Lerbd – El cielo en la cabeza. Antonio Altarriba, Sergio García, Lola Moral (Norma Editorial)
El cielo en la cabeza é o retrato de um jovem, Nivek, numa travessia dolorosa desde as minas de coltan na República Democrática do Congo até a uma qualquer avenida espanhola. É a história de uma migração, de uma transformação, e de vários crimes. Alguns deles, de que somos cúmplices. A RDC não é “África”. Espanha não é a “Europa”. Nivek não é “todos os emigrantes”. Mas essa defesa de querer ler este livro como individualizado não será senão uma defesa da nossa parte (“nossa”, em meu nome, de europeu privilegiado), de que “não somos todos assim”. Mas este sofrimento é colectivo, e a sua responsabilidade também.
Em Le Ventre d l’Atlantique, romance de Fatou Diome, lemos a dado momento, “Em África, segui o caminho do destino, entre o acaso e uma esperança sem fim”. Nesse romance, cria-se um contraste, ou quiçá mesmo uma dicotomia, entre a vida em África (no caso literário, o Senegal, no caso desta banda desenhada, Cielo, as várias áreas topológicas atravessadas) e aquela na Europa. Caso semelhante ocorrera num dos casos mais celebrados da banda desenhada contemporânea, Persepolis, de Marjane Satrapi, o qual também pode ser lido como fazendo parte da émigré literature, e em que se criava um nítido sistema de pólos invertidos das relações sociais e familiares, da esfera pública e do privado, e a ideia de segurança e perigo, expressão pessoal e conformidade, entre o ponto de partida (o Irão) e o ponto de intermédio (Alemanha, Europa). Cielo também quer jogar o “contraste”, e lá chegaremos. Mas a frase de Diome interessa-nos aqui pela forma como demonstra que o cabo forte do destino é um entrançado entre dois componentes paradoxais: o acaso, no sentido que é a força das circunstâncias terríveis lançadas contra Nivek que o obrigam a ir mudando de percurso, fuga permanente, travessia, por um lado, e, por outro, a “esperança sem fim”, muito disfarçada no caso deste jovem congolense, mas que se notará, mesmo que tenuamente, pela sua resistência em estar vivo.
Antonio Altarriba é autor de obra muito significativa na criação da banda desenhada contemporânea espanhola, sendo uma das mais activas e vincadas vozes de um discurso burilado, pessoal, contundente e forte em termos da identidade histórica e política daquele país. A sua dilogia paternal A arte de voar/A asa quebrada, com o artista Kim (ambos publicados em português pela Levoir) e a dita “Trilogia do Eu” com Eu, Assassino, Eu, Louco e Eu, Mentiroso, com o artista Keko (em português pela Arte de Autor e Ala dos Livros) em que descasca os sistemas, muito pouco velados, dos favores e interesses nos mundos académico, artístico, económico e farmacêutico e político espanhóis são prova dessa presença. Para este livro, criado com o apoio da ONG Jambo Congo e outras personalidades, conta com o trabalho de Sergio García, um extraordinário ilustrador (cujo prestígio nasce sobretudo de ser artista repetente nas capas da The New Yorker), aqui votando a sua inventabilidade gráfica na banda desenhada, e com o apoio das magníficas e acertadas cores de Lola Moral.
O livro está dividido em 7 “etapas”, uma vez que correspondem a um trecho do percurso geográfico traçado por Nivek, e que representa igualmente uma fase da sua vida, digamos em termos de “actividade”, assim como de maturidade e identidade. São elas “Congo”, “La selva”, “La sabana”, “El desierto”, “Libia”, “Mediterráneo”, e “España”. E essas etapas não surgem como fundos reduzidos a meio-dúzia de traços postaleiros, como se fossem facetas da “África” expectável. Cada local faz desabrochar a sua cultura própria, as suas gentes, as formas formas de viver, e amar, e temer, e negociar o próximo dia, que se vão acumulando no jovem protagonista como peles, algumas porém abandonadas cruel e dolorosamente. Acompanhamo-lo desde um menino escravo nas minas de coltan controladas pelas milícias étnicas da RDC, a soldo de interesses internacionais, logo soldado-menino das mesmas, ou kadogo, até foragido nas florestas, aprendiz de feiticeiro, membro de caravana de migrantes, gladiador na Líbia, “cliente” da travessia do Mediterrâneo e vendedor ilegal em Espanha, atravessada por transeuntes que só o olharão ora com desprezo ora com o interesse de comprar os bens contrafeitos que promove…
Pergunto-me se podemos argumentar serem estas etapas geográficas e de desenvolvimento da vida de Nivek, pelas quais este livro se tece, não somente degraus de uma aprendizagem, como se se seguisse um Bildugsroman europeu, mas momentos de uma transmutação de toda a sua existência. Pois há uma outra linha de movimento importante. Geográfica, política e eurocentricamente, uma viagem desde a República Democrática do Congo até à Europa (que neste livro, repito, tendo pontos concretos, pode ou deve ser lida tanto como uma Europa da fantasia de liberdade e fortuna imaginada como a fortaleza que “recebe” Nivek) pode ser vista como ascensão. Ir de baixo para cima. “Subida na vida”. É o que os discursos bem pensantes diriam sempre, virem de locais de miséria para as oportunidades democráticas da nossa Europa.
Uma visão benéfica que nos faz sentirmos bem connosco próprios seria a ideia de que este livro, contando a história de um indivíduo que poderia ser visto como cifra de “muitos emigrantes” (ou até “todos”) nos educaria a mudarmos a nossa visão. A de que “estas pessoas” são tão “humanas quanto nós”, “ou que são “pessoas com vidas próprias”. Sim, podemos dizer, como de tantas obras, que o livro nos permite engajar directamente com empatia imaginativa, abrindo-nos à experiência dos outros, mas vai mais longe, revelando a hipocrisia desses mesmos mecanismos mentais, da segurança hipócrita de lermos uma ficção que “explica” e “resolve” - apenas no acto momentâneo da sua leitura – essa relação para com o mundo e quem o atravessa.
O problema, revelado por esta ficção brutal, é que no momento em que essa consciência se forma, o pecado é assinalado ao mesmo tempo. E os autores não estão preocupados com redenções, boas fortunas, finais felizes. Bem pelo contrário, o livro é atravessado uma e outra vez por crimes abjectos e hediondos, que não desejo sequer relatar ou sumariar. Apesar das roupagens estilísticas de grande espectacularidade – García cria muitas composições radiais, serpeantes, ou fragmentadas que obrigam o nosso olhar a procurar sempre cartografias complexas de leitura das pranchas –, Cielo não quer criar uma armadilha de facilitismos ou de naturalidade, não há quaisquer moralismos (ainda que, por vezes, num diálogo ou numa cena, haja algo de esquemático na apresentação do “problema”) mas sim mantém uma certa distância pelo horror que Nivek tem não apenas de atravessar, como de perpetrar, como um constante mecanismo de auto-salvação. A categoria do Bildungsroman é positiva. Aqui, esboroa-se a pessoa.
Estou em crer, portanto, que na verdade este livro preenche antes uma outra categoria clássica, associada a um topoi: é uma descida, uma catábase, uma série de provas cada vez mais duras e transformadoras. A Europa não é salvação, é apenas o engano do mais profundo dos abismos. Em rigor, uma catábase é um encontro com os mortos. Em cada um dos episódios-etapas, Nivek é acompanhado por um companheiro mas em todas elas há sempre mortos coroando essas mesma etapas, sejam mortes violentas ou não.
Num futuro hipotético, haverá um momento em que olharemos para trás e pensar-se-á como se deveria ter evitado a hecatombe perpétua de certos círculos do mundo. Mas ela tem lugar agora, ainda, sempre, e nós partilhamos, sobre as nossas cabeças, o mesmo céu. Apenas temos de olhar.