Imaginar a libertação: três textos de Walid Daqqah

Desde 1967 Israel manteve mais de 1 milhão de palestinianos como presos políticos na sua rede de cadeias, centros de detenção e de tortura que se espalham por todo o território da Palestina histórica (Cisjordânia, Jerusalém Oriental, Faixa de Gaza e Israel), um território também ele transformado, de diferentes formas, em prisão para os cerca de 7 milhões de palestinianos que aí vivem (para além dos 7 milhões no exílio). No contexto do genocídio em curso na Palestina, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um relatório no qual refere que em junho de 2024 estavam presas mais de 9400 pessoas palestinianas por “razões de segurança”, a designação atribuída por Israel a todos os presos políticos palestinianos. No mesmo relatório, são descritas múltiplas formas de tortura criminosa e desumanizadora aplicadas a essas pessoas, algo que os representantes políticos israelitas não se dão sequer ao trabalho de negar – recentemente, um parlamentar do partido de Benjamin Netanyahu, o Likud, defendia fervorosamente numa comissão parlamentar o uso da violação como método de tortura. Destas mais de 9400 pessoas, pelo menos 53 morreram sob custódia israelita desde o dia 7 de outubro de 2023 ou, melhor dizendo, foram assassinadas pelo sistema carcerário colonial, cuja função é roubar, das mais variadas formas, o tempo, a esperança e a vida, não apenas a quem está detido, mas a toda a sociedade palestiniana, seja porque todas as pessoas palestinianas têm algum tipo de relação (conjugal, familiar, de amizade, de vizinhança, etc.) com, pelo menos, um preso político, seja porque a perspetiva de serem presas aparece sempre e sem exceção como um horizonte mais do que possível, provável. Como diz Walid Daqqah, “o alvo é o amor”. Eu acrescentaria que o objetivo é instalar o medo e a permanente sensação de derrota e de impossibilidade.

Citei-o antes de o apresentar e talvez isso seja o mais justo, já que o pensamento escrito de Daqqah, como literatura ou ensaio, representa uma das formas mais sensíveis do amor palestiniano partilhado como consciência coletiva. Nascido a 18 de julho de 1961, em Baqa al-Gharbyya, situada nos territórios ocupados pelo movimento sionista em 1948, foi preso a 25 de março de 1986, com 24 anos de idade, acusado de ter participado no rapto de um soldado israelita. Se usarmos a medida convencional do tempo, ele resistiu durante 38 anos dentro das prisões coloniais, se usarmos como medida o que ele descreve como tempo paralelo, Daqqah viveu 13.893 dias. Em 2012, no mesmo ano em que lhe foi diagnosticada uma doença grave, a sua sentença foi fixada em 37 anos de prisão, mas as autoridades coloniais negaram-lhe tratamento adequado e a liberdade e depois de, em 2022, a doença ter evoluído para um tipo de cancro raro na medula óssea, fizeram de tudo para que a morte física chegasse antes do fim da sua pena –uma “política de matança lenta” como lhe chamou a sua esposa, Sanaa Salameh. Essa política, contudo, não terminou depois da sua morte física. Como zombie colonial alimentado pelo ressentimento, violência e morte, o Estado de Israel retém o corpo de Daqqah até ao dia de hoje, 3 de agosto de 2024, num sequestro post mortem comum a vários presos políticos e que serve como mais um método de punição coletiva que atinge famílias e comunidades inteiras. A medíocre vingança dos colonizadores não é única a Daqqah, mas parte de um processo estrutural de “educação” através da violência. Ele, como outros presos políticos, fazia questão de existir como desafio e provocação, não apenas ao sistema carcerário, mas ao projeto colonial como um todo. O Estado de Israel nunca o perdoou por se ter libertado tantas vezes sem passar pelos mecanismos coloniais de controlo jurídico e temporal.

Walid Daqqah libertou a sua imaginação das amarras carcerárias através dos vários textos publicados como atos de amor e libertação coletiva, a “humilde e única vitória sobre quem [o] prendeu”. Nesses textos podemos encontrar também sofisticadas análises de quem foi trancado numa prisão antes das duas Intifadas e do Processo de Oslo, mas que, como poucos, compreendeu a relação laboratorial entre o sistema carcerário israelita e a colonização da Palestina – a prisão que é colónia que é prisão. Para o revolucionário, intelectual e autor palestiniano as prisões israelitas são um microcosmo do contexto político e geográfico mais amplo, onde a partir de uma temporalidade particular se testam e tentam produzir modos de subjetivação individual e (des)identificação coletiva com enorme impacte num tecido social palestiniano sempre sob ameaça de maior fragmentação. Tudo isto, alerta o autor, potencia o encarceramento da imaginação coletiva palestiniana e ajuda a determinar as condições, os caminhos e as possibilidades da luta pela libertação da Palestina.

Como vários dos seus camaradas, terminou na prisão uma licenciatura e um mestrado, contudo, o evento que talvez mais aproximou Daqqah da liberdade veio com o nascimento da sua filha Milad, em 2020. Milad, que significa precisamente “nascimento”, é a materialização da recusa do revolucionário em ser determinado, como humano e como palestiniano, por quem tem a chave da sua cela. Ao verem-lhes ilegalmente negadas as visitas conjugais, ele e a sua companheira decidiram contrabandear o seu esperma para fora da prisão, uma tática adotada por vários presos políticos palestinianos na mesma situação. Os serviços de inteligência israelitas consideraram Milad, mesmo antes do seu nascimento, como caso de “segurança nacional”, contudo, na carta que escreveu a 26 de março de 2011 para a sua filha, ainda ideia e sonho, Daqqah fala dela como fuga do tempo paralelo e como possibilidade de nascimento do futuro, um que não seja determinado pelo colonizador:

Escrevo para uma criança, ainda por nascer…

Escrevo a uma ideia ou a um sonho que, intencionalmente ou não,

amedronta quem me mantém preso; 

mesmo antes de se tornar realidade,

escrevo a uma criança,

escrevo a uma criança que ainda não nasceu,

escrevo ao nascimento (Milad) do futuro.

É assim que queremos chamar a nossa filha,

e é exatamente assim que eu gostaria que o futuro nos reconhecesse […].

Deixarei eu de sonhar?

Continuarei a sonhar apesar desta realidade cruel,

procurarei um sentido para a vida apesar do que já perdi.

Eles escavam os cemitérios de ancestrais em busca de uma autenticidade delirante,

enquanto nós procuramos um futuro melhor para os nossos netos;

algo que certamente virá.

Salaam Milad, salaam minha querida.

7 de abril de 2024 é o dia que marca a morte física de Abu Milad, responsabilidade única dos que mobilizam desde há mais de cem anos o sistema carcerário colonial na Palestina, com destaque para a entidade sionista, projeto que apenas conhece a linguagem da morte e da tortura. Pelo contrário, os seus textos ficarão como contributos fundamentais para uma pedagogia do amor e da libertação. Apesar do revolucionário ter morrido dentro de uma prisão e de ser mais um corpo triturado pela máquina de opressão sionista, uma parte dele, Milad, libertou-se da cela e foi acompanhada, a 6 de setembro de 2021, por mais 6 presos políticos palestinianos que, com uma colher, escavaram um túnel para o exterior do complexo prisional de Gilboa. Eles, como Daqqah, recusaram que a prisão encarcerasse a sua imaginação e esperança e, com eles, transportaram Daqqah para fora da prisão. Passados 13 dias, todos os presos que se libertaram tinham voltado a ser detidos, mas o colonizador nunca mais lhes podia tirar aqueles momentos partilhados com a Palestina. O seu ato de libertação rompeu as barreiras físicas e alimentou, sobretudo, a imaginação coletiva de todos os palestinianos. Ao romperem o cerco, uma e outra vez, os palestinianos transportam a libertação da Palestina como realidade e é precisamente isso que corrói o colonizador por dentro e que não o deixa dormir.

Apresento, por fim, a tradução de três cartas/ensaios de Walid Daqqah – que, como todos os seus textos, tiveram de ser libertados da prisão antes de chegarem ao público. Quero, com isso, partilhar um pequeno fragmento da obra do revolucionário palestiniano em português, estando ciente de que o ato de tradução implica transformação. Contudo, como o entendo, essa não é apenas uma transformação do texto, mas também de quem o lê e tem de se libertar das amarras coloniais para o compreender. Se Daqqah imagina e põe em prática a libertação da Palestina nós não podemos apenas ler o texto, mas somos obrigados a imaginar com ele e convidados a agir com ele.

Na Cisjordânia, duas pessoas palestinianas contrariam as barreiras impostas pela entidade colonial sionista. Fonte Bruno Costa, 2019.Na Cisjordânia, duas pessoas palestinianas contrariam as barreiras impostas pela entidade colonial sionista. Fonte Bruno Costa, 2019. 

— tradução de três textos de Walid Daqqah —

 

TEMPO PARALELO: UMA CARTA ESCRITA POR WALID DAQQAH NO VIGÉSIMO ANO DO SEU CATIVEIRO

25 de março de 2005.

Meu querido irmão, Abu Omar, saudações.

Hoje, dia 25 de março, é o primeiro dia do meu vigésimo ano em cativeiro. Hoje é também o aniversário de um dos jovens camaradas, que completa vinte anos. Esta “ocasião” leva-me a pensar: quantos anos tem a Lina atualmente, agora que é mãe de dois filhos? Quantos anos tem a Najlaa, agora que é mãe de três filhos, ou a Haneen, que tem uma filha… E a Ubaida, que foi estudar para a América e se despediu da sua adolescência sem que eu me despedisse dela… Quantos anos têm os meus sobrinhos e sobrinhas, alguns dos quais deixei ainda quando crianças no dia em que fui preso, outros que nasceram anos depois da minha prisão… Quantos anos têm os meus irmãos mais novos, que agora estão casados e têm os seus próprios filhos?

Não me tinha feito essas perguntas até agora. O tempo, enquanto conceito geral, e o quanto dele passou, não me preocupam. Tenho-me preocupado muito mais com a rapidez com que passam os minutos das breves visitas familiares, que nunca são suficientemente longas para a lista de notas e tarefas rabiscada na palma da minha mão, aquelas que sem a caneta e o papel proibidos durante as visitas exigem um grande esforço de memória da Sanaa. A memória é o nosso único meio de recordar. E eu esqueço-me de contemplar as rugas que começaram a marcar o rosto da minha mãe há anos, e esqueço-me de contemplar os seus cabelos, que ela começou a pintar com hena para esconder as brancas, para que eu não lhe perguntasse a sua verdadeira idade.

A sua verdadeira idade…? Não sei a verdadeira idade da minha mãe. A minha mãe tem duas idades: a idade cronológica, que desconheço, e a idade de detenção. Pode dizer-se que a idade dela em tempo paralelo é de dezanove anos.

Escrevo-te a partir do tempo paralelo. Aqui, onde o espaço é constante, só usamos as vossas unidades comuns de medida do tempo (como os minutos e as horas) quando as nossas linhas temporais colidem na sala de visitas. Só então devemos utilizar as vossas unidades de tempo que, em todo o caso, são as únicas que permanecem inalteradas no vosso tempo e que nós ainda nos lembramos de como usar.

Ouvi dos jovens que chegam da Intifada, e também fui pessoalmente informado, sobre as muitas mudanças no vosso tempo. Ouvi dizer que os telefones já não têm botões para marcação e que agora funcionam com um cartão, e ouvi dizer que agora os pneus dos carros não têm câmara de ar.

Gosto deste novo sistema de pneus, de como o próprio material contém as suas fugas internas automaticamente, autocontido para evitar fugas. É como o preso que muitas vezes não tem outra escolha senão resistir às “unhas” de quem o prendeu através da autorreparação. Aprendemos que “o nosso condutor”, “os nossos condutores”, não deixam nem um prego na estrada sem o pisarem, nem uma lomba sem nos fazerem bater nela, pensando que estão a apanhar um atalho. Não se trata apenas de os nossos condutores serem imprudentes, mas antes de considerarem este tipo de “pneu” um dado adquirido, como se não fosse feito de carne e osso, como se não tivesse qualquer finalidade. Fomos reduzidos a dinheiro e negociados no mercado da política. Peguem em alguns pneus e dêem-nos um bocado de veículo. Para que servem os “pneus” sem o “veículo”?

Espero que as lideranças palestiniana e árabe melhorem. Espero que o nosso povo e que as suas forças políticas adotem o modo de reforma autorreparável, sem precisarem de falsos mecânicos como os americanos e outros que hoje estão a causar estragos no Líbano.

No entanto, se devemos falar de política (mesmo que eu, especificamente, não o quisesse fazer hoje): existimos no tempo paralelo, onde vos vemos, mas onde vocês não nos veem, onde vos ouvimos, mas onde vocês não nos ouvem. É como se entre nós houvesse uma divisória de vidro com a superfície escurecida apenas do vosso lado, como nas janelas dos carros de VIPs. Alguns de nós passaram a exalar a arrogância de verdadeiros VIPs. Conseguiram convencer-nos de que somos VIPs.

E porque não deveria ser assim?! O prestígio da nossa situação certamente que o exige. Em todo o mundo existem Estados e governos que têm reclusos. Exceto nós. Nós somos reclusos que têm um ministério num governo sem Estado.

Para quem não sabe, nós que estamos no tempo paralelo, estamos no tempo anterior ao fim da Guerra Fria e ao colapso da União Soviética e do seu campo socialista. Estamos no tempo anterior à queda do Muro de Berlim, antes da primeira, da segunda e da terceira Guerras do Golfo, antes de Madrid e de Oslo, antes da eclosão da Primeira e da Segunda Intifadas. No tempo paralelo somos tão velhos quanto esta revolução –antes de as suas muitas fações surgirem, antes dos canais árabes de televisão por satélite, antes de a cultura do hambúrguer ter tomado as nossas capitais, antes dos telemóveis, dos sistemas de comunicação modernos e da internet. Fazemos parte da história, e a história é obviamente um estado de acontecimentos passados que terminaram. Exceto para nós. Para nós, a história é um passado contínuo que nunca termina. Comunicamos convosco a partir deste passado que é presente para que não se torne no vosso futuro.

O nosso tempo é diferente do vosso; o tempo aqui não se desloca ao longo do eixo passado-presente-futuro. O nosso tempo, que flui enquanto o espaço repousa, retirou da nossa linguagem os conceitos de tempo e de espaço convencionais ou, se quisermos, confundiu-os. Aqui, por exemplo, não perguntamos quando ou onde nos podemos encontrar, porque nos encontramos sempre no mesmo lugar. Aqui viajamos à vontade, indo e voltando ao longo do eixo do passado e do presente. Para lá do presente, cada momento é um futuro desconhecido com o qual já não podemos lidar. O nosso futuro está fora do nosso controlo, tal como o futuro de todos os povos árabes – com uma diferença crucial: enquanto os nossos ocupantes são estrangeiros, os guardas deles são árabes. Estamos em cativeiro porque buscamos o futuro, enquanto o futuro deles foi enterrado vivo.

No nosso tempo paralelo a maioria de nós não tem respostas para uma pergunta normalmente feita às crianças: o queres ser quando fores grande? Aos 44 anos ainda não sei o que quero ser quando for grande!

Se o tempo é a dimensão móvel da matéria e o espaço é a sua constante então, no tempo paralelo, representamos unidades de tempo. Somos o tempo que se debate com o espaço, em contradição interna com ele. Tornámo-nos as unidades do nosso tempo, os pontos do seu eixo: o ponto em que fulano foi detido, o ponto em que foi preso, o ponto em que foi solto. Estas são as coordenadas temporais que importam nas nossas vidas no tempo paralelo. Sabemos como definir a hora, o dia e a data de acordo com os vossos padrões, mas não o fazemos. Em vez disso usamos “o dia em que fulano entrou na prisão” ou “o dia antes (ou depois) de fulano ter sido libertado”. E, porque não sabemos quando outra pessoa será presa ou transferida, não temos forma de marcar o futuro no nosso eixo temporal. Por isso pedimos emprestadas as vossas unidades de tempo para falarmos do futuro. O vosso é o tempo real. O vosso é o tempo do futuro.

Na dialética da nossa relação com o espaço passamos a formar estranhas relações com os objetos no tempo paralelo, decifráveis apenas para aqueles que nele estão cativos. Como podemos explicar a ligação entre um recluso e a t-shirt que vestia quando foi detido? Como podemos explicar a intensidade do nosso apego a objetos específicos cuja perda traz sofrimento e mesmo lágrimas? Objetos como um isqueiro em particular ou um maço de tabaco deixam-nos tão emocionados porque foram os últimos bens que possuímos no “futuro”. Eles são afirmações de que um dia estivemos fora deste tempo paralelo, são a prova de que pertencemos ao vosso futuro. Longe de serem bens de consumo descartáveis, eles transcendem a materialidade. Representam o agarrar-se a qualquer coisa por quem se afoga nas profundezas do tempo paralelo.

Em 1996 ouvi a buzina de um Subaru pela primeira vez em dez anos e chorei. A buzina de um carro no nosso tempo não serve para alertar os peões, mas para despertar as mais profundas emoções humanas.

Tal como acontece com os objetos, formamos uma estranha relação com o espaço no tempo paralelo. Aqui podemos unir-nos com as manchas de água no teto da cela, com a fenda na parede ou com a fresta na porta.

De que outra forma poderíamos dar sentido ao seguinte diálogo, cujo fervor, ritmo e paixão são mais consentâneos com uma conversa sobre as portas do paraíso do que com uma sobre as fendas de uma cela de prisão?

Preso 1: O bloco número 4 desapareceu… Ah, se pudéssemos voltar aos bons velhos tempos do bloco 4.

Preso 2: Compreendo o que dizes, mas a melhor coisa do bloco número 4 era a cela número 7.

Preso 1: (Suspira profundamente enquanto se relembra e interrompe) Já sei o que vais dizer… aquela cela permitia ouvir coisas, especificamente o barulho dos carros na autoestrada durante a madrugada.

Preso 2: (Também interrompe) E muito mais do que isso. Lembras-te da porta da cela? Aquela porta!! Entre a porta e a parede, ao longo das dobradiças, havia uma fresta com cerca de 2cm de largura… e da tua cama via-se o corredor inteeeeeiro, mesmo até o fim.

Preso 1: Pá, para que servem as palavras… o bloco 4 foi mesmo o melhor.

Quão simples os sonhos, quão grandioso o ser humano, quão pequeno o lugar, quão grande a ideia.

Hoje não estava a planear escrever sobre o tempo e sobre o espaço, ou sobre o tempo paralelo, ou sobre qualquer coisa relacionada com política ou filosofia. Pretendia escrever sobre as minhas preocupações, sobre as coisas que adoro e sobre aquelas que detesto. Contudo, a minha escrita improvisada assemelha-se à minha vida improvisada. Confesso que nada foi planeado. Não existia qualquer plano para que me tornasse ativista, militante, ou para que me envolvesse com qualquer questão política. Não porque achasse que havia algo de errado com esses caminhos. Para mim, a política não era um assunto reprovável como o é para alguns, no entanto, parecia-me complexo e imenso. Não sou um ativista ou um político premeditado. Podia simplesmente ter continuado a ser pintor da construção civil ou funcionário de uma bomba de gasolina como era até ser preso. Como muitos, podia ter casado jovem com uma das minhas parentes e ela podia ter-me dado sete ou dez filhos. Podia ter comprado um camião de carga, aprendido a vender carros e a trabalhar como cambista. Tudo isto podia ter sido possível, até que testemunhei as atrocidades e massacres da Guerra do Líbano. Sabra e Shatila perturbaram-me profundamente.

Deixar de me sentir perturbado e desnorteado, deixar de sentir a tristeza das pessoas (de qualquer pessoa), ficar entorpecido perante atrocidades (quaisquer que elas sejam) – isto tornou-se no meu inimigo quotidiano, a forma como media o meu sumud e a minha firmeza. A essência mental de uma pessoa é a sua vontade, a sua essência física é o seu trabalho e a sua essência espiritual é a sua capacidade de sentir. Ser capaz de sentir pelo outro, sentir a dor da humanidade, é a essência da civilização.

É esta mesma essência que é tornada em alvo na vida de um preso, hora após hora, dia após dia, ano após ano. Nós não somos visados, em primeiro lugar, como seres políticos, também não o somos como seres religiosos nem como consumidores a quem os prazeres da vida material são negados. Podemos adotar qualquer convicção política, praticar qualquer ritual religioso e ter muitas necessidades de consumo satisfeitas. O alvo principal é o ser social, o humano que existe dentro de nós.

O alvo é qualquer relação que possamos ter fora de nós, com outras pessoas, com a natureza – até mesmo com um guarda prisional como outro ser humano. Eles fazem de tudo para que os odiemos. O alvo é o amor.

No meu vigésimo ano de cativeiro, confesso que ainda não sou bom a odiar nem com a dureza que a vida na prisão pode impor. Confesso que ainda sinto uma alegria inocente pelas coisas mais simples. Uma palavra simpática, um elogio, qualquer incentivo encher-me-á de alegria. Confesso que o meu coração palpita ao ver uma rosa na televisão, ou uma cena da natureza, ou o mar. Assumo que apesar de tudo estou feliz. Não sinto falta de nenhum dos prazeres da vida, com duas exceções: ver as crianças reunidas de manhã na aldeia enquanto vão a caminho da escolha; ver os trabalhadores a saírem de becos e de bairros em direção ao centro da cidade, a caminho do local de trabalho numa manhã fria e enovoada de inverno. E assumo que nenhuma destas emoções, que nenhum deste amor persistiria sem o amor da minha mãe Farida, da Sanaa, a minha esposa, do meu irmão Hosni, ou sem a ajuda da família, dos amigos e dos entes queridos.

Confesso que ainda sou uma pessoa apegada ao amor como se este fosse uma brasa. Permanecerei firme neste amor. Continuarei a amar-te, pois o amor é a minha humilde e única vitória sobre quem me prendeu.

Os meus cumprimentos… Milad.

SENHOR, DÊ-ME UM CIGARRINHO

É de manhã e oiço o barulho de dois pares de algemas quando o guarda se aproxima de nós. Ele atira-as para o chão, fazendo-as tilintar contra o cimento, e uma sensação de calma invade a sala. Uma série para amarrar as mãos e outra, com correntes mais compridas, para amarrar as pernas. Oito pares de algemas de cada tipo para sete reclusos.

Fico com os outros no meio de um pequeno pátio rodeado de celas e tento apoiar-me na parede. Estou farto de ser transferido entre prisões desde que iniciámos a greve de fome. Reúno energias e tento respirar o máximo de ar possível, preparando-me para uma viagem que levará horas dentro de uma caixa de ferro que, com este calor, rapidamente se transforma num forno insuportável.

Assim que termina de nos algemar, o guarda dirige-se para o veículo de transporte de prisioneiros. E, de seguida, oiço uma voz a emanar da cela atrás de mim…

“Senhor, dê-me um cigarrinho”. Espreito na escuridão da cela, mas não consigo ver ninguém e, por instantes, penso que estou a delirar. Em seguida, a voz sai novamente da cela, desta vez mais alta e desesperada: “Senhor, oh senhor, dê-me um cigarrinho!” Volto a olhar para a cela e dirijo-me à voz.

“Onde estás?!”

“Estou aqui, cá em baixo!”

Curvando-me espreito pela frincha na parte inferior da porta –por onde os presos recebem a comida e lhes são amarradas as mãos antes de serem libertados– e vejo uma criança com não mais de doze anos de idade. Uma criança a pedir um cigarro.

Eu não sabia como lhe responder. Deveria dar-lhe um cigarro, pensei, ou deveria educá-lo sobre os malefícios do tabagismo, da mesma forma que os adultos fazem com as crianças fora da prisão? Adultos, adultos… e depois fico impressionado com o fato de me incluir nesta categoria. Pelo fato de me tratar por “senhor”. Já estou assim tão velho?

De repente fico apavorado ao ser abordado desta forma. Foi a primeira vez, durante os meus 26 anos de prisão, que alguém tão distante da minha idade me abordou desta forma. Nas prisões estamos habituados a não nos interpelarmos desta forma, com honoríficos a demarcarem a nossa idade. Independente da nossa diferença de idades, todos nos referimos uns aos outros como “meu irmão” ou “camarada” e, mais recentemente, como “combatente”.

Considerei a criança e senti empatia pelo seu desejo por um cigarro. Esse desejo não está relacionado com a nicotina, mas com a conotação que o cigarro tem. Assustada, uma criança no duro mundo da prisão quer fazer-se homem rapidamente. Já eu, neste momento, desejo recuar no tempo para poder voltar a ser uma criança, ou pelo menos um jovem, como era quando entrei na prisão há mais de um quarto de século.

Estávamos os dois com medo. Eu estava com medo do tempo que tinha passado e ele estava com medo do tempo que ainda não passou. Eu tinha medo do passado e ele tinha medo do futuro. Eu estava com medo de ter queimado uma vida na prisão, ele estava com medo de que o cigarro agora alojado entre os seus lábios não ardesse. O cigarro transformou-se noutra coisa depois de ele o ter fumado e ele também, agora em bicos de pés parecia mais velho do que realmente era. O brilho da brasa na sua mão transformou-se numa lanterna, afugentando a escuridão da cela e dissipando o seu medo e a sua solidão.

Não estava simplesmente a fumar, mas a tentar dissipar a imagem de criança que tão claramente se adequava a ele. No mundo da prisão, perante a crueldade dos guardas, a infância é um fardo. Sabendo que iria enfrentar anos de prisão ele procurava livrar-se da sua vulnerabilidade e inocência, agora inúteis – não fizeram qualquer diferença para o juiz que o condenou a quatro anos de prisão.

O guarda voltou para nos levar, apanhou o oitavo par de algemas do chão de cimento e gritou para a criança enfiar as mãos pela frincha da porta. A criança fê-lo enquanto ainda segurava o cigarro por entre os dedos. O guarda gritou-lhe para que largasse o cigarro e depois murmurou para si em hebraico, lamentando a imagem de uma criança a fumar. Mesmo assim prosseguiu com as algemas, mantendo-se imperturbável ao ver aquelas pequenas mãos atadas. No entanto, como os pulsos eram demasiado pequenos, lutou repetidamente para fechar as algemas e decidiu, finalmente, usá-las para acorrentar as pernas do rapaz.

Quando foi retirado da cela, em preparação para o transporte, olhei para ele e imaginei que ali estava o meu próprio filho, aquele que o destino ainda não tinha querido trazer ao mundo. Queria com todo o meu ser abraçá-lo e, à medida que estes sentimentos paternais iam crescendo, senti uma vontade irresistível de chorar. Mas dissimulei os meus sentimentos. Eu não queria destruir a imagem do homem em que o rapaz procurava se tornar. Fui ter com ele para lhe apertar a mão como a de um camarada ou de um rival e perguntei:

“Como estás combatente?”

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UM LUGAR SEM PORTA

Um dia, depois de ela ter regressado de uma viagem à costa, prometi a Milad por telefone que seria eu a levá-la da próxima vez. Ela parou por alguns segundos, hesitante, como se não me quisesse abalar, antes de finalmente responder: “Não, tu não tens porta”.

Durante muito tempo, sempre que a Milad me perguntava ao telefone: “Papá, onde estás?” evitei usar a palavra “prisão”. Temia que fosse demasiado para ela, na sua tenra idade, começar a viver com esta palavra e com as suas pesadas implicações. Dividido, debati-me com a questão: Deveria eu, mesmo assim, contar a verdade à minha filha? Ou deveria esconder a amarga realidade, para evitar que as conotações da palavra prisão se instalassem na sua imaginação?

Através das suas visitas, a Milad compreendeu o que é uma prisão, muito antes de aprender o significado da palavra. Para ela era um lugar sem porta. Ali o seu pai estava confinado e de ali não podia sair. E, para ela, se não houvesse porta não poderia haver visita ao oceano. Não haveria pequeno-almoço para partilhar. E muito menos qualquer hipótese de eu a acompanhar à creche que ela carinhosamente chamava de “escola”.

Desde os primeiros momentos das suas vidas, as nossas crianças compreendem a realidade dos muros, das barreiras e dos postos de controlo. Fazem-no muito antes de serem apresentadas à palavra “ocupação”. Por isso, colocamos a nós mesmos uma questão incómoda, mas também determinante para a sua educação: Como podemos transformar o sentimento opressor criado por esta realidade numa força de ação positiva, numa força que possa contribuir para o crescimento construtivo das suas personalidades em desenvolvimento?

Enquanto pensava se deveria usar a palavra “prisão” com a Milad, começaram a surgir memórias dos meus anos de cativeiro. Durante estes anos convivi não apenas com uma, mas com três gerações de presos: o pai, o filho e o neto. Talvez seja a omnipresença das prisões na vida das crianças que, com as visitas frequentes a familiares encarcerados, as traz de volta aos confins destes espaços fazendo delas próprias prisioneiras. Numa das minhas histórias de vida na prisão, intitulada “Senhor, dê-me um cigarrinho”, uma criança reclusa de 12 anos pediu-me um cigarro. Em circunstâncias normais, fora dos muros da prisão, eu teria dito que não. Não queremos que as crianças fumem. Mas neste ambiente ocorreu-me que a criança queria, com este pedido, crescer rapidamente para que pudesse enfrentar melhor os anos de confinamento que tinha pela frente, ou talvez apenas quisesse recuperar da violência envolvida na sua detenção. Através do ato de fumar parecia proclamar “observem-me, agora adulto”. Assim, entreguei um cigarro à criança. E, na presença da Milad, pronunciei finalmente a palavra “prisão”. No final, segui a deixa da Milad, foi ela que me ensinou a importância da honestidade e da verdade na educação dos filhos. Não importava se ela me ouvia a dizer “prisão”, no seu coração ela já tinha dado sentido a essa palavra. É um lugar sem porta.

por Bruno Costa
Mukanda | 3 Agosto 2024 | guerra, israel, liberdade, nascimento, ocupação, palestina, poesia, prisão, Walid Daqqah