammed El-Kurd

A 29 de novembro de 2021, antes de se apresentar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, o jovem poeta palestiniano Mohammed El-Kurd disse, em tom sarcástico: “Olá comunidade internacional. Obrigado pelos magníficos discursos. Tenho a certeza de que as autoridades da ocupação estão realmente preocupadas neste momento.”

Nascido no bairro de Sheikh Jarrah – situado na Jerusalém Oriental ocupada por Israel e totalmente engolida pelo Muro do Apartheid – Mohammed é reconhecido por estranhos desde criança, quando descrevia para uma câmara os seus sonhos e a violência colonial de que a sua família e comunidade eram (e são) alvo. Mais tarde, em maio de 2021, foi um dos rostos da Intifada da Unidade, que teve em Sheikh Jarrah o seu epicentro. Como tantos/as outros/as palestinianos/as, ele e a sua irmã, Muna El-Kurd, denunciaram o processo de limpeza étnica em curso neste bairro e de expulsão das famílias palestinianas das suas casas – descrito pelas autoridades israelitas como uma “disputa imobiliária” – não como uma exceção, mas como uma das diferentes faces do projeto colonial de povoamento que se arrasta há mais de 75 anos em todo o território da Palestina histórica (Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e Israel).

Contudo, para além de devolver o olhar aos colonos que invadiram a sua casa e que ocupam as ruas de Jerusalém, e de dizer ao mundo o que deveria ser óbvio: que Deus não é um agente imobiliário ao serviço do movimento sionista e que a Palestina não é propriedade dos colonos que a ocupam; o Mohammed, no dia 29 de novembro de 2021, expôs como normalmente faz, com ironia, a hipocrisia daqueles que enchem a boca de liberdade e justiça mas que, na prática, pouco ou nada fazem para que a entidade colonial sionista-israelita preste contas pelos crimes que comete diariamente.

Como ele mesmo diz da sua avó, Rifqa El-Kurd, nascida antes da colonização sionista: “Ela é o eixo das minhas ações, a orquestradora da minha cadência. Ela vive na minha poesia e na minha prática.” Rifqa foi expulsa de Haifa durante a Nakba, em 1948, e depois de se mudar para Sheikh Jarrah viu o seu bairro e a cidade antiga de Jerusalém serem ocupados durante a Naksa, em 1967. A sua recusa em aceitar o processo de colonização em curso fica registada na articulação que faz desses dois momentos no presente: “Apenas concordarei em deixar Sheikh Jarrah para voltar para a minha casa em Haifa, de onde fui forçada a fugir em 1948.” Também as palavras do Mohammed na Assembleia Geral das Nações Unidas reverberam as de Rifqa, quando recusava ser vista como caso humanitário e dizia a ativistas em solidariedade com a causa palestiniana: “Não queremos a vossa simpatia, queremos a vossa ação.”

Decidi traduzir o discurso do Mohammed (Maomé, não David) numa sessão do Palestine Festival of Literature –que decorreu no dia 13 de dezembro de 2023, em Londres– porque este é atravessado pelo pessoal e pelo político que marcam a experiência do poeta palestiniano neste presente de genocídio, um presente que se repete e que se acumula desde antes de 1948 e que é partilhado, de alguma forma, com todos/as os/as palestinianos/as nos seus diferentes exílios.

A presença do passado tem sempre a marca da colonização desse território, dos corpos que o habitam, mas também das experiências e dos traumas em curso. O dia 7 de outubro de 2023 é descrito como “o maior trauma coletivo” pelo qual passaram os/as israelitas, mas os factos desse dia não são suficientes. O colonizador quer mais, quer apropriar-se de tudo, não lhe é suficiente roubar o território, ele também quer roubar os traumas da Nakba e de dizer ao mundo que são seus, tudo, absolutamente tudo, é sua propriedade. Para ele, os/as palestinianos/as não devem ter direito à terra, à água, ao sol, à memória, ao movimento, ao trabalho, à educação, ao sofrimento, a nada. Como descreve o Mohammed, o kibbutz Kfar Aza torna-se Deir Yassin, para que Deir Yassin desapareça, para que os/as palestinianos/as desapareçam.

Com as marcas do pensamento iluminado europeu, o sujeito de direito/s é o humano como proprietário, como o homem burguês e branco reivindicado pelo movimento sionista. Dentro desta cosmovisão, os/as palestinianos/as desaparecem como corpos ininteligíveis, como Gaza campo de concentração, como Gaza a intraduzível, corpo de homem árabe-muçulmano, a “besta” como símbolo antitético do “jardim”. Sempre símbolos, aos/às palestinianos/as apenas é permitido existir não como humanos, mas como “vítimas perfeitas” que têm de “dançar” ao ritmo da música composta pelo “senhor”. Essa é também a “dança” levada a cabo na ONU, essa é a performance de soberania da Autoridade Nacional Palestiniana, mas ela não é um meio, é um fim, um presente de espera que não termina. Em Gaza recusam “dançar” e morrer na espera, porque recusam viver num mundo que não é o seu. 

Nota: No dia em que escrevi esta introdução e traduzi o discurso do Mohammed El-Kurd, a 29 de fevereiro de 2024, as Forças de Ocupação Israelitas assassinaram a sangue frio mais de cem pessoas palestinianas esfomeadas (e feriram mais de 700) que recolhiam alimentos transportados para o norte da Faixa de Gaza.

Montagem que apresenta o massacre de Deir Yassin como realidade material e factual dos crimes perpetrados pelas milícias sionistas durante a Nakba, mas também Deir Yassin como projeção invertida que se esvanece, em referência à apropriação israelita da memória e dos traumas palestinianos nos relatos difundidos sobre o dia 7 de outubro de 2023. Fonte Bruno Costa, 2024.Montagem que apresenta o massacre de Deir Yassin como realidade material e factual dos crimes perpetrados pelas milícias sionistas durante a Nakba, mas também Deir Yassin como projeção invertida que se esvanece, em referência à apropriação israelita da memória e dos traumas palestinianos nos relatos difundidos sobre o dia 7 de outubro de 2023. Fonte Bruno Costa, 2024. 

— tradução de discurso e versão de poema —

Nunca li este poema antes. É de um livro que escrevi e que nunca viu a luz do dia, principalmente porque eu não queria ir para a cadeia. Então, se houver alguém da Mossad, do MI6 ou do MI5, que tire os próximos três minutos de folga.

Há dois anos falei na ONU [Organização das Nações Unidas]. Fiz um discurso na ONU por esta altura [do ano], no dia de solidariedade com o povo palestiniano. E ao observar como a ONU, o TPI [Tribunal Penal Internacional] e todos esses espaços têm operado, és recordado de como eles são completamente inúteis. Então eu escrevi este poema sobre discursar na ONU e estou muito interessado em ver como o tradutor interpretará a primeira linha:

Cheirado,

Cheirado na ONU,

A data de hoje marca alguma década,

de uma longa e prolixa articulação.

 

Fora do edifício,

o embaixador israelita

protesta-me

com um enorme cartaz.

 

Eu não fiquei surpreendido

com os lavatórios manchados de sangue

na casa de banho

ou com os Camaleões

por toda a parte.

 

Pela quinta vez

mostrei aos meus seguranças

o meu passaporte,

senti-me como uma ameaça natural.

 

Pedi para falar

onde os presidentes falaram.

 

Sem fato, sem gentilezas.

 

Sim, é política e ótica

mas, principalmente,

eu tenho aula depois disto

e um professor dececionado.

 

Sem tempo para engomar

tecidos ou teatralidades.

 

Apenas apertos de mão fugazes,

apenas poemas vencidos.

 

Irei em seguida.

 

Agora, há uma criança no pódio

que gesticula para os seus membros,

que leiloa a sua humanidade.

 

O representante de um estado chora,

outro masturba-se.

 

Para o discurso,

vejo Kwame Ture.

 

Para o jornal,

eu escrevo o mesmo artigo

com antecedência.

 

Pontos de discussão centenários,

a sua atual relevância assustadora,

o roubo, não a rotina

implacável.

 

Esta manhã,

o genocídio continua

entre o rio

e o mar.

 

O vocabulário não é genocida.

A aniquilação é.

 

Desequilíbrio de poder.

 

David contra Golias,

não Maomé contra Moisés.

 

Uma nação sob vigilância.

Outra em psicose.

 

David contra Golias,

não Maomé contra Moisés.

 

Uma nação sob vigilância.

Outra em psicose.

 

Eu quase mergulhei

de cabeça

do palco

para uma orgia de diplomatas.

 

Olá. Bom dia,

emprego atrás de emprego,

tenho desprezo por este conselho.

 

E de forma mais contundente,

desprezo pela lata.

 

Eles só vão parar

o círculo vicioso e idiota

quando os recintos irromperem

em chamas.

 

Parti um membro

nas manchetes, aparentemente,

deixei uma faca no lugar

e os políticos com narizes vermelhos.

 

Na televisão

o comentador elogiou-me

com adjetivos

mas a minha mãe não está orgulhosa.

 

Ela queria que eu tivesse penteado o cabelo.

 

Procurei sem sucesso

hematomas no status quo

enquanto o táxi se afastava.

 

Procurei sem sucesso

hematomas no status quo

enquanto o táxi se afastava.

 

Muitos telefonemas

e agradecimentos

mas eu sou ingrato

e estou atrasado para a aula.

 

Tapo os meus ouvidos para os aplausos.

 

Não se pode liderar sem pisar

traindo os esqueletos

no seu caminho.

 

Sento-me com o cotovelo na mesa.

Ambições humildes.

 

Fora da janela

um mundo grandioso

e eu não quero nada disto.

Obrigado. Quero falar com vocês sobre Gaza. A 13 de outubro [de 2023], um fotojornalista chamado Ali Jadallah estava a filmar-se enquanto conduzia. Ele estava a falar connosco, a sua audiência, e então moveu a câmara para o banco de trás e mostrou-nos o corpo sem vida do seu pai. Então ele disse: “não há ambulâncias na Faixa de Gaza.” Estou a parafrasear. “Chegamos a um nível catastrófico, vou enterrar o meu pai sozinho. Não há ambulâncias ou pessoas para ajudar no enterro”, diz ele. Depois pede-nos para rezarmos numa cerimónia improvisada.

No dia seguinte, o Ali Jadallah deu uma entrevista a um canal de televisão e descreveu como estava a trabalhar no hospital Al-Shifa. Estava a trabalhar quando ouviu pela primeira vez a notícia de que a sua casa tinha sido bombardeada e de que toda a sua família estava sob os escombros. E que depois de horas a vasculhar os escombros, a sua mãe, ferida e fraturada como estava, foi a única a ser resgatada com vida. Os cadáveres dos seus três irmãos foram recuperados de noite, mas o seu pai e a sua irmã não foram encontrados em lado nenhum. O Jadallah descreveu ao apresentador como o condutor da retroescavadora, que levava a cabo a missão de resgate, anunciou que precisava de ir salvar outras pessoas. A apenas algumas ruas de distância estava outro prédio que havia desabado e o condutor da retroescavadora suspeitava que ainda lá estavam 70 pessoas vivas. Então ele disse ao Ali que precisava de ir. E o Ali disse: “claro, tens de retirar os vivos, eles são a nossa prioridade.”

Tudo isto aconteceu enquanto o Ali estava a trabalhar e, imediatamente a seguir, ele foi dar uma entrevista sobre o que tinha acontecido. E há muitos mais casos de pessoas palestinianas presas nos escombros, muitos mais casos de pessoas em luto no trabalho, assassinadas enquanto trabalham e outras que têm de colocar 30, 40 ou 80 membros da sua família no mesmo obituário. A família Jadallah faz parte das dezenas de milhares de pessoas palestinianas que foram mortas por ataques aéreos israelitas na cercada Faixa de Gaza, desde 7 de outubro [de 2023].

Esta é a data em que muitos/as espectadores/as pareciam ter introduzido “Gaza” no seu vocabulário. A maioria dessas pessoas está a escrever os seus ensaios e os seus artigos em sofás caros e em casas caras, perto de janelas que não são iluminadas por fósforo branco. Os seus candeeiros nunca tremeram como que anunciando as convulsões finais de um edifício. Esses/as escritores/as jamais escrevem os nomes dos seus filhos nos braços para o caso de serem tomados por escombros inesperados.

Estes não são detalhes menores. Mesmo para além desta violência espetacular, o mundano em Gaza ainda é letal, mesmo durante um cessar-fogo a vida em Gaza é abjeta. A maioria dos/as que escrevem sobre Gaza não o fazem em cibercafés abarrotados de jovens e dos seus potenciais abortados. Ou de quartos assombrados pelo suicídio. Este também… não é um detalhe menor.

O que eu estou a tentar dizer é que não há palanques no campo de concentração. Simplesmente não compreendemos as consequências. Simplesmente não compreendemos o que a vida dentro de Gaza faz a uma pessoa. Que tipo de violência essa violência gera. Não sabemos as consequências mentais e musculares de transformar um táxi num carro funerário para entregar um ente querido, agora morto, num saco para cadáveres. Que homem será quando crescer o menino que carrega os membros do irmão numa mochila? E quem nos deu o direito de condená-lo? O que acontece à enfermeira cujo turno é interrompido pelo cadáver do marido numa maca? E o pai que carrega os restos mortais de um filho em dois sacos? O que lhes acontece depois de toda esta morte? Assim que estiverem sozinhos/as e longe das câmaras.

Sabemos que é “inabitável”, conforme declarado pela inútil ONU, e que está sitiada, e que dois terços da população de Gaza é composta por refugiados/as, descendentes de refugiados/as que foram despossuídos/as durante a criação do Estado judeu. Sabemos que metade da população de Gaza é composta por crianças. Muitas delas tiveram os seus calendários marcados por bombardeamento atrás de bombardeamento. Por vezes utilizamos estes factos para contextualizar a violência proveniente de Gaza. Mas, frequentemente, estes factos são ofuscados para despolitizar e mistificar essa violência. Mas a materialidade desses fatos e números não é realmente disputada por nós ou pelos nossos inimigos. Recitamos os números como se fossem a meteorologia. Cuspimos a palavra “inabitável” sem realmente compreender o facto de Gaza ser um lugar como nenhum outro.

Aqui está uma faixa de terra cercada pela abundância que lhe é devida. No entanto, as pessoas vivem na escassez, privadas de água, de comida e de passagem. Os meninos nesse mundo são homens e as meninas são homens. E as mulheres também são homens. Não apenas homens, mas também combatentes que, do ponto de vista do franco-atirador, parecem estar a planear um segundo Holocausto. Todas as pessoas em Gaza são potenciais terroristas e, portanto, um alvo legítimo. Palavras como agonia e brutalidade são ineptas aqui. Não há como compreender isso.

Eu moro em Jerusalém. Bem, metade do ano, não contem ao governo. Mas eu moro em Jerusalém, cresci em Jerusalém. E se medirmos apenas pela distância, a minha casa fica a uma hora de Gaza. Mas por causa do bloqueio, Gaza parece ser um planeta distante, estranho até mesmo para os/as vizinhos/as palestinianos/as. O isolamento deliberado e sistemático da Faixa traduziu-se numa compreensão ciclicamente insípida da sua realidade, particularmente na indústria mediática.

O padrão da indústria é desumanizar os/as palestinianos/as. A nossa dor é insignificante, a nossa raiva é injustificada. A nossa morte é tão quotidiana que os/as jornalistas falam dela como se estivessem a dar notícias sobre o clima. “Céu nublado, aguaceiros fracos e 3.000 palestinianos/as mortos/as nos últimos dez dias.” E tal como o clima, apenas Deus é responsável. Não são os colonos armados, nem os ataques calculados de drones. Parece que os/as produtores/as nos convidam não para nos entrevistarem sobre as nossas experiências, ou para que analisemos o contexto, mas para nos interrogarem. Eles/as testam as nossas respostas numa relação com os preconceitos dos/as espectadores/as. Preconceitos bem alimentados durante anos de retórica islamofóbica e anti-palestiniana. As bombas que caem sobre a cercada Faixa de Gaza tornam-se secundárias, se não totalmente irrelevantes, para os nossos julgamentos transmitidos em direto.

Há um prisioneiro político egípcio chamado Alaa Abd el-Fattah. Ele escreve no seu livro: “Se eu fosse livre em Gaza em vez de estar preso no Cairo, leria livros, caminharia na praia, trabalharia e ganharia a vida.” E eu sempre brincava com esse trecho e dizia que não se pode romantizar o cerco. O seu sentimento é inegavelmente digno e mesmo belo. Ele diz que “Gaza está cercada, mas não foi capturada e a diferença é enorme.” Ainda assim, eu proponho estas palavras: pode alguém encobrir um céu bloqueado por arame farpado? O que é isso senão o cativeiro? Sabem, eu ouvi e repeti que aqueles/as confinados/as por um cerco ou na prisão podem-se emancipar na mente. Antes de escavar um túnel para fora da prisão, é preciso primeiro imaginá-lo. Portanto, talvez a Palestina tenha ensinado ao Alaa o que ensinou a muitos/as de nós, que aqui o significado simbólico das barreiras militares não se estende além da factualidade material do seu cimento. Mas o que o Alaa nos demonstra corajosamente em relação às pessoas palestinianas em Gaza é o que ele tem em comum com elas. A rejeição das realidades impostas, a recusa em morrer enquanto espera.

Para terminar queria apenas falar sobre uma pessoa, um querido amigo, mas realmente uma figura de autoridade que também se recusou a morrer enquanto esperava.  Muitas pessoas aqui falaram hoje sobre ele, Refaat Alareer. A última vez que soube de alguma coisa, o Refaat ainda estava sob os escombros. Vocês sabem, esta frase não deveria ser entendida literalmente. Mas nela não há qualquer metáfora ou hipérbole. Não há poesia nesta frase. O Refaat ainda está sob escombros e não está sozinho nessa asfixia. Milhares de pessoas em Gaza continuam soterradas sob escombros, mas os aviões ainda levantam voo. As pessoas ainda viajam. E o pior de tudo é que os pássaros ainda migram. Eu verifiquei esta manhã.

Disseram-me que é uma blasfémia perguntar porque é que Deus ainda não apareceu. Mas é difícil manter uma fé que não manteve o meu povo. O Refaat ainda está sob os escombros e acho que não entendo… o peso desta frase. Dizem que existem sete estágios de luto e até agora todos eles foram a descrença. Se eu, a partir de aqui, ler um obituário, se eu vos disser que o Refaat Alareer foi um poeta e professor nascido em 1979 em Gaza, em Shuja’iyya, que tirou o seu bacharelato em Inglês na Universidade Islâmica de Gaza (que, por sinal, foi completamente destruída por ataques aéreos israelitas), e o seu mestrado na UCL [University College London], aqui em Londres (que, por sinal, se recusou a comentar o seu assassinato). E ele também tirou o seu doutoramento e cofundou a We Are Not Numbers e coeditou o livro Gaza Writes Back. E, e, e, e… e foi um dos poucos a enviar-nos fragmentos de notícias e análises apesar do apagão aos media e, e, e… e se eu ficar aqui e ler um obituário, se eu decorar este elogio fúnebre com palavras gentis, com o tipo de adjetivos glamorosos com que presenteamos os/as nossos/as amigos/as apenas depois de terem morrido, eu estaria a prestar um péssimo serviço a todos/as nós. Afinal, este é um homem que adorava praguejar e brincar mesmo quando as bombas caíam, que nos fazia rir talvez mais ainda enquanto as bombas caíam. Portanto, não me vou entregar a um bom gosto sem sentido, porque ele deu-nos gargalhadas, estrondosas gargalhadas quando o mundo ordenou que nos encolhêssemos e que sussurrássemos.

Quando propagandistas israelitas fizeram uma afirmação ridícula de que os combatentes palestinianos tinham assado um bebé no forno (algo que, aliás, os militares israelitas negaram… já que muitos de vocês preferem ouvi-lo quando é dito pela “boca do cavalo”), o Refaat brincou no Twitter e perguntou: “com ou sem fermento?” E muitas, muitas pessoas usam isso contra ele, como uma espécie de acusação. Mas, para mim, isso é tão corajoso, tão engraçado e tão humano, poder brincar diante de tanta manipulação. A afirmação feita sobre assar um bebé no forno é tão traiçoeira porque invoca um crime real que ocorreu durante o massacre de Deir Yassin. [Essa afirmação replica] os testemunhos [palestinianos] que viram soldados sionistas a atirarem um pai e o seu filho para dentro de um forno. O que fazer com tanta manipulação? O Refaat satirizou-a.

Eu também não me quero sentar aqui e apresentar um retrato de uma vítima perfeita, porque as vítimas perfeitas são aborrecidas e impossíveis. E o Refaat foi tão corajoso, engraçado, interessante e cheio de humanidade, e quando tentamos evocar vítimas perfeitas estamos a diminuir o alcance da humanidade para toda a gente ao nosso redor. Quando tentamos ditar quem é e quem não é passível de luto, quem podemos e quem não podemos chorar, quando enfatizamos a morte de mulheres e crianças como se a morte dos nossos homens não fosse dolorosa, estamos a encolher a dimensão da humanidade para toda a gente.

Então, antes de vos deixar, só quero convidar toda a gente nesta sala a ser um pouco mais corajosa, a ser um pouco mais humana, a ser um pouco mais imperfeita, a satirizar, ridicularizar e gozar porque não há nada mais precioso do que o riso. E não podemos deixar esta tempestade passar por nós. Não podemos ser meros/as espectadores/as neste genocídio. Todos/as temos um papel ativo a desempenhar. Ali mesmo, ali, estão a ser sujeitos/as a um genocídio, mas aqui estamos em guerra e cada um/a de nós tem um papel ativo a desempenhar. Muito obrigado.

Mohammed El-Kurd, 13 de dezembro de 2023, Londres (Palestine Festival of Literature)

por Bruno Costa
A ler | 5 Março 2024 | Gaza, guerra, Israel-Palestina, Mohammed El-Kurd, poesia