No centenário do nascimento de Francisco José Tenreiro (1921-1963): mediações e perspetivas
Panorâmica da Literatura Norte-Americana (1945): olhar ao longe para melhor ver ao perto
1. Deveria celebrar-se, neste ano de 2021, o centenário do nascimento de Francisco José Tenreiro, poeta, ensaísta, geógrafo, professor universitário, intelectual de importância inquestionável no mundo das letras portuguesas. Nascido em São Tomé e Príncipe, FJT viveu desde criança em Portugal e aqui desenvolveu, até à sua morte, atividades plurais nas mais diversas frentes, mantendo sempre fortes vínculos afetivos e ideológicos com a “Ilha de são Tomé”, título homónimo da sua tese de doutoramento. É considerado o poeta da Negritude em língua portuguesa e é bem conhecido pelos livros de poesia Ilha de Nome Santo, Coração em África (póstumo), e pela antologia/caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (CEI, 1953), que coorganizou com o angolano Mário Pinto de Andrade. Nas palavras da ensaísta Inocência Mata, Ilha de Nome Santo, o seu primeiro livro de poesia, publicado em 1942 na coleção O Novo Cancioneiro, “tanto pode ser considerado o marco da moderna literatura são-tomense como ainda o ´introdutor´ da estética negritudinista entre os escritores africanos de língua portuguesa, seus contemporâneos, trazendo ao movimento neo-realista o sopro africano” (Mata, 2010: 311)
FJT não é, de modo algum, um escritor esquecido. A sua obra foi objeto de estudo por parte de reputados investigadores das literaturas africanas em língua portuguesa, de que se destacam Fernando Martinho, Inocência Mata, Pires Laranjeira e Salvato Trigo, entre muitos outros. Em 2010, em num sinal antecipado da comemoração (e “rememoração”) dos 90 anos do nascimento do poeta, vem a lume um livro intitulado As Múltiplas Faces de um Intelectual (2010), organizado por Inocência Mata, que contém valiosos textos para um melhor conhecimento dos trabalhos literários e científicos do poeta e do respetivo contexto de produção, contribuindo a própria ensaísta para uma justa leitura revisionista do tópico do “poeta dividido” em função de conceitos como o de “in-between” e “identidades diaspóricas”.[1] Alguns dos ensaios que Tenreiro escreveu no campo da literatura estão reunidos na antologia organizada por Pires Laranjeira com o título Negritude Africana de Língua Portuguesa (2000) – e, vale a pena relê-los, pois aí surgem incómodas questões que ainda hoje nos interpelam e desassossegam. Outros, que escreveu para a revista Seara Nova (comemoram-se este ano os 100 anos da sua fundação), estão agora disponíveis on-line, como, aliás, todos os ensaios publicados nessa importante publicação portuguesa. A poesia de Tenreiro, por sua vez, circula em vários sites da Internet, sendo bem divulgado o poema “Canção do Mestiço”, que continua a cativar estudantes (e outros leitores) e a suscitar animadas discussões. Em 2016, foi a vez de alguns poemas se volverem literalmente em canto, pela voz de Marta Dias, que, no belíssimo álbum Quantas Tribos?, faz uma (re)visitação poética e sentimental às ilhas e presta a sua homenagem a cinco importantes autores santomenses – os outros quatro são Alda do Espírito Santo, Maria Manuela Margarido, Conceição Lima e Fernando de Macedo.
2. Não se pretende, pois, neste artigo, resgatar um poeta do esquecimento (que não existe), mas tão-só trazer à ribalta e louvar (minimizando as suas lacunas) uma obra que o autor publicou em 1945, com o título Panorâmica da Literatura Norte-Americana (Emp. Contemporânea de Edições, 100 págs.) e revisitar de seguida, com a ajuda de bons leitores críticos de FJT, dois ensaios dos últimos anos da vida do autor, nomeadamente, “Acerca da Literatura Negra” (1961) e “Processo Poesia” (1963). Quaisquer que fossem os propósitos, o estudo de 1945 representava um gesto de rutura com a hegemonia francesa no campo literário português e levava à descoberta de novas vozes e horizontes culturais – os muitos anglicismos são os sinais mais visíveis dessa orientação. Este estudo poderia (poderá) ter sido, nessa época, um valioso contributo para a divulgação e o conhecimento, em Portugal, de uma outra literatura, indo contra os ventos literários que continuavam a soprar de França – e recorde-se o movimento tardio do Surrealismo português. Tanto quanto se pode averiguar, esta obra de divulgação de FJT, que não teve, seguramente, grande fortuna crítica, passou despercebida no próprio momento da sua publicação. Da pesquisa efetuada apenas se encontrou uma recensão à obra, no Mundo Literário, da autoria de Tomaz Kim – pseudónimo do professor universitário, poeta e tradutor Tomaz Monteiro-Grillo – que nela critica a parcialidade e as exclusões (a crítica mais frequente a qualquer história e empreendimento antológico), sublinhado no entanto o entusiasmo do jovem leitor/autor, a honestidade e a importância de um capítulo dedicado a uma pujante literatura negra.[2] Tal ausência de recensões não significa, no entanto, que o estudo não tenha tido eco e repercussões junto dos escritores de então (africanos ou não africanos); o impacto de uma obra nos leitores será sempre difícil de avaliar, quando escasseiam dados relativos à sua receção crítica.
Panorâmica da Literatura Norte-Americana era, no entanto, uma obra invulgar, que poderemos considerar a primeira “história” – história crítica e social – da literatura norte-americana publicada em Portugal, que conjugava a visão panorâmica com um olhar micrológico e procedia à imbricação da história da literatura na história da nação (narra-se, assim, a história dos E.U.A., desde o povoamento até aos anos 40). Empreendimento bem ousado este, tanto mais que fruto de um jovem de 24 anos, e de um futuro geógrafo, que aqui se revela como um grande Leitor (o que a Bibliografia final atesta), atento não só à literatura do seu tempo, mas a outras formas de expressão artística, como, por exemplo, a música, o cinema, ou mesmo a arte dos murais urbanos. Se muitos dos conteúdos, sinopses e até argumentos deste livro têm uma grande dívida para com investigadores como o antropólogo brasileiro Artur Ramos ou para outros autores incluídos na Bibliografia, algumas finas observações críticas, a análise textual recorrente de algumas obras e aproximações artísticas inusitadas – incipientes abordagens interartísticas e outras – atestam o efetivo conhecimento de Tenreiro dos textos escolhidos.[3] Além disso, o autor convoca para o seu estudo diferentes áreas do conhecimento – desde a história, a antropologia, a etnografia, a geografia – e experimenta uma abordagem interdisciplinar rara na elaboração de “histórias” literárias da época, norteadas pelo positivismo oitocentista. O termo “panorâmica” não escamoteia o intuito de elaborar uma história, sendo a cronologia o principal – mas não o único – eixo estruturante da obra. Há, por isso, várias entradas para o livro: periodológicas, tipológica/genológicas, étnicas, não obstante a estrutura apontar para uma certa linearidade cronológica. O livro é composto por 6 partes: “A Época Colonial na Norte-América [sic]”; “A Literatura na Época Colonial”; “Evolução da Literatura Post-Colonial para uma Literatura verdadeiramente Nacional”; “Verdadeira Literatura Nacional”; “Short-Stories, Teatro e Poesia”; “A Literatura Negra Norte-Americana”. Este último capítulo fora publicado na Seara Nova um ano antes[4] – no ano em que abandona a Faculdade de Ciências e ingressa no Curso Superior Colonial – sendo indissociável da atenção dada à condição diaspórica dos negros, e muito em particular à realidade na “América”. Quase se poderia dizer que, paradoxalmente, residem nas fragilidades metodológicas alguns dos méritos deste trabalho: o facto de o livro não ser escrito de raiz e de ele incorporar textos e fragmentos de textos já antes publicados na revista Seara Nova neutraliza, em parte, o princípio teleológico subjacente à elaboração das histórias literárias coetâneas, de raiz positivista, constituídas por grandes e homogeneizantes narrativas. Apesar das anotações impressionistas, da ironia, do discurso judicativo e valorativo (censurado por Tomaz Kim), são de salientar as preocupações terminológicas, na base da distinção que faz (recorrendo a “auctoristas” inominadas) entre Theater e Stage, ou, mais importante ainda, a definição de “literatura negra” para a delimitação e a clarificação do objeto de estudo a abrir o capítulo dedicado ao tema. Por outro lado, e não é pouco no Portugal dos anos 1940, há que sublinhar o caráter inclusivo deste estudo na atenção à obra de minorias étnicas e ao lugar das mulheres na escrita:
Com Hellen Grace Carlisle, somos levados a pensar que a América não só possui uma literatura vigorosa escrita pelos homens, pois que as mulheres também se têm dedicado com brilhantismo ao cultivo das letras. Assim o atesta uma H.B.Stowe, a do palpitante livro A Cabana do Pai Tomaz, no passado, os romances de Edith Wharton, de morte recente, A Willa Carther de My Antonia, H.G. Carlisle e Pearl Buck, um dos prémios Nobel da literatura, estilista admirável, que tendo vivido muitos anos na China nos revelou esse país […] E ainda Dorothy Parker autora dessa pequena obra prima A Loiraça (Big Blonde). (p. 48).
Noutro momento do livro, este conto de Dorothy Parker (Big Blonde) merece-lhe o epíteto de “obra prima da literatura americana” (p. 65), sendo os contos da escritora, em geral, referidos como “notáveis”: “são pequenas composições donde as mulheres burguesas e seus complexos ridículos saem sangrando.” (ib.)
3. Tenreiro inicia o seu estudo recorrendo à (então usual) oposição entre (literatura) colonial e nacional, que, à partida, faria corresponder um determinado período histórico a uma determinada produção literária e artística. No entanto, o ensaísta considera que, na prática, a independência política dos E.U.A. não se traduziu logo numa literatura nacional autónoma e descolonizada. Introduz, por isso, um terceiro termo, o de “post-colonial”[5], para designar o período em que a literatura da nova nação está ainda sob a tutela da literatura britânica, sendo uma espécie de prolongamento, noutras regiões, da literatura europeia. Sem grandes explicações, o ano de 1914 é apontado como o ano de viragem e de surgimento, na América do Norte, de uma literatura “verdadeiramente” nacional. As reflexões subsequentes alicerçam-se nesta consciencialização de uma incoincidência de tempos, mas temporária, entre história e literatura/arte e numa ideia de literatura devedora de um ideário romântico. Resumindo as ideias expostas (e reiteradas) ao longo de várias páginas – que se ocupam também da história social e política dos E.U.A. – a literatura nacional é aquela que decorre da origem multicultural dos colonos europeus, bem como da geografia diversificada do país, e que evidencia a dimensão cultural do “americanismo”. Ou seja, e sintetizando traços disseminados no texto: a primazia da ação sobre o pensamento; o pragmatismo; “o amor ao concreto e à realidade cruel” (p. 40), a “exaltação do homem dos E.U.” (ib.); a utilização de uma língua com “vida própria e côr nacional”; uma língua mais plástica; um novo léxico. No fundo, todo um conjunto de valores e de atributos que ainda hoje se associam aos E.U.A.
4. No capítulo “Evolução da Literatura Post-Colonial para uma Literatura verdadeiramente Nacional”, onde estabelece uma distinção entre “romance de acção”, de caráter objetivista, povoado de heróis lendários associados à conquista do Oeste, e o romance de índole subjetivista, de grandes autores como Nathaniel Hawthorne e E. A. Poe, é de relevar a extensa e encomiástica apresentação da vida e obra deste último (nas vertentes de poeta, crítico, contista, jornalista), contemplando ainda aspetos da sua receção crítica. Começando com a trilogia detectivesca (que demonstra bem conhecer), Tenreiro passa em revista contos de outra índole que popularizaram Poe na Europa, oferecendo ao leitor sinopses que primam pela subtileza da análise. No tratamento alongado dado a Poe, não há contradição entre a tese de que ele é “o primeiro contista da América e um dos maiores do mundo” (p. 62) e a afirmação categórica de que ele “é um escritor mais europeu, por temperamento e cultura, que americano” (p. 25).
Neste panorama dos autores e obras de um período de transição, são elencados autores como Melville, H. B. Stowe (sendo ressaltados as virtudes e os defeitos de A Cabana do Pai Tomás), Bret Hart, William Howells, Mark Twain e Henry James. A explícita falta de simpatia pessoal por este último, o americano exilado, snob, sem real experiência da vida do ser humano comum, não impede a valoração da obra, que reconhece como notável pela introspecção (antes de Proust, frisa), pela psicologia das personagens e pelo estudo do caso dos americanos desenraizados. Americano pelo conteúdo e inglês pela forma – conclui. Já Mark Twain é considerado um “escritor tipicamente americano”, sendo elogiado pela sátira dos costumes europeus, e por uma escrita que celebra o espaço/geografia norte-americanos, imortalizando o rio Mississipi em páginas memoráveis.
5. De seguida, no capítulo “Verdadeira Literatura Nacional”, FJT traça uma evolução do romance, deixando o estudo em aberto, dado o que considera ser o vigor e florescimento da literatura norte-americana no campo da ficção. O estudo dos prosadores norte-americanos deste período é precedido por uma contextualização socioeconómica, onde FHT revela algum domínio de ferramentas analíticas da economia. Detém-se aqui sobre a história da “América”: o desenvolvimento industrial e tecnológico e a consolidação de uma política imperialista, que, a seu ver, não são acompanhados pelo progresso cultural, que levou ao surgimento de uma burguesia inculta e sem horizontes. É nesta moldura que situa os escritores que designa como “intervencionistas” como Sinclair Lewis, Upon Sinclair e John dos Passos, todos eles críticos deste tipo de sociedade, da violência/brutalidade e porta-vozes do “povo” americano, e que aqui são singularizados quer pela tematização de problemas de atualidade quer por terem rasgado novos caminhos formais (FJT fala mesmo em “revolução formal”), determinantes para moldarem uma literatura nacional. Na obra de John dos Passos salienta as técnicas cinematográficas de montagem e cruzamento de planos, bem como a incorporação do folk-lore americano e de discursos jornalísticos, como, por ex., a reportagem. A estes autores “intervencionistas” junta os autores de “uma literatura de protesto veemente”: Michael-Gold, H.G. Carlisle (cuja obra “Carne da Minha Carne” descreve em minúcia) e Pearl Buck.
Num outro campo, e por oposição a estes, situa Tenreiro os autores que inclui na categoria algo equívoca de “literatura de evasão”, nomeadamente Willa Cather e Thornton Wilder, de entre muitos outros. Mas estes são autores de um período de transição do período da Lei Seca para o dealbar da nova era da ficção estadounidense, com renome mundial como Erskine Caldwell, John Steinbeck, Ernest Hemingway, William Faulkner e Richard Wright. As páginas dedicadas a Caldwell e Steinbeck mostram a especial sensibilidade de Tenreiro para com a temática do trabalho, da miséria, da emigração e da exploração, tão cara aos autores neo-realistas e que levou à tradução e culto das obras desses autoresnentre nós. É interessante o modo como avalia a evolução da obra de Caldwell ou como analisa em profundidade a obra de Steinbeck: “Of Mice and Men é um grito […]. E à volta de um punhado de camponeses, trabalhadores de um rancho, Steinbeck construiu este seu romance que podia ter por ambiente regiões e tipos de qualquer parte do mundo” (p. 51). Ou ainda: “Se Vinhas da Ira é o panorama da América dos nossos dias, Luta Incerta é a síntese dessa realidade. Se nas Vinhas da Ira são os camponeses desapossados, emigrando ao longo da estrada 66, ao desamparo…” (p. 52).
Os romances de Hemingway merecem-lhe o epíteto de “sensacionais” (não sensacionalistas) pelas técnicas narrativas (“por ex., os “diálogos mais extraordinários que se têm escrito”; p. 55) e pelo impacto no leitor. Um único defeito tem Hemingway: “o acreditar na salvação do velho mundo pela América” (p. 54). A atenção dada a Richard Wright, autor à época de um só livro, é justificada pelo facto de este, referido como invulgar de um ponto de vista “artístico-social”, estar traduzido para português e o ter sido um bestseller.[6] Surpreendente é aqui a aproximação de Native Son a Dostoeivsky: “pois que de páginas que nos recordam Dostoievsky pela profundidade e análise da alma desse negro, se passa a cenas dinâmicas e de técnica policial para culminar todo o drama em diálogos que pela força nos recordam Ernest Hemingway” (p. 56).
6. No capítulo aparentemente deslocado, “’Short-stories’, Teatro e Poesia”, FJT aponta a short-story (que também designa por tale) como sendo o género mais desenvolvido e mais representativo dos E.U.A em meados do séc. XX, ao mesmo tempo que o teatro (i.e., o texto dramático) é apontado como sendo o seu parente pobre e de emergência mais tardia. No campo do conto, são elencados os autores que ainda hoje constituem o cânone, como E. A. Poe, “o pai da short-story”, O’Henry (e refere-se a tradução feita por Fernando Pessoa), Melville, Mark Twain, Caldwell, Saroyan, Dorothy Parker (com “contos notáveis”), Sherwood Anderson, Hemingway (contista paradigmático, autor de contos como “Um Homem que não foi Vencido”/ “Undefeated” e “os Assassinos”/“The Killers”). Tenreiro passa depois em revista aspetos diversos do teatro do séc. XX, enumera os principais dramaturgos e critica o que diz ser uma centralização do teatro em Nova Iorque. Enfatiza tendências intervencionistas (nomeadamente de teatro feito por negros) do teatro coetâneo e no último capítulo do livro dirá que foi em Harlem que os brancos encontraram o “melhor teatro” (p. 86).
O que é verdadeiramente importante nestas breves notas do ensaísta FJT é o facto de elas contemplarem e apresentarem como indissociáveis a natureza do conto e o seu suporte físico, ou seja, as magazines, onde esta forma breve de narrativa floresceu. Por outro lado, ao sublinhar a diversidade de público e a dimensão industrial destas publicações populares e o seu potencial sensacionalista, desde a sua génese, Tenreiro contribui para a diluição de fronteiras entre formas de arte low and high. É esta perspetiva do fenómeno artístico como dinâmico e em constante mutação (i.e., processo) que subjaz à pioneira visão de relações de porosidade, interpenetração e mesmo de intermedialidade & transmedialidade entre o romance, o cinema e o teatro. Para FJT, a referida fragilidade da arte dramática/exiguidade dramatúrgica é superada (num processo que hoje designaríamos por remediação) pelo recurso ao romance e às suas técnicas, seguindo os passos da arte cinematográfica (e também indústria, nas mãos dos “magnatas de Hollywood”), com adaptações regulares de romances e peças de teatro.
Sobre a poesia, pouco escreve nesta secção, pois no capítulo subsequente sustentará a tese de que “a melhor poesia americana” é escrita por negros. Esta tese decorre de uma outra (difícil de contestar, e bastar-nos-á ler a poesia e ensaios de um poeta como Wallace Stevens sobre o peso da tradição romântica inglesa nos E.U.A): de que os poetas americanos sofreram, e sofrem (nesses idos anos 40), a influência dos poetas ingleses (e europeus, em geral), e que poetas como Amy Lowell, Ezra Pound e Hilda Doolitle contribuem para reforçar essa ligação à Europa. Por isso, diz Tenreiro que a poesia “é” à data ainda o género menos americano”. Walt Whitman é, na linha de muitos outros estudos, apontado como um poeta genial, pioneiro da poesia norte-americana, quer pela inovação da linguagem poética e pelos ritmos (alguns reminiscentes dos bíblicos) quer pelos conteúdos progressistas: “[Whitman] foi o defensor da liberdade e propagador da Democracia (Leaves of Grass é um canto à Democracia)” (p. 75). Na ligação da poesia à vida, Robert Frost, Edgar Lee Masters e Carl Sandurg são considerados os continuadores de Whitman. A “parcialidade” apontada por Tomaz Kim é evidente e decorre do critério do “americanismo”, conceito que se aclara ao lermos estas linhas: ele significa acima de tudo o corte com a cultura do colonizador.
Não obstante a parcialidade do jovem ensaísta que o leva à minimização da poesia de Emily Dickinson e da dos modernistas norte-americanos, há que louvar o modo como esta secção, evitando transformar-se num mero catálogo de obras e de autores, introduz ideias novas e abre espaço, via Whitman, à celebração da democracia num tempo de censura e de repressão.
7. O capítulo que encerra o livro, intitulado “A Literatura Negra Norte-Americana”, foi, como acima se disse, publicado pela primeira vez na Seara Nova (n.º 891, 9 de Set. 1944; pp. 23-27) – e mantém a autonomia e a organicidade, que estão na sua génese. Tomaz Kim dirá, com razão, que este é o melhor capítulo do livro e que ele ganharia ainda com um maior desenvolvimento.[7] Mas esta pequena história vale também pela repetição; surge em 1944, em 1945, e é sumariamente retomada e reenquadrada no ensaio “Acerca da Literatura Negra”, publicado em 1961 no jornal O Comércio do Porto, surgindo como antecâmara da Negritude francófona. Tenreiro exibe neste capítulo um grande conhecimento dos poetas e prosadores negros, e muito em particular, de artistas do Harlem, prova de que escutou com atenção e fervor juvenil as vozes afro-americanas; que atentou na tendência, como refere, para esses artistas negros exibirem “orgulho na cor, na raça” (p. 88), superando a fase de “submissão martirizada” (ib.)
São elencados poetas como Lenox Aven, Claude Mac Kay [sic], Countee Cullen, James W. Johnson, Frank Horne, e o incontornável Langston Hughes, de quem transcreve na íntegra, em inglês (com tradução portuguesa no final) o poema “I too am America”. Aliás, todo o capítulo deste livro de 1945 ganha em ser lido conjunta e intertextualmente com o ensaio “Langston Hughes, Poeta da América” publicado no mesmo ano (in Seara Nova, nº 931, 16/6/1945 e o nº 932, 23/06/1945) quer com o poema “Fragmento de Blues” (1943), dedicado a Langston Hughes e inspirado em “The Weary Blues”. Como muitos ensaístas têm frisado, este famoso poeta do Harlem ajudou Tenreiro a encontrar a sua voz poética.[8] Mas, e antes de avançarmos, impõe-se dizer que também Hughes deve muito a Tenreiro, contribuindo este de forma bem substancial para a sua divulgação em Portugal e colónias nos anos 40 e 50. Em 1946, o poeta e crítico neo-realista António Ramos de Almeida publicava o ensaio “ A Poesia Negra de Langston Hughes”, in Mundo Literário (nº 8, 29 junho 1946), seguido da tradução de versos de dois poemas de Hughes (“The Weary Blues” e Negro/“Sou Negro”), assinada por Casais Monteiro. [9] Sem escamotear a questão da cor, Ramos sublinhava a “mensagem humanística” e universal do poeta e referia-se-lhe como “um dos maiores poetas americanos”. Em 1948, Alda do Espírito Santo prestava-lhe homenagem no seu ensaio poético “Mundo Negro”, publicado em A Voz de S. Tomé (II, 13), com a transcrição de uma tradução integral do poema “Sou negro”. Duas décadas depois, em Fev. de 1968, num período de acesa guerra colonial, a revista Vértice (vol. 28, nº 239, pp. 91-105), publicava uma Pequena antologia de poemas de Langston Hughes, que incluía as seguintes composições poéticas: “O negro fala de rios”, “Poema”, “Medo”, Da mãe ao filho”, “Nascer do dia no Alabama”, “Também eu”.
Nessa história dentro da história que é o último capítulo de Panorâmica da Literatura Norte-Americana, a definição de literatura negra está em sintonia com o pan-africanismo: “Entende-se por literatura negra, norte-americana, aquela que é escrita por homens da “raça” negra, descendentes, duma maneira geral, dos antigos escravos dos senhores sulistas. Hoje, uma vez que, teoricamente, os negros estão libertos do jugo branco…”.[10] FJT traça, de seguida, a história dos negros nos E.U.A desde o séc. XVII até à abolição da escravatura e enfatiza as conquistas não só da intelectualidade negra como de muitos outros negros em áreas como o desporto (Joe Louis) e, acima de tudo, a música (refere Paul Robeson, Marion Anderson e Armstrong). Neste historial, a escrita dos negros inicia-se com a expressão artística dos espirituais e dos blues, transita para a poesia e atinge o seu grau máximo de desenvolvimento na prosa/ficção (à qual dedicará apenas algumas linhas). Sumariamente, estas três fases (ou idades) da literatura correspondem a três fases da história dos negros nos E.U.A.: i) a da escravatura; ii) a da abolição da escravatura (mas numa sociedade profundamente racializada), iii) a fase de melhoria de condições socioeconómicas de muitos negros, com o surgimento de uma burguesia negra.
É com à vontade que Tenreiro discorre sobre os espirituais e os blues (expressões artísticas nomeadas como “coletivas”), ou mesmo o jazz, com citações de trechos de obras icónicas e convincente é o modo como explica o “trânsito” destas formas musicais para a poesia (forma de expressão individual).
Numa secção deste último capítulo a que dá o título “A Aculturação do Negro Norte-Americano”, devedora, nas citações e paráfrases, dos ensinamentos colhidos em Artur Ramos, FJT alonga-se sobre os processos de aculturação e adaptação dos negros à “América” e a aspetos da cultura europeia – a aquisição da língua inglesa e de novas religiões –, mas ressalta o modo como estes os africanizaram, imprimindo-lhes ritmos, cadências e musicalidade próprias, remanescentes de antigos cultos e tradições preservados na memória. Nesta secção, o autor sublinha o modo como algumas fronteiras iam sendo esbatidas, em contatos e trocas culturais mútuos, com intelectuais e artistas brancos (como Dvórak, Honnegger) atraídos pelos ritmos afro-americanos, com o jazz a conquistar muitos outros, e com a gastronomia dos “brancos do Sul” a evidenciar sabores da cozinha dos “negros”. A ideia de que os norte-americanos brancos também assimilaram traços da cultura negra é aqui imputada a outros: “há quem afirme que a influência do temperamento do negro no branco foi de tal ordem que o riso rooseveltiano e ao andar cadenciado de certos tipos de determinadas regiões, seria de origem negra…” (p. 86).
8. É acerca da poesia que a posição de Tenreiro é deveras arrojada, revelando o modo como o autor perspetiva (e fá-lo-á sempre) os fenómenos de uma forma não simplista, mesmo quando essa visão culmina em contradições ou aporias. Em coerência com a sua reiterada tese de que a poesia norte-americana escrita por brancos mantém uma forte dependência da poesia europeia, FJT argumenta que é a poesia negra que traz algo de novo a este campo, evidenciando uma maior vinculação dos negros aos E.U.A.:
Na poesia negra actual, apesar de eivada dum preconceito rácico, há o amor do negro americano pelos E.U. Falando dos seus problemas, o poeta negro fala implicitamente da América (I, too, am América – L. Hughes). E, em virtude da poesia americana ter apresentado sempre um anti-clímax, sou levado a crer que a melhor poesia americana está nos negros. Carl Sandburg, o cantor de Chicago, Vachel Lindsay, a dos ritmos de Rag-Time, Langston Huges e Mc Kay estão, quer queiram os americanos ou não, absolutamente irmanados. (p. 90).
A “irmandade” não é, no entanto, sinónimo de igualdade ou de ocupação do centro/cânone. Ela é vista como um caso ainda “à parte” (diríamos: marginal), por três motivos que FJT enuncia de forma clara: i) os elementos de estranheza que a cultura dos negros levou ao mundo dos brancos; ii) as limitações sócio-económicas dos negros (i.e.: a ausência de poder destes); iii) o exotismo associado aos negros, preconceito de difícil erradicação e profundamente pernicioso para estes, pois para Tenreiro ele é um instrumento de repressão da afirmação dos negros. O momento é, a seu ver, de resistência e de combate por parte de poetas e romancistas negros, consciencializados dos seus direitos, mas também por parte de intelectuais brancos – e elogia o romance Nigger Heaven, de C. V. Vechten.
É no traçado sobre as conquistas dos negros e na breve e simplificada descrição de alguns contatos culturais, que se compreende que este não é um simples capítulo sobre literatura. O fascínio de muitos brancos por Harlem merece a FJT os seguintes comentários:
a verdade é que o governo americano sempre viu nisso um perigo para a sua democracia (!!!). Ao americano não lhe convém que o negro conquiste a sua completa independência e isto está patente nos grandes recontros sangrentos que ainda hoje se verificam entre brancos e negros em toda a América. Durante muitos anos os negros contidos pela Colored-line, regida por leis rígidas, a pretextos fúteis foram linchados. (p. 87)
Toda a secção sobre poesia pode ser lida como um Manifesto elaborado a partir de um trabalho de montagem e de citação de poemas, no original, de três nomes cimeiros do Harlem Renaissance: Langston Hughes, Claude McKay e Countee Cullen. Do primeiro transcreve, na íntegra, o célebre poema I, too, sing America; do segundo, os versos assertivos do Poema “If we must die”: If we must die – let it be not like hogs, /…/ If we must die – let us nobly die; do terceiro, versos do livro Color. “Locked arm in arm they cross the way/The black boy and the white/The golden splendor of the day/The sable pride of the night.” (p. 89)[11].
É com estas estrofes, em repetição, que o capítulo e o livro encerram e este chamamento de Countee Cullen e não de Langston Hughes, o “guia” de FJT na descoberta da sua voz poética, não é desprovido de significação. Cullen é considerado o poeta romântico do Black Renaissance que diverge de Langston Hughes pela sua visão conciliatória inter-racial. São conhecidas algumas divergências e mesmo incompatibilização entre estas duas figuras icónicas do Harlem e o facto de Cullen ter instado Hughes a não ser um “racial artist”. A imagem de um branco e de um negro de braços dados não representa de modo algum a realidade coetânea de FJT, mas um anseio de que essa possa vir a existir (em consonância com a didascália de apresentação: “Countee Cullen projecta-se para o futuro” (p. 89). Um anseio de diálogo, no repúdio à violência, que já se divisa em “Canção do Mestiço”. Pois que, neste poema, mais do as ambivalências que lhe têm sido apontadas, poderemos ler uma injunção a um difícil exercício de alteridade – que o amor exponencia. Não serão os últimos versos uma glosa dos famosos versos de Camões?: “Transforma-se o amador na cousa amada”.
II
De Panorâmica da Literatura Norte-Americana (1945) a “Processo Poesia” (1963): considerações gerais e algumas derivações
1.Procurou-se, através do tratamento descritivo de Panorâmica da Literatura Norte-Americana dar uma ideia da amplitude de autores tratados, do real conhecimento/leitura do autor das obras que estuda e das posições ideológicas e políticas, que informam esta abordagem da literatura norte-americana. De facto, não se pode, de forma alguma considerar esta panorâmica como um estudo ideologicamente neutro e objetivo, mas nem o empreendimento historiográfico mais empenhadamente objetivo o é, como nos diz Hayden White nos seus estudos sobre o conhecimento histórico (e.g., Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-century).[12] Nele se projeta uma demanda de uma literatura alternativa ao paradigma europeísta e que hoje poderíamos designar por pós-colonial, no sentido usado por Bill Ashcroft e colaboradores. Mas o que mais se evidencia no close-up sobre os poetas negros e as suas realizações poéticas é a dimensão projetiva, de espelhamento das preocupações e dilemas do próprio FJT. O livro completava-se na leitura de Ilha de Nome Santo e este iluminava-se no cotejo com aquele. As narrativas autobiográficas podem assumir as mais diversas modalidades, assim como as modalidades de ação e de participação de um intelectual nos debates do seu tempo. Por outras palavras, a atitude intervencionista (de resistência?) de um escritor não se mede apenas pelos textos fortemente reivindicativos que escreve, ou pela poesia panfletária que produz.[13] A escolha da literatura norte-americana (e não da italiana ou de outra – iniciativa então promovida pela editora Inquérito) é, por si só signo de uma demanda identitária eivada de preocupações com a condição do homem negro em todo o mundo e com questões de descolonização cultural. Por sua vez, a republicação do ensaio em formato de livro pode ser entendida como uma estratégia de chegar a destinatários mais diversificados, a um público porventura mais amplo no seu espectro cromático e socioeconómico.
2. Essa estratégia passava, definitivamente, pela divulgação da obra publicada nos territórios do “Ultramar” e o primeiro passo é dado com a publicação, em 1953, da agora histórica antologia Poesia Negra de Expressão Portuguesa, que logo no seu título desafiava a ideologia vigente, como a crítica tem assinalado. Tratava-se de uma obra que incorporava de forma bem explícita o contributo da Negritude francófona – e as palavras introdutórias de Pinto de Andrade e de Tenreiro não deixam margem para dúvidas.[14] Mas as propostas da Negritude francófona representam mais uma ampliação de horizontes do que um estreitamento da visão, de redução do campo estudado – e basta pensar na dedicatória que é feita a Nicolas Guillén e na inclusão nessa antologia de um poema deste poeta cubano, referido por FJT como “uma das vozes mais puras e significativas da negritude” (apud Laranjeira, 2000: 20). Aliás, a simples enumeração das vozes tutelares da poesia negra de expressão portuguesa que se pretendia promover e estimular falava por si só: “Guillén, Césaire, Langston Hughes, Senghor, etc.” (ib.). Ao olhar transcontinental lançado sobre a “América” somava-se um outro olhar mais atento a “África” (no diálogo que se promovia entre a Europa e África – e é Tenreiro a introduzir o tópico do “diálogo”), depois de um olhar orientado para França. Um dos teoremas de FJT nessa breve “Nota Final” a essa pequena antologia é de que a negritude se expressa em línguas diversas, i.e., em francês, inglês, espanhol e português, sugerindo assim um campo literário transnacional – e é de notar que o autor grafa sempre em minúsculas o termo “negritude”. Vale a pena também relembrar as palavras finais da Introdução de Mário Pinto de Andrade sobre o público ideal desse volume: “destina-se fundamentalmente aos que, compreendendo a hora presente de formação dum novo humanismo à escala universal, entendem que os negros exercitam também os seus timbres particulares para cantar na grande sinfonia humana” (id.: 18-19).
Como escreve Deolinda Adão, ecoando o que Tenreiro afirma ou sugere em vários lugares:[15] “[E]mbora a negritude africana de língua portuguesa esteja fortemente influenciada pela negritude francesa, o facto de que tanto uma como outra estão [sic] directamente vinculadas com a Renascença de Harlem não pode ser ignorado, pois ao fazê-lo arriscamos menosprezar o valor da poesia africana em língua portuguesa dentro de um contexto internacional de literatura africana” (Adão, 2010: 376).
Não sendo o momento para revisitar polémicas em torno da Negritude em FJT, há que considerar que a leitura das obras poéticas e ensaísticas dos escritores da revista Présence Africaine é fundamental para um projeto mais definido de “reafricanização” dos assimilados, sem que a realidade sociocultural norte-americana se desvaneça do pensamento do escritor. É a partir deste lugar (real e imaginário) que FJT (ainda antes de ler Fanon) continua a ponderar os sentidos reversíveis das transações culturais, as transferências, entre negros e brancos – há também por parte dos colonizadores uma assimilação da cultura dos negros colonizados. O tópico da africanização dos brancos no espaço norte-americano surge timidamente no estudo de 1945 (1944), mas é retomado quase em modo de tautologia em “Acerca da Literatura Negra” (1961):
no vestuário, na cozinha, na crendice, na alegria exuberante, no ´sexo´, os homens dos Estados do Sul apresentam inconfundíveis ´marcas negras´; em contrapartida os negros do Harlem ou do South Side de Chicago aceitaram além do rigor protestante, muitos hábitos sociais do branco […]. Compreende-se que muitos livros se publiquem, romances, ensaios e poemas que se não fossem os dados biográficos do seu autor, passariam por trabalhos escritos por brancos.” (apud Laranjeira, 2000: 73).
3. Na década de 40, a Negritude francófona não podia deixar de interessar aos estudantes da CEI e poetas como FJT não só pela proximidade geográfica – e pelo seu programa de revalorização das culturas negras – como por problemáticas e inquietações em que o próprio Tenreiro se revia. No movimento da Negritude francófona encontrará o poeta percursos idênticos aos seus: artistas e intelectuais sem experiência e vivências do continente africano, que começavam por descobrir África, não nas terras do continente africano, mas no mundo dos museus, nos alfarrábios, nos trabalhos de antropologia, história e sociologia mais recentes. Por outro lado, a Negritude francófona leva-o a ponderar melhor a questão das relações interculturais, e, sobretudo, da solidariedade (com implicações no campo literário) entre poetas e intelectuais, independentemente da cor. Em “Acerca da literatura negra” (1961), dirá que em França (e remonta ao início da Negritude, ao primeiro número da Présence Africaine, em 1947) “Pretos e brancos estavam lado a lado” (apud Laranjeira, 2000: 76). A lista é extensa e a Negritude apresenta-se aqui como transcontinental (nos lapsos assinalados por Pires Laranjeira) e de raiz cultural. Atente-se nos nomes listados:
Pretos e brancos estavam lado a lado […] André Gide, P. Rivet, Th. Monod, E. Mounier, J.P. Sartre, M. Leiris, A. Camus, G. Balandier, H. Panassié a que mais tarde se juntariam outros COMO Jacques Richard Molard, Roger Bastide, J. Dresh, o Ver. Temple, P. Mercier e tantos mais que patrocinaram e colaboraram na revista – lado a lado com escritores africanos, uns já conhecidos como René Maran, Jacques Romain e Richard Wright [lapso: nenhum é africano – P.L.] como e outros que então se revelaram como L. S. Senghor, Aimé Césaire, Keita Fodeba, Alioune Diop, Cheik-Anta Diop, B. Diallo, etc. Era o movimento que ficou conhecido por negritude [sic]” (id.: 76-77; itálico meu).
Delineava-se aqui um caminho poético e biográfico que culminaria no texto “Processo Poesia” (1963), escrito a propósito da publicação, em 1962, da antologia Poetas de Moçambique, pela CEI, e cujos destinatários imediatos eram os estudantes da Casa e todos aqueles que a frequentavam. Escrito no ano da sua morte, este é um texto na melhor linha dos textos proféticos (“Esta é a hora…”) que nos chegaram de África (em modo poético ou ensaístico), com uma dimensão de testamento que o autor não podia adivinhar (morreria em Dez. de 1963).
Uma novidade neste texto – também de balanço dos trabalhos feitos[16], – reside na ideia de que algo se modificou numa década e que seria à época impossível “dividir a poesia em Poesia de pretos ou em Poesia de brancos” (apud Laranjeira, 2000: 68), sendo, no entanto, possível falar sem reservas ou receios numa poesia de Angola ou de Moçambique. O critério da cor cede pois lugar a uma geopoética que nos dias de hoje constitui uma das vias mais produtivas de investigação literária – e não nos alongaremos sobre esta mudança. O termo “Ultramar”, bem como outros rótulos e categorizações esclerosadas dos poetas e da poesia são objeto de desmontagem crítica, sendo o termo “Ultramar” usado numa aceção muito lata.
A esta distância, o que mais surpreende neste ensaio – para lá das profecias – em que perspetiva a poesia em termos dinâmicos (“processo”), são as palavras amarguradas de FJT em relação à alegada falta de acolhimento e de apoio por parte de poetas seus conterrâneos para com os poetas oriundos das colónias:
Volto a página ao Processo Poesia e fico maravilhado. Quando há vinte anos alguns jovens poetas nascidos no Ultramar, ensaiavam um cantar próprio, isto é, procurado nas perplexidades comuns às suas terras e gentes só colheram à sua volta a indiferença das crisálidas. Se é certo que o Novo Cancioneiro pôde acolher um deles, foram precisos muitos anos para que timidamente aqui e ali, uma voz mais afoita e generosa chamasse a atenção para aquilo que então se rotulava de Poesia incipiente. Agora, todos esses poetas modestos estão traduzidos um pouco por essa Europa além: em línguas latinas, eslavas e germânicas, constituindo o corpo mais vivo e expansivo da poesia portuguesa” (apud Laranjeira: 85 (sublinhado meu)
Atentemos nesta acusação de alheamento ou falta de apoio (ao invés de que aconteceu em França) por parte de um poeta que tinha em Portugal amigos como Alves Redol, Joaquim Namorado, entre outros. Tratar-se-á de uma perceção individual e subjetiva, motivada por dilemas e desencantos do próprio autor? A resposta mais plausível é: não de todo. Primeiro, porque Tenreiro bem poderia ter em mente a recusa da publicação do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa por parte de José Augusto-França, José Blanc de Portugal e Jorge de Sena (referida esta por Mário Pinto de Andrade em entrevista com Michel Laban). Segundo, porque esta visão/leitura da situação nos anos 40 é inviamente corroborada pelo testemunho de uma figura tão lúcida como Eduardo Lourenço, que a propósito de um epifenómeno como o poema “África”, de Joaquim Namorado, vindo a lume em 1940, no Diabo[17] ( republicado em Aviso À Navegação) escrevia o seguinte:
Em 1941, a temática africana estava ainda nos limbos. Em todo o caso, os poetas brancos, metropolitanos, estavam pouco sintonizados com a “presença africana” ou com a sua “ausência”…Como qualquer coisa de insólito, publicará a mesma série do “Novo Cancioneiro” um livro de poemas de Francisco José Tenreiro, intelectual mestiço, com posterior destino bem pouco “neo-realista”. […] Através do poema de Namorado e do livro de Tenreiro a realidade africana começa a subtrair-se na nossa consciência cultural […] à perspectiva folclorizante. (Lourenço: 113; itálico meu, exceto na palavra brancos)
O que se diz em relação aos anos 40 poderá, no campo da crítica, estender-se facilmente aos anos 50 e 60. Encontram-se facilmente recensões a trabalhos poéticos e ficcionais oriundos de Cabo-Verde, mas são escassos os artigos e recensões a contemplar obras escritas nas restantes colónias ou em situação diaspórica[18] – textos críticos esses imprescindíveis para a legitimação de uma literatura que, como relembrava Manuel Ferreira em nota de apresentação de Coração em África, recorreu frequentemente ao “expediente de edições clandestinas ou semi-clandestinas” (Ferreira, 1982: 13). Nalguns casos, porém, a alegada indiferença seria, decerto, imputável à situação repressiva que se vivia em Portugal e ao facto de “África” ser um “signo proscrito”, como sabiamente dizia Manuel Ferreira nesse mesmo lugar.
4. Mas os textos de FJT dessa fase traziam à mente outras inquietações e abriam-se a novas indagações críticas, que aqui queremos relevar. No ensaio “Acerca do diálogo entre a Europa e a África Negra – Dados para sua Compreensão”, que vem a lume em 1959, o poeta manifesta o seu desgosto pela continuidade de representações racistas dos negros ou por textos que podem catalisar essas representações, sobretudo quando elas são difundidas a partir de vozes cimeiras da poesia portuguesa. Aí critica os que, perpetuando um discurso colonialista de inferiorização e exotização dos negros, têm uma visão distorcida e redutora do continente africano, ignorando a sua complexidade e diversidade. E, inesperadamente, é o próprio Fernando Pessoa que surge visado, num passo marcado pela ironia e amargura: “Em terras de Babel o mito foi rasoira que reduziu culturas, raças, numa palavra, os homens, ao ´preto das ilustrações’! Pobre preto das ilustrações que foi também incensado quando uma Europa cansada de enciclopedismo procurou refúgio sentimental na vida deliciosa, paradisíaca do bom selvagem!” (apud Martinho: 36; aspas no original).[19] A expressão O “preto das ilustrações” ocorre no “VIII Poema”, de “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro, nos versos “E até com um trapo à roda da cintura/Como os pretos nas ilustrações”[20]. Este poema, publicado nos anos 30, chegava em 1946, a um vasto público através da edição da Ática. Evitando a nomeação, FJT direciona a nossa atenção para o estereótipo africanista e para o impacto de imagens desta natureza na mentalidade de um povo.
Através desse cliché usado (ironicamente) por Pessoa, FJT levantava uma outra questão para a qual ainda não temos grandes respostas: como é possível que “África” seja uma presença tão negativa, ou aparentemente indelével, na obra do nosso maior modernista? Ou, não estaremos perante um problema da crítica literária oficial, que durante anos procedeu a um “branqueamento” da obra de Almada Negreiros?[21] Que essa miopia ou parcialidade crítica existiu prova-o o estimulante ensaio de Pedro Serra, “Usos do ‘Primitivo’ Africano na cena de Orpheu. Uma incorporação de Fernando Pessoa”, cujo título ilustra uma abordagem quase inédita da obra pessoana. [22] Movendo-nos noutras direções, e inspirado por este ensaio, talvez seja possível proceder a outras revisitações quer da obra de Pessoa quer da de outros poetas maiores da literatura portuguesa no sentido de aí rastrear a presença africana e estudar o seu papel (poético-linguístico, por ex.) no contexto das respetivas obras. Ainda não se estudou em profundidade a influência de “África” (Guiné e Cabo Verde) e de outros lugares multiculturais e poliglotas (como Londres) na obra de Maria Velho da Costa. Como ainda não se estudou suficientemente a “coisa africana” na obra de Herberto Helder, a “frase ocre africana”. Uma coisa africana que pode ter chegado via França (de modo algum pela experiência angolana tardia do poeta-jornalista), através do movimento da Negritude, pois que em muitos versos transbordantes de HH parecem ressoar as amálgamas lexicais, os ritmos e cadências de Cahier D’Un Retour Au Pays Natal, de Césaire.
5. Num momento em que em Portugal continental a Poesia Experimental (1961) explorava rumos bem diferentes dos de poéticas anteriores, FJT defendia em “Processo Poesia” (1963), com firme convicção, a tese de que “África” (o “Ultramar”, o que quer que o termo significasse) era um modelo ou farol para novas e revitalizadas poéticas, nos ritmos, nas cadências, na imagética: “Que de caminhos para a Poesia! Desde os poetas a quem Djolibá, O Niger dos negros, marulhou nas línguas do Senegal, à ansiedade pávida das civilizações tocadas pelo islam, às canções tristes que os corás tangem na baixa Guiné, às delicadezas harmónicas dos xilofones dos conquistadores muchopes…” (apud Laranjeira: 66)”. O diagnóstico feito de que, nesses inícios dos anos 60, a poesia dos poetas do “Ultramar” (já traduzida em várias línguas), constituía o “corpo mais vivo e expansivo da poesia portuguesa” (id.: 65) era reiterado em final de ensaio em palavras proféticas que corrigiam um lapso cometido em função do lugar de enunciação: “Poesia de terras novas, batidas dramaticamente pela história, enriquecidas pela diversidade de contribuições culturais; a ela está reservada o papel mais vigoroso e belo na poesia em língua portuguesa” (id.: 69; itálico meu).
Em jeito de apressado remate, diria que as palavras de FJT não se esgotam na retórica da profecia e das injunções feitas a quem não consegue ver e ouvir mais longe do que o “largo de Camões” (“Que se penitenciem […] que se arrependam (id.: 65). Elas divisavam já a importância e o reconhecimento internacional que as literaturas africanas de língua portuguesa iram adquirir em tempos futuros. E se em vez de poesia pensarmos em ficção, diria que a profecia de FJT se cumpriu no séc. XXI (ou ainda em finais de XX), pois as vozes mais revigorantes e inovadoras da literatura em língua portuguesa vêm, a meu ver, dos jovens países que outrora foram colónias portuguesas.
Bibliografia
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–––––— (1963) “Processo Poesia”, in Negritude Africana de Língua Portuguesa. Textos de Apoio (1947-1963), pp. 64-69.
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SERRA, Pedro (2006), “Usos do ´Primitivo´ Africano na cena de Orpheu. Uma incorporação de Fernando Pessoa”, in Modernismo e Primitivismo (coord.), Coimbra, CLP, pp. 61-100.
[1] Cf. “Francisco José Tenreiro: entre as liminaridades do exílio e a identidade insular” (pp. 305-325). Como a dado momento escreve Mata “a história pessoal de Francisco José Vasques Tenreiro, feita de liminaridades identitárias (culturais, geográficas e étnicas), não podia fazer dele um sujeito monocultural” (p. 309).
[2] Cf. Tomaz Kim, in Mundo literário. Semanário de crítica e informação literária, científica e artística, N.º 1, 11 de Maio de 1946, p. 16. In http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/MundoLiterario/N01/N01_....
Fernando Martinho, no Prefácio que escreveu para a edição autónoma de Coração em África (1982), faz-lhe algumas referências no sentido de demonstrar a omnipresença dos afro-americanos no que considera ser a 1ª fase da obra do autor. Este é Prefácio notável e obrigatório para o estudo da obra e trajetória de vida de FJT.
[3] Veja-se logo na abertura do livro o comentário com que conclui a breve referência ao confronto entre os índios (norte)americanos e os colonos europeus: “E assim, hoje, resta dessa raça viril, habituada às grandes caminhadas e possuidora de uma cultura só para apreciar, apenas alguns milhares que como os bisontes são mantidos em reservados, que como relíquias curiosas dos tempos passados, para deslumbramentos dos meninos e meninas americanos que estudam história ou geografia humana” (op. cit.: 11)
[4] Cf. “A Literatura Negra Norte-Americana”, in Seara Nova, N.º 891, 9 de Set. de 1944, pp. 23-27, in http://ric.slhi.pt/Seara_Nova/visualizador?id=09913.037.002&pag=7) . Aí publica também, em 2 partes, o ensaio dedicado a Langston Hughes; cf. “ Langston Hughes, poeta da América”, in Seara Nova, n.º 931, 16 de Junho de 1945, pp. 107-109 e Parte 2/2, Seara Nova, n.º 932, 23 de Junho de 1945.
[5] Note-se que este termo ocorre com sentido oposto ao que ocorrerá nos anos 1970 e divulgado mais tarde no célebre livro The Empire Writes Back: theory and practice in post-colonial literatures, de Bill Aschcroft et alii.
[6] De facto, o livro Native Song, publicado em 1940, fora traduzido para português nesse mesmo ano pela Ed. Inquérito, em tradução de António do Paço.
[7] São apenas feitas alterações muito pontuais nas notas. Refira-se a título de curiosidade que Gerhard Seibert, no seu artigo “Francisco José Tenreiro: o homem além do poeta”, toma metonimicamente o capítulo pela obra: “Nesse período, escreveu também um livro sobre a literatura norte-americana negra contemporânea, intitulado Panorâmica da literatura norte-americana” (in Mata, 2010: 117-145; p. 122 ).
[8] Vale a pena ouvir a breve homenagem que lhe foi feita em “Langston Hughes, nos 50 anos da morte do poeta norte-americano”, em 08 Nov. 2017, no programa “O Som que os versos fazem ao abrir”, por Ana Luísa Amaral e Luís Caetano. In https://www.rtp.pt/play/p3076/e314654/o-som-que-os-versos-fazem-ao-abrir
[9] Cf. http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/MundoLiterario/N08/N08_master/MundoLiterarioN08_29Jun1946.pdf Sobre a presença de Langston Hughes em Portugal, sobretudo entre os autores neo-realistas, ver levantamento levado a cabo por Pires Laranjeira em A Negritude Africana de Língua Portuguesa, Porto, Edições Afrontamento, 1995, pp. 28-29.
[10] Não foi possível identificar o autor desta definição, pois há um erro no reenvio da nota inserida no texto.
[11] Tradução do autor em notas finais.
[12] Vale a pena comparar este estudo de FJT com La littérature américaine, história elaborada pelo académico Jacques-Fernand Cahen, editado em França em 1950, que viria a ter dezenas de edições, e traduzida no Brasil em 1955, de onde chegaria a Portugal. Não há neste livro altamente seletivo qualquer atenção a autores negros norte-americanos. Um capítulo intitulado “A Literatura negra” debruça-se sobre Faulkner e Hemingway, considerados como autores pessimistas. A ausência de referência a um poeta como Langston Hughes ou de outros da chamada Black Renaissance num país onde surgiu o movimento da Negritude só pode ser lido como um ato de exclusão e de discriminação.
[13] Sobre o empenhamento de FJT na dignificação do “homem africano” e para a construção da africanidade, fazendo dele um legítimo membro da “geração de Cabral”, veja-se o ensaio supramencionado de Inocência Mata, “Francisco José Tenreiro: entre as Liminaridades Identitárias”.
[14] Sobre esta questão, cf. estudos vários de Pires Laranjeira, o investigador que de forma mais continuada e sistemática tem estudado Francisco José Tenreiro.
[15] Veja-se, por ex., o que o autor escreve em “Acerca da Literatura Negra” (196):1 “O movimento literário dos negros norte-americanos, que nos anos de trinta muito se discutiu na Europa, antecedeu o despertar dos africanos para a consciencialização dos seus próprios valores.” (apud Laranjeira: 76).
[16] Sobre a poesia publicada nos inícios dos anos 50, dirá que três traços a singularizam: i) o exótico, “afastada das realidades miúdas da vida do quotidiano”; ii) a negritude, “poesia de consciencialização do homem perante as mesmas realidades” (p. 66); iii) a “amorabilidade”, presente na poesia caboverdeana, que “consubstancia em si o caso particular de um encontro generoso de civilizações “(ibid).
[17] Cf. Diabo, nº 309, 24.08.1940. Este poema pode ser lido on-line em http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/portugal/joaquim_namorado....
[18] Sobre a receção crítica das obras de autores caboverdeanos, veja-se o levantamento feito por Elsa Rodrigues dos Santos, em As Máscaras Poéticas de Jorge Barbosa e a mundividência cabo-verdiana, Lisboa, Caminho, 1989.
[19] Dada a dificuldade em consultar este ensaio (publicado em Coimbra, na revista Estudos, fasc. II-III, ano XXXVII), citamos este ensaio a partir do Prefácio de Fernando Martinho, 1982, p. 36.
[20] Cf. poema na íntegra (e referência completa) em http://arquivopessoa.net/textos/1487
[21] Tenreiro usa com frequência a expressão “dia claro” nos seus ensaios, sem referência alguma a Almada Negreiros.
[22] Ensaio in Modernismo e Primitivismo (coord. Pedro Serra), Coimbra, CLP, 2006, pp. 61-100.