Um abraço em escuta
Ekwa Msangi, realizadora Tanzaniana-Americana, mostra a história de muitos imigrantes com a experiência de uma família angolana de imigração.
O primeiro plano, em contra luz e demorado, enuncia a área de chegadas de um aeroporto, seus sons e imagens são por demais conhecidos. Por aqueles que chegam a um lugar, partindo de outro. Esse micro-lugar retratado no filme Farewell Amor, que é das chegadas e partidas de um aeroporto, a representação última da “liquidez do mundo” de que nos falava Zigmund Bauman: o mundo da imprevisibilidade e da incerteza, a constante partida e a constante chegada.
A história recente de Angola é uma história de longas guerras e deslocações. Depois de catorze anos de uma guerra anti-colonial contra o regime do Estado Novo em Portugal, caiu numa guerra civil que correu de 1975 até 2002. O conflito civil atrasou a entrada no comboio do futuro. A assinatura da paz deu-se no ano de 2002 com os acordos de Luena. Quem escapou para o “exterior”, antes da paz, acabou por funcionar como antenas do mundo em permanente movimento. Muitos desses angolanos e angolanas acabaram por exportar aquilo que tinham à mão – a dança, a música e espiritualidades várias. A diáspora angolana funcionou como cola para utopias e futuros até ao calar das armas. A lenta consolidação democrática continuam a adiar o sarar de feridas do passado.
No mundo a presença angolana está capilarmente distribuída não havendo dados fidedignos. As vagas de migração deram-se sobretudo devido à guerra civil durante as décadas de 1980 e 1990. Algumas cidades europeias como Roterdão, Paris, Lisboa têm muitos angolanos. Nos Estados Unidos da América a cidade de Houston tem uma forte comunidade ligada à indústria petrolífera. A diáspora angolana nos Estados Unidos da América está estimada em sete mil residentes. Farewell Amor fala dessas comunidades espalhadas pelo mundo através da reunião de uma família.
A reunião de uma família, que já não se via há dezassete anos, é o mote para o filme Farewell Amor, da realizadora Ekwa Msangi, que se estreia na realização de longas metragens. Uma realizadora que é da Tanzânia e da América e que vive na Quênia. Rotas e raízes que permitiram traçar este guião que acompanha três membros de uma família.
A narrativa em alternância segue as vivências desse reencontro familiar na cidade de Nova Iorque. Os gestos e discursos de Walter, o pai, Esther, a mãe e Sylvia, a filha. Esta trindade será o mote para discutirmos a memória, o trauma e a música e a dança como competências capazes de curar, mas também de projetar imagens, afetos tão desconhecidos, as formas de que se reveste a angolanidade.
Walter partiu à frente por causa da guerra. É taxista numa cidade estereótipo da grande metrópole, ao mesmo tempo do sonho americano, mas também daquilo que se entende por modernidade. As diásporas e desejos de muitas pessoas terminam e começam em Nova Iorque. Ao longo do filme percebe-se que Walter está desconfortável com o reencontro. Afinal teve de refazer a sua vida. Encontrar novas sociabilidades, novas amantes. Até aprendeu a cozinhar de forma saudável. Integrou-se nas rotinas da península de Manhattan, lugar de filmes e ficções. E claro, as pausas para dançar semba e kizomba na discoteca. O novo milénio assistiu à explosão e expansão da circulação destas danças angolanas um pouco por todo o mundo. Os Estados Unidos não foram excepção. Muitos até começaram a enquadrar a kizomba naquilo que nas pistas de dança se escutava como “african tango”. A poderosa máquina da sensualidade que estas danças angolanas conseguem vender numa altura de grande individualismo.
Para Walter a dança e a música atua como ritual de ligação à terra através das letras de Bonga, Carlos Lamartine e Eddy Tussa. As passadas da vida feitas desejo, no entra e sai da pista de dança de um bar. A dança como lugar para mostrar o corpo em público, ao mesmo tempo processar as emoções privadas daquilo que Marc Augé chama de “não-lugar”. A ideia de que aquele lugar chamado Angola nunca se consumará em Nova Iorque, ao mesmo tempo aquele não-lugar de Angola, na América do Norte, nunca se poderá apagar. Porque as memórias são feitas de silêncios e esconderijos. Walter tenta apagar o rasto do segundo amor, “a outra” na voz de Matias Damásio. As roupas da mulher que entretanto aprendeu a amar, o colar no peito, igual ao da filha Sylvia.
Esther começa a intuir o que se está a passar. A sua vida foi feita de espera e projecção. Espera de voltar a ter Walter nos seus braços, a projecção de um futuro melhor para a família. Afinal, a distância acaba por fazer mossa. A guerra deixou as suas marcas. A incerteza transforma prioridades. E a fé pode ser o porto seguro. Enquanto que a dança e a música seguravam Walter, Esther foi-se aproximando do divino. Foi diluindo os seus sonhos em pequenas moralidades, não beber álcool, não querer dançar, não deixar a filha Sylvia perseguir os seus sonhos.
A Sylvia quer estudar, mas também quer dançar kuduro. Mostrar-se no liceu em Nova Iorque. As angolanas levam isso na bagagem: performatividades capazes de trazer duas coisas importantes, afirmação e vaidade. E o kuduro tem o poder de transformar imagens. Até quando Sylvia mente e diz que é filha de diplomatas angolanos em Nova Iorque.
Walter já tinha chamado à atenção. A cidade dos filmes pode ser um lugar terrível para quem é negro. Ao mesmo tempo pode ser um lugar de possibilidades. Possibilidades perdidas em Angola envolta numa maldição de conflitos e guerra, enredada em dilemas: como é que um país cheio de recursos e riquezas continua votado ao falhanço?
O filme é sobre o poder do amor. Do amor e dos afetos. A reunião da família coloca em cena três processos de memorialização e trauma. Mas também de afectos capazes de curar as feridas do passado, o perdão, capazes de fazer o futuro nos gestos de uma batalha de kuduro. Os desafios, os “bifes” de kuduro como imagem de “guerra” e paz, mas também de brincadeira e folia.
Com uma banda sonora muito cuidada, personagens muito bem trabalhados, Farewell Amor reformula a pergunta “Waatao”? da música do Puto Prata: “muita drena, nossa Luanda”… enquanto caem as lágrimas da cara de Esther seguindo da pergunta: O que fazemos agora? Walter responde num abraço e em silêncio tenta curar as feridas de muitos anos de traumas e sofrimentos.
Sylvia consegue ganhar o concurso de dança e no final a reconciliação familiar acontece em torno da mesa e da comida. A diáspora angolana tem com este filme mais um contributo. Um deslocamento que acontece há centenas de anos entre a violência e genocídio do tráfico escravista e a necessidade de fugir da guerra colonial e civil.
A parte coreográfica e cinética do filme está a cargo do grande bailarino e coreografo Manuel Canza, que felizmente acompanho desde o seu início quando ganhou a primeira edição do concurso de dança Bounce emitido em 2008 na Televisão Pública de Angola. A forma como tem estruturado os passos do kuduro e as suas potencialidades têm neste filme especial destaque. A dança tem sido um importante bálsamo para a alteração das imagens e políticas dos angolanos e angolanas no mundo.
Os angolanos e angolanos têm-se construído socialmente também fora de Angola e em diálogo com o mundo. Nessas partidas e chegadas levam uma bagagem do intangível, o imaterial: a intuição, a fé, a dança e o olhar triste e profundo da permanente incerteza. E o sorriso como resistência última de se esconder a tristeza, os infortúnios da vida.
Talvez à chegada e na partida não seja preciso falar muito. Talvez seja preciso escutar em silêncio e num abraço. Um abraço em escuta.
Artigo originalmente publicado em Africa is a country a 12/11/2020