A herança de Kalidas
Desde tempos remotos que cidadãos indianos de cultura hindu se estabeleceram em Moçambique, dinamizando o comércio e influenciando a cultura através da gastronomia, da música e do cinema. Oriundos em grande parte do estado de Gujarat, contam com importantes templos em Maputo, Inhambane e Ilha de Moçambique. Existe ainda o mítico «mandir» de Salamanga, erguido em homenagem ao santo Kalidas.
E ENTÃO UM DIA, estando sentado à beira-rio a meditar, Kalidas evaporou-se. Da mesma forma misteriosa com que aparecera na pequena povoação de Salamanga, a sul da então Lourenço Marques, o santo hindu assim se diluiu no eterno abraço do Rio Maputo. «É assim que nasce o mito», explica Calane da Silva, jornalista, escritor e destacada figura da cena cultural em Moçambique.
«Esta sua atitude vai bem ao encontro da filosofia Sanathana Dharma, segundo a qual os mares são resultantes do rio Ganges ou Ganga como os hindus o designam. Ganga é a deusa Mãe», lê-se num texto sobre Salamanga disseminado pela Comunidade Hindu de Maputo. «Assim sendo, Mahatma Kalidas bapa («grande alma») não fez mais do que, com o seu gesto final, regressar ao ventre da Deusa Mãe».
Após o seu desaparecimento, a população local entendeu seguir os conselhos que o «velho barbudo» deixara durante a sua estadia. «Era um indivíduo muito espiritual que sugeriu que se construísse, na zona de Salamanga, um mandir (templo)», continua o director do Centro Cultural Brasil-Moçambique. «Dizia que ali tinha boas energias».
Decorria o ano de 1908 e a obra – «Quadrangular e com quatro pavões em cada um dos quatro pilares» – foi levada a cabo pelo avô de Calane da Silva. Natural do estado indiano de Gujarat, terra materna de Gandhi, Kalane Megdji chega à costa oposta do Oceano Índico em finais do século XIX, fugido, ao que consta, da ira de um irmão devido a uma disputa passional.
Dedicado ao comércio, à agricultura e à construção, Megdji torna-se uma figura proeminente da localidade, construindo cantinas, introduzindo a nora para irrigação e abrindo as primeiras salinas na foz do Rio Maputo, segundo narra o neto que dele herdou o primeiro nome.
Distante da rede familiar que ter-lhe-ia providenciado uma esposa, Megdji dirige-se ao régulo Ngoanazi procurando uma companheira de vida. O chefe tradicional escolhe Mahazul Mabica, uma mulher ronga que, tendo tido contacto com uma «senhora clara», adquirira habilidades pouco comuns para a época, como o corte e costura. «Foi uma prenda para esse meu avô», explica Calane da Silva. Até à morte de Megdji em 1926, nasceriam «oito a nove filhos».
TRADIÇÕES ENRAIZADAS
A aliança entre Kalane e Mahazul é uma alegoria da fusão que há séculos se regista entre indianos e africanos, na costa oriental de África. Em Moçambique, desde tempos anteriores a Kalidas que a comunidade hindu tem vindo a crescer, tornando-se num dos mais importantes dinamizadores da economia formal. O santo terá chegado a Moçambique no limiar do século XX, aportando em Inhambane numa embarcação à vela. Mais tarde, viaja a pé até Salamanga, mais de 500km a sul.
«Quando aqui chegou, à vista de uma natureza tão rica em arvoredos e animais selvagens, sentou-se à sombra de uma árvore grande e, numa atitude de agradecimento à grandeza de Deus, entrou em profunda meditação», refere o texto de Salamanga. «Nesse tempo, a população hindu de Salamanga seria de cerca de 50 ou 60 pessoas e havia cerca de 10 ou 12 lojas».
Estabelecida oficialmente em Moçambique em 1925, a comunidade conta hoje com pólos em todas as províncias, reunindo em Maputo cerca de 3000 membros. «Estão sobretudo ligados ao comércio, embora os jovens agora já estejam a seguir outras áreas», explica Jayesh Sacarlal, secretário da comunidade. «Hoje já temos advogados, economistas, médicos, engenheiros, etc.». Depois da independência, muitos foram para Portugal, Inglaterra e Índia, mas recentemente tem havido novas vagas de imigrantes, acrescenta.
É um sector da sociedade com tradições fortemente enraizadas que se manifestam no vestuário, na religião, na gastronomia e no folclore. Em Maputo, por exemplo, o cinema Charlot, com filmes indianos regularmente em cartaz, é uma das poucas salas de projecção que restam no circuito cinematográfico formal de Moçambique.
«A comunidade hindu não é só depositária do legado secular da sua tradição, dos valores da sua cultura, da sua religião humanista, mas também uma comunidade de convívio e amizade onde o intercâmbio espiritual e a solidariedade com o maravilhoso povo moçambicano possa crescer e frutificar», acrescenta Sacarlal.
O TEMPLO EM MAPUTO
O principal centro de gravidade em Maputo é uma ampla propriedade na zona baixa da Avenida Guerra Popular, que acolhe o templo Shree Vishvambhar Mahadeu. Passando os seus portões, abertos a qualquer hora e a qualquer um, penetra-se num canto da Índia com o cheiro de incenso e especiarias a seduzir o olfacto. Na ala direita, canteiros vermelhos adornados da cruz suástica, símbolo do Deus Sol, dão as boas vindas aos visitantes. No interior, folhas secas de mangueira coroam a ombreira das portas para trazer protecção aos seguidores de Shiva.
Já no templo, somos acolhidos por Nitin, o sacerdote gujarati que há nove anos guia os desígnios espirituais da comunidade. Com os olhos da filha Nandini, de dois anos, a fitá-lo com adoração onde quer que vá, o «maraj» passa horas varrendo, regando e adornando o interior do espaço sagrado, mostrando-se prontamente disponível para qualquer pessoa que apareça e requeira a sua atenção.
Nas ocasiões festivas, um recinto desportivo interior transforma-se num salão de festas reminiscente dos sumptuosos cenários de Bollywood. No recente matrimónio dos jovens Jatin e Mital, era deslumbrante o brilho e a cor dos saris das mulheres de Inhambane que encheram vários autocarros para se juntar à festa. Ninguém se divertiu mais do que as crianças, que rodopiavam perante o palanque engalanado onde os protagonistas se instalaram para assistir às alegres coreografias que os amigos de ambos prepararam em jeito de oferenda.
«Em Moçambique, reconhece-se [actualmente] o direito de praticar a religião de maneira livre. As tradições religiosas desempenham um papel fulcral na vida da nação e, para os seus cidadãos», salienta Sacarlal. «A comunidade hindu tem sido convidada pelas instituições do estado e do governo para participar em grandes eventos e reuniões, e tem desenvolvido acções humanitárias em prol dos mais necessitados. Há uma simbiose e laços culturais bem fortes entre as duas culturas (indiana e moçambicana) que vêm de há séculos. E é intenção das ambas as partes em preservar e fortalecer ainda mais essa interculturalidade», acrescenta.
No período das nacionalizações, que se seguiu à independência em 1975, o edifício de dois pisos que serve de sede à comunidade tornou-se propriedade do Estado, albergando a Escola Primária Sá da Bandeira até 1998. Hoje, para além do luminoso templo religioso e do campo de futebol de salão, ostenta um átrio interior e um santuário dedicado a Hanuman, o deus-macaco.
Quanto a Salamanga, embora o templo original tenha sido levado pelas cheias na década de 1980 e entretanto substituído, a povoação continua a ser local de peregrinação, em particular durante o grande festival Diwali, ou das luzes, que assinala o ano novo hindu entre Outubro e Novembro. «Desde o seu primeiro contacto com este lugar, Mahatma Kalidas bapa não teve dúvidas em considerar este um lugar sagrado», lê-se no referido texto. E é lá, nas mesmas águas que embalaram o santo Kalidas, que repousam as cinzas eternas de Kalane Megdji.
As cores do calendário
Com ar galante e acolhedor, Nitin enverga calças amarelas como o sol e túnica rosa como sorvete de framboesa. Quando lhe perguntamos o significado das cores, o maraj (sacerdote) do templo de Maputo explica que, na tradição hindu, cada dia tem a sua simbologia e respectiva cor.
SEGUNDA: Lua - Branco
TERÇA: Terra - Vermelho
QUARTA: Agricultura - Verde
QUINTA: Júpiter - Amarelo
SEXTA: Diamante - Branco
SÁBADO: Fim do ego - Preto/violeta
DOMINGO: Sol - Vermelho