Arquivo de Identidade Angolano: uma associação feminista e descolonial
Têm quatro anos de existência e centram o seu trabalho no diálogo e na acção para mais igualdade e justiça das pessoas LGBTQ+ em Luanda. Para isso partem de dinâmicas feministas negras e descoloniais para a criação de redes de acção e solidariedade. Esta abordagem já tem ecos junto das instituições do Estado como o Ministério da Justiça em Angola para a criação de uma agenda pela igualdade e respeito pelos direitos humanos das pessoas LGBTQ+. Líria de Castro é a activista angolana que dirige a AIA e falou-nos dos desafios da organização do colectivo AIA em tempos de pandemia.
Desde de 2017 a comunidade LGBTQ+ de Luanda tem desenvolvido um conjunto de actividades de visibilidade e pedagogia contra o ódio baseado no género. Para esse trabalho, uma jovem geração de activistas têm sido fundamentais sobretudo pelo diálogo com as instituições do Estado, mas também pela horizontalidade das lutas entre os diversos colectivos. Um desses colectivos é a AIA - Arquivo de Identidade Angolano (doravante AIA) dirigido, no último ano, por Líria de Castro. Nascida em Luanda, tem 27 anos e é assumidamente lésbica.
No ano de 2017 e, impulsionada pelas políticas internacionais de Barack Obama para a formação de jovens líderes africanos, Líria de Castro frequenta uma formação em Maputo relacionada com formas colectivas de activismo para a justiça e igualdade. Essa experiência resulta em conversas com outros activistas em Luanda. Ali e em diálogo com Nírio, do colectivo H maiúsculo, orientado para homens gays, Líria decide avançar “vou dar o meu contributo e fazer activismo”. Para esta decisão contou muito o encontro com Pamina Sebastião, jurista e activista queer angolana - da plataforma artivista Só Belo Mesmo.
Líria e Pamina decidem criar a AIA e trabalhar as questões LGBTQ+ a partir de um olhar feminista, queer e descolonial. Para esse trabalho contribuíram autoras como bell hooks, Audre Lourde, Djamilia Ribeiro, Grada Kilomba e, claro, Angela Davis. “Sugeri que fizéssemos algo diferente e em vez de ser mais um grupo LGBTQI+ fosse um grupo de mulheres feministas, porque não se ouvia a voz das mulheres lésbicas e bissexuais e muitas ainda estavam invizibilizadas”, refere na conversa com o dezanove.pt. Resgatar um “lugar de fala”, mas também de acção.
Nesse mesmo ano montaram um projecto que viria a ser um dos mais importantes no combate ao ódio contra as mulheres trans e também mulheres lésbicas. Uma casa de acolhimento a que chamaram No Cubico. No Cubico é usado para referir casa em Angola e também uma corruptela da palavra cubículo.
Líria de Castro vive no Prenda, junto à oitava esquadra. Um labirinto de casas numa escarpa que vai dar ao mar, esse sereno mar, onde vive a Kianda, uma figura mitológica que supostamente precisa de ser alimentada para não provocar tempestades. Essa figura meio mulher meio sereia que faz parte das mitologias urbanas de Luanda, cidade de grandes assimetrias baseadas no género.
Para Líria o No Cubico foi dos projectos mais importantes da AIA, pois era a partir das pessoas vítimas de violência que se poderia actuar de forma concreta. “Ouvíamos relatos de muita gente que vivia em casa de amigos sem alimentação e que eram expulsos de casa, sofriam violência doméstica e também violência económica e verbal por parte dos parceiros dentro da própria comunidade”.
A primeira casa de acolhimento No Cubico foi no bairro da Samba. Não tardou a presença de corpos dissidentes gerarem conflito e até situações de violência. “Sofremos uma tentativa de violação, meliantes entraram dentro de casa, arrombaram as portas” lamenta, numa noite em que estava presente. Pessoas que fogem da violência são alvo de violência. Tiveram de se mudar, mas antes fizeram a pedagogia no bairro estabelecendo contactos com as associações de moradores, ajudaram nas campanhas de limpeza, tentaram desmistificar o que são identidades LGBTQ+. Amenizou, mas não deixou de ser um alerta para as intolerâncias, numa cidade marcada por muitas iniquidades, onde medram igrejas com crenças mais conservadores e fanáticas e onde o patriarcado continua a controlar as hierarquias sociais.
“Pessoas que fogem da violência são alvo de violência. Tiveram de se mudar, mas antes fizeram a pedagogia no bairro estabelecendo contactos com as associações de moradores, ajudaram nas campanhas de limpeza, tentaram desmistificar o que são identidades LGBTQ+.”
Com esta situação a AIA obrigou-se a ter um assessor jurídico para a defesa de casos de violência e ódio de género sobre pessoas LGBTQ+. Também uma aproximação ao governo e ao Ministério da Justiça. A primeira grande vitória dos colectivos foi a alteração do código penal, ainda colonial e que descriminaliza as relações entre pessoas do mesmo sexo. Mas esse passo, noticiado em todo mundo, foi apenas isso, um pequeno passo.
Se a mão do Estado fica fora da criminalização, os membros da sociedade estão ainda ali para continuar a descriminação e a violência. Das reuniões com o Ministério da Justiça a AIA tem tentado apontar os bloqueios ao seu trabalho político e social, “em Angola as organizações não se podem registar como LGBTQ+, porque o próprio Código Administrativo não permite”, refere Líria, colocando enormes burocracias à acção com organizações políticas, instituições educativas e de acesso à saúde no sentido de dar apoio àqueles que necessitam. As mulheres trans são talvez as mais marginalizadas por causa desta falta de acompanhamento do Estado angolano.
Líria de Castro refere ainda que a mudança do No Cubico para outra zona da cidade permitiu novas redes de acção. “Fizemos pesquisas noutra zona da cidade de onde nos chegaram relatos de ser uma área onde há um fluxo de pessoas de orientação sexual fora da heteronormativa. Um lugar onde há mais solidariedade com as nossas causas”, assumindo a utilização de tácticas que contornem as possibilidade de homolesbotransfobia quer no espaço público quer na privacidade.
“No Cubico é um abrigo multifuncional e casa de lazer, aquelas pessoas onde não têm possibilidade de lavar a roupa, podem ler, temos livros, temos internet, computador, as pessoas poderem estudar, saem da escola e ficam lá, a fazer as tarefas e as pesquisas. É também um espaço de cuidado onde também providenciamos uma refeição diária. Depois a componente cultural, com as rodas de conversa, shows drag, música, poesia e peças teatrais”, resume a activista angolana. Ainda este mês decorrem as conversas com diferentes tópicos e que podem ser acompanhadas pelo Facebook da AIA.
Outra das medidas estratégicas foi a abertura de um escritório no centro da cidade de Luanda. Para além da organização administrativa permite ter um espaço seguro para actividades culturais e também as rodas de discussão, captando outras audiências. A falta de uma rede de transportes públicos seguros e acessíveis torna a mobilidade das pessoas muito complicada exigindo solidariedade e precaução. A visibilidade dos corpos LGBTQ+ são ainda um dos focos da violência que pode muitas vezes não ser física, mas que tem as suas manifestações verbais.
Solidariedade em tempos de pandemia
A pandemia do covid-19 veio trazer ainda mais desafios à AIA. Para Líria “O covid veio mostrar uma realidade que muitos não queriam ver” com muitas pessoas a caírem na exclusão sem possibilidades de trabalhar para comerem. A activista angolana destaca que tiveram de activar uma rede de solidariedade, “desde o ano passado conseguimos ajudar mais de 200 famílias só com a cesta básica e abrigamos mais de 9 a 10 pessoas”. Foi com perplexidade que conheceu casos que estavam fora do radar da AIA como mulheres trans de idade sénior incapazes de sobreviver neste contexto de grandes limitações com os cercos sanitários em Luanda e também a falta de ajudas concretas por parte do Estado.
Líria de Castro refere ainda que a pandemia veio ajudar a AIA a concentrar-se no concreto e dar resposta à crise social, conseguindo acompanhamento psicológico para mais de 20 pessoas.
As acções da AIA conseguiram ainda dar mais visibilidade mediática às campanhas em curso de resposta à crise pandémica. Uma visita ao site da AIA permite aceder a todo um conjunto de conteúdos como uma biblioteca com livros de pensamento crítico feminista e descolonial em língua portuguesa com o nome de Kutanga - Biblioteca Queer. Outro dos grandes feitos da AIA foi a tradução de um compêndio sobre perspectivas da luta Queer em África.
Líria de Castro vai continuar uma luta de várias frentes tentando criar espaços de diálogo e protecção para uma comunidade muito jovem, mas cheia de energia “Percebermos que não havia um lugar de conversa para as mulheres negras feministas LGBTQI angolanas, e tendo em conta o contexto religioso, político e cultural sentimos a necessidade de criar esse movimento, capaz de escutar a nossa realidade e nos aproximarmos ao que é real, aos problemas reais, desse contexto com as nossas próprias dinâmicas e agendas”.
Para todos e todas que queiram apoiar a AIA nesta fase de muita carência, aqui fica a ligação na secção do sítio online da organização: aqui.
Artigo originalmente publicado em dezanove a 04/02/2021