Num Semba Poema, Num Semba Canção, Num Semba Ação: Escuta das Comunidades de Práticas do Semba enquanto Património Imaterial
“O passado não existe simplesmente na memória, mas precisa de ser articulado para se tornar memória” — Andreas Huyssen1
Angola entrou para a lista do Património Mundial da Humanidade em 2017, com a inscrição de Mbanza Congo, na Lista do Património Mundial da UNESCO como paisagem cultural pré-colonial. Esse momento marca a entrada de Angola na corrida patrimonial gerida de forma supranacional pela UNESCO.
Em 2018, a Ministra da Cultura de Angola avançou com a vontade de começar o processo de patrimonialização do semba com ecos na imprensa angolana e para satisfação dos músicos e sembistas. O semba é um género musical híbrido cujo ritmo assenta na junção de instrumentos de percussão e do violão. A sua difusão remonta à década de 1940, sendo também dançável a pares e em contexto social e de entretenimento.
Uma das minhas interlocutoras da pesquisa em curso sobre o processo de patrimonialização do semba é a cantora Aline Frazão. Conhecedora da herança do semba na comunidade musical angolana comentou o orgulho e até vaidade dos angolanos nas suas sonoridades. O semba constitui um importante bem cultural intangível para as comunidades de angolanos e angolanas e foi uma das formas em que se deu expressão a um sentimento de angolanidade, aqui entendido como processo de construção identitária para além da independência. A forma como o semba foi narrando como forma musical e na dança como uma forma de estar, revela um espírito que entrelaça um conjunto de memórias que foram sendo afirmadas como identitárias da condição de ser angolano, e ficou bem demonstrado na música Poema do Semba do cantor e compositor Paulo Flores (tema gravado em 2000, com Carlos Burity para o álbum Recompasso).
A ideia de património intangível vive muito da materialidade das performances musicais, dos seus eventos e repertórios, das suas histórias e legados produzidos pela comunidade de práticas do semba2. O desafio colocado aqui é entender como se articulam as memórias do semba desde o período colonial até ao período pós colonial. As transformações políticas e sociais ocorridas em Angola nas últimas décadas, colocam em disputa memórias muito diversas, por vezes antagónicas. Andreas Hyssens refere que “o problema da identidade nacional é cada vez mais discutido em termos de memória cultural ou coletiva do que em termos da identidade assumida pela nação e pelo Estado”3.
As ideias de uma comunidade imaginada são quase sempre heroicas e fabricadas, num ambiente pós-colonial que, em grande parte, mantém a moldura do Estado colonial como referente para a construção do moderno Estado-nação angolano, suas instituições e narrativas hegemónicas e dinâmicas4.
Há porém um lastro, deixado pela presença no poder do Estado angolano por parte do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que poderá provocar aqui um pequeno problema no que diz respeito à participação de todos os envolvidos nas memórias do semba enquanto bem cultural patrimonial. A memória coletiva do semba corresponde em muito à memória construída pelos músicos envolvidos no processo de libertação de Angola, com especial destaque para os Ngola Ritmos e para a figura de Liceu Vieira Dias. A memória dos músicos e cantores de semba tem vindo à tona através de inúmeros trabalhos académicos, mas também de publicações esparsas de diversos autores e autoras. Mas a sua memória reside sobretudo nas letras das músicas que resgatam memórias, formas de ser e estar, desejos e sonhos. Vejam-se os casos dos músicos Yuri da Cunha e Paulo Flores e. mais recentemente. o regresso do Conjunto Angola 70.
Um processo de patrimonialização e de inventariação é sempre um processo de seleção. A escolha de bens culturais para as listas do património ilumina determinadas constelações culturais deixando outras dinâmicas na sombra. Um trabalho de pesquisa em torno destes processos acaba por detetar estas disputas pela memória.
A falta de sincronia entre os fragmentos de memórias do semba entre a comunidade de práticas do semba - cantores, músicos, compositores e instrumentistas - e os agentes da cultura - ministras e ministros, direções de cultura e académicos e jornalistas - apresenta-se como um debate típico em torno do património imaterial como símbolo da modernidade.
O processo exige porém diálogo. É necessário antes de tudo estabelecer um inventário que respeite o espírito da Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial da UNESCO, envolvendo “comunidades, grupos e indivíduos” na “identificação, documentação, investigação, preservação, proteção, promoção, valorização, transmissão - essencialmente pela educação formal e não formal – e revitalização dos diversos aspectos deste património” (UNESCO, 2003, sec. 2, alínea 3).
As negociações pela memória do semba são assombradas pelos acontecimentos ocorridos no campo musical que após a independência geraram desconfiança em todas as partes envolvidas. Desde os acontecimentos de Maio de 1977, até às prisões de músicos em 2015, um lastro de medo e desconfiança em estabelecer este diálogo essencial para processos de patrimonialização horizontais, democráticos e participativos, é manifesto.
A pesquisa que tenho desenvolvido em torno do semba enquanto património imaterial tem sido um desafio de escuta das diversas vozes implicadas no processo de construção do presente, do passado e do futuro do semba. A criação de uma página na internet com o endereço: sembapatrimonioimaterial.com tem gerado reflexões importantes: 1) funciona como um mapeamento para o processo de inventário; 2) permite diálogos horizontais e participativos com os “fazedores” do semba; 3) alarga, pelo uso de hipermédia, o campo do trabalho etnográfico permitindo imagens, sons e texto em publicações online (algo mais difícil de concretizar nas monografias); 4) gera uma pesquisa colaborativa transparente- as pessoas envolvidas podem construir a própria pesquisa, criticá-la e debatê-la; 5) a academia e seus pesquisadores, sobretudo provenientes de territórios e instituições marcadamente eurocêntricas, como é o meu caso, podem devolver de forma propositiva e descolonizadora o trabalho de pesquisa, procurando gerar diálogos críticos.
A ideia de carácter processual do património alinha-se com aquilo que o filósofo chinês Yuk Hui denomina como “cosmotécnicas”. Diálogos críticos capazes de entrelaçar cosmovisões de distintos mundos para lá das performances culturais expressivas como é o caso do semba.5 Escutar essas negociações de memória e explicitá-las de forma imaginativa aproxima e multiplica sonhos, para lá das supostas autenticidades e identidades nacionais construídas em torno do Estado-nação. É preciso escutar o que está por vir, num semba poema, num semba canção, num semba ação.
MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
- 1. Huyssens, A., Twilight Memories. Marking Time in a Culture of Amnesia. Routledge, 1995, p. 3.
- 2. Comunidade de práticas foi um conceito desenvolvido pelo teórico da educação, Étienne Charles Wenger (2015): “comunidades de prática são grupos de pessoas que compartilham uma preocupação ou paixão por algo que fazem e aprendem como fazê-lo melhor, pois interagem regularmente”.
- 3. Huyssens, A., Twilight Memories. Marking Time in a Culture of Amnesia. Routledge, 1995, p. 5.
- 4. Malešević, S., “The chimera of national identity”. Nations and Nationalism, 2011, 17(2), 272–290.
- 5. Huk, Y. , Tecnodiversidade , Ubu Editora, 2020.