Moçambique: Infectados e afectados: as crianças que a SIDA deixou
“Mana, desculpe… Já não vai conseguir fotografar o nosso Pinto”. Doroteia dá-nos a notícia numa tarde de terça-feira ensolarada, ao entrarmos na pequena casa de cimento e telhado de zinco que acolhe a sede de uma associação comunitária que cuida de crianças órfãs de SIDA. Estamos no bairro Ferroviário, nos subúrbios de Maputo, numa avenida de areia com nome de cardeal. A luz entra timidamente pelas grades da janela e escoa-se por três divisões onde computadores, ventoinhas e máquinas de costura se acotovelam por espaço. Uma foto amarelecida de Graça Machel ornamenta um placard de tela azul preenchido com um sortido de imagens de serviço e ternura. “Ainda esta manhã esteve aqui”, continua Doroteia. “Bebeu um chá, depois começou a cuspir e levámo-lo para o hospital. Já não conseguiu chegar, o nosso Pinto, ficou pelo caminho”.
A probabilidade de contrair o vírus da imunodeficiência humana (VIH) à nascença é de 15 a 30%. Há três “janelas” de entrada para o vírus: a gestação, o parto e o aleitamento. Com acesso a medicação antiretroviral, o risco reduz-se para 5%. Porém, se nem todas as crianças que nascem em famílias contagiadas pelo HIV são infectadas – a taxa de prevalência dos 0 aos 11 anos é de 1,4% – todas são afectadas. Para que conste, consideram-se afectadas pelo HIV/SIDA as crianças “que cuidam dos pais ou encarregados de educação doentes, as crianças rejeitadas devido ao estigma do SIDA, as crianças chefes de família, as crianças vivendo com o HIV/SIDA, as crianças vivendo em famílias chefiadas por idosos, as crianças vivendo em comunidades com elevados índices de seroprevalência e as que são órfãs de um ou ambos os pais”, lê-se no Plano de Acção para as Crianças Órfãs e Vulneráveis (PACOV), elaborado pelo Governo em 2006.
Infectadas ou afectadas, todas sentem o impacto do HIV/SIDA. O número de crianças de alguma forma atingidas pelo vírus tem crescido de ano para ano a nível global. Os dados mais recentes indicam que existem cerca de 2 milhões de crianças seropositivas no mundo, 90% das quais na África subsaariana. “Milhões de crianças assistem aos efeitos debilitantes do HIV nos pais ou nos encarregados, acabando muitas vezes por tornar-se encarregados dos seus encarregados”, salienta o relatório de 2009 da Iniciativa Conjunta de Aprendizagem sobre Crianças e HIV/SIDA (JLICA), uma agremiação de diversos parceiros internacionais direccionada para a pesquisa global nesta área.
Marcos, 28 anos. Ela colocou o pedaço de carvão em brasa numa colher, o filho segurou-me nas mãos e forçaram-me a abrir a boca para o engolir. Estava zangada, queria saber como era possível eu continuar gordo se ela não me dava de comer. No dia seguinte tinha a cara toda inchada e cheia de sangue – a bola de carvão tinha feito um buraco na minha bochecha. Era assim que a minha madrasta me tratava. Eu acordava a meio da noite para ir para a machamba (horta) e às 4h voltava para preparar o matabicho (pequeno-almoço) dela. Tinha tudo pronto à hora a que ela se levantava e depois ia à escola. Até que um dia consegui fugir.
Em Moçambique, estimam-se que haja 1,6 milhões de crianças que perderam um ou ambos os pais antes dos 18 anos – mais do que a população inteira da cidade de Maputo. Aqueles que ficaram órfãos devido ao HIV/SIDA ascendem a 400.000. “Embora o governo não faça a distinção entre crianças tornadas órfãs devido ao SIDA ou outras causas, a maioria destas crianças estão directamente afectadas pelo HIV/SIDA”, lê-se no PACOV. Com ou sem a presença do vírus, uma criança órfã é um ser vulnerável, exposto a desafios acumulados: dificuldade em aceder a serviços básicos, como saúde, educação, alimentação, apoio jurídico ou financeiro; escolha limitada de estratégias de sobrevivência e formas de geração de rendimento; tendência para encontrar soluções de saída negativas, como casamentos precoces, prostituição ou trabalhos perigosos.
Na prática, um órfão é frequentemente vítima de maus tratos, desapropriado da casa paterna quando ambos os pais morrem, sujeito a ambientes nocivos e roubado da sua infância. Para as raparigas, em particular, há riscos acrescidos de abandono escolar e de abusos físicos. Num inquérito recente, mais de dois terços das jovens auscultadas conheciam casos de professores que solicitam favores sexuais em troca de passagem de ano. Contudo, apesar da vulnerabilidade, há uma percepção da enorme capacidade de defesa que estas crianças têm. “Podem ter muito pouco em termos materiais, mas há uma grande resistência”, afirma Sumaira Chowdhury, especialista em protecção infantil no Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Conceição, 5 anos. Os meus pais europeus chegaram num domingo à Casa da Alegria e ali, entre dezenas de rostos suplicantes, escolheram-me a mim. Eu estava há dois anos no orfanato das irmãs da Caridade – foram elas que me acolheram quando fui encontrada na rua. Não sei quem são os meus pais biológicos, fui jogada fora quando tinha meses. A senhora alemã pegou em mim e levou-me para casa dela. Banhou-me, vestiu-me a adormeceu-me. Durante meses conheci carinho em exclusivo. Aquele colo era só meu, do acordar ao deitar. Até que, passados meses, chegou o resultado do teste: positivo. Foi o meu bilhete de volta para o orfanato.
Para as organizações que trabalham nesta área, um dos maiores desafios é combater o estigma e discriminação que se abatem sobre as crianças afectadas pelo HIV/SIDA. “As pessoas começam a apontar – «é essa a criança que perdeu o pai de SIDA» – e a criança sente-se mal. Aí é que está a diferença. De resto, as necessidades são as mesmas”, considera Olinda Mugabe, directora da Reencontro, uma organização não-governamental que presta auxílio a 7.000 crianças órfãs de SIDA em Maputo e Gaza. “Quando se sabe ou suspeita que os pais morreram de SIDA, há medo do desconhecido”, acrescenta Chowdhury.
Em Moçambique, esta é uma das prioridades do PACOV, que está a ser revisto por forma a ser integrado num plano de acção mais alargado que abrange todas as crianças. Ao nível das políticas e ao nível da prestação de serviços, têm-se constatado progressos nesta área, havendo um reconhecimento oficial de que os agregados com presença de crianças órfãs ou vulneráveis merecem uma atenção especial. Dados oficiais indicam que 22% destes lares recebem apoio externo comparado com a média regional de 11%, adianta Chowdhury. O apoio providenciado pelo Ministério da Mulher e da Acção Social, em concertação com as restantes pastas do Executivo, inclui subsídios alimentares, acesso a serviços de educação e saúde, acompanhamento psicossocial e assistência jurídica.
Dércio, 9 anos. Se os filhos são órfãos, como se chamam os netos? Meus avós morreram de SIDA e deixaram quatro filhos: dois rapazes e duas meninas. Eles ficaram sozinhos, mas tomam bem conta da casa. Cozinham, lavam a roupa, varrem o chão e também vão à escola. Uma das meninas é minha mãe. Quando eu nasci, ela era adolescente e o meu pai desapareceu. Depois ela ficou adulta, encontrou outro homem e foi viver em casa dele. Tornou-se mãe dos filhos dele e fizeram outro juntos. O meu tio não me deixa ir para a casa nova dela, porque tem medo que me tratem mal. Ele cuida de mim como se fosse meu pai.
Apesar da enormidade dos desafios, uma criança órfã em África dificilmente perde completamente os seus vínculos. O conceito da família alargada está presente no seguinte provérbio: “para educar uma criança é preciso uma tribo inteira”. Sinal disso é o número de crianças em Moçambique internadas em orfanatos – apenas 12,000 entre o total de 1,6 milhões de órfãos de pai ou mãe. Um dos principais focos de vulnerabilidade reside nos agregados familiares chefiados por menores, isto é, crianças que ficam na casa que era dos pais e cuidam dos irmãos mais novos sem a presença de um adulto. Para esses há uma responsabilidade acrescida de garantir a sobrevivência e o bem-estar dos restantes elementos do lar.
Neste sentido, entre as organizações locais e as agências internacionais, há um consenso alargado para que se privilegiem as redes sociais existentes em vez da institucionalização das crianças – algo que gera, potencialmente, maior segregação e estigmatização. “As instituições devem ser pontos de passagem”, explica Chowdhury. “É preciso olhar para a comunidade e apoiar a comunidade na busca de soluções adequadas”. Esta é a filosofia adoptada pela Reencontro, que presta apoio na construção de habitações, alimentação diária, propinas escolares, apoio psicossocial, formação vocacional, entre outras actividades. “O que fazemos é educar a comunidade para que a criança não sofra”, explica Mugabe. Havendo familiares próximos, é normalmente a avó que assume a responsabilidade dos netos. Alternativamente, procuram-se “mães substitutas” que recebem uma pensão mensal para que disponham dos meios necessários para cuidar adequadamente dos menores. “Ajudando a comunidade, as crianças órfãs acabam por ser melhor integradas e têm, consequentemente, mais perspectivas” de ter um futuro melhor, conclui Chowdhury.
Depois de uma breve esperança de adopção aos dois anos, Conceição continua na “Casa da Alegria”, um centro de acolhimento de crianças e adultos vulneráveis gerido pelas seguidoras de Madre Teresa de Calcutá, em Maputo. Marcos, que frequentou a mesma instituição, está no terceiro ano do Instituto Industrial e é coordenador dos ateliers de formação profissional no orfanato. Dércio vive numa casa construída pela associação Reencontro no terreno que pertencia aos avós, sob os cuidados do tio Raul, de 21 anos, que acaba de ingressar no curso de Arquitectura do conceituado Instituto Superior de Ciências e Tecnologias de Moçambique (ISCTEM). Pinto tinha 10 anos, era órfão de mãe e seropositivo. Morreu no dia em que ia ser fotografado para a reportagem da África21.
Fotografias de Cristiana Pereira
Texto originalmente publicado na revista Africa 21, Abril 2011.