O existencialismo com Jean-Paul Sartre
Jean-Paul Sartre nasceu a 21 de junho de 1905 e faleceu a 15 de abril de 1980, aos 75 anos, depois de um percurso preenchido na filosofia do ser e do existir. A seu lado, de forma intermitente, teve Simone de Beauvoir, com quem partilhou ideias e experiências, para além de um confronto social e filosófico que foi transversal às décadas que viveram. O parisiense abraçou, assim, a sociologia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, o marxismo e os estudos pós-coloniais para desenhar o seu próprio existencialismo: um em que a essência é fruto da experiência e da existência, de uma forma autêntica de se ser e de se viver. Marcante seria, também, a sua tentativa de recusar a atribuição do Prémio Nobel da Literatura, que receberia em 1964, recusando ser institucionalizado, como o fez durante a sua vida e o seu pensamento, inspiração que seria ampla para as manifestações estudantis (e sociais) do Maio de 1968.
No núcleo da sua filosofia, importa, desde logo, referir a sua obra “O Ser e o Nada” (1943). É uma longa argumentação sobre as questões da consciência, da perceção, da própria desilusão e da existência do nada perante a questão da livre vontade e que se inspira na sua leitura de “O Ser e o Tempo”, de Martin Heidegger. Assim, a partir da fenomenologia – em que o objeto de estudo são as estruturas das experiências e dos fenómenos vividos pelo eu -, Sartre afirma que a humanidade vive atormentada com a necessidade de se realizar e de se completar, que não é mais do que aquilo que Deus personifica. Porém, Sartre defende que é a realidade material a primordial, já que um indivíduo nasce num plano material, que está inserido num universo, também, material. Assim, cada um está inserido no ser, não havendo lugar para formas do ser que se escondam para lá da consciência, já que esta é autoconsciente da sua existência. Toda a realidade é visível, palpável, onde a existência precede qualquer organismo essencial.
Em relação ao existencialismo, o francês achava que este não era mais do que uma tentativa de visualizar todas as consequências do comportamento humano a partir de um ateísmo cerrado e firme. Assim, partia do princípio da ação independente e auto-responsável do ser humano como um ser consciente, em que o resultado desse conjunto de ações e de vivências formariam aquilo que seria a sua verdadeira essência. E é Sartre que critica o ser humano de se sustentar numa “má fé”, quando alguém se convence de que se pode tornar qualquer coisa, com motivações vindas da sociedade, que o obriga a assumir valores falsos e a comprometer a sua liberdade individual. Torna-se, assim, num objeto que é movido pelas circunstâncias e não pela sua presença e respetiva ação no mundo, e que se compromete com a sua reflexão, ao invés do seu próprio ser. É algo que, apesar de tudo, é uma escolha livre e independente de cada ser humano, uma decisão livre que acaba por submeter a sua restante conduta. Para Sartre, a humanidade está condenada a ser livre e isso acarreta uma responsabilidade que adotar um dado sistema moral não inibe. Aliás, só permite desculpar e evitar assumir as responsabilidades morais da vida de cada um.
Uma outra obra que mobiliza estas ideias do pensamento de Sartre é “O Existencialismo é Um Humanismo” (1946), obra que seria, no entanto, refutada em certos pontos pelo próprio autor. Porém, e a reter, fica a ideia que emite neste livro: primeiro, o ser humano encontra-se e, só depois, se começa a definir. Outro conceito importante no seu pensamento é o de facticidade, que engloba tudo aquilo que delimita o ser e o não-ser do indivíduo. É uma limitação e uma condição da liberdade individual, que pode residir no passado, nas vivências já passadas, mas também nos próprios contextos nos quais nasceu e se desenvolveu, sem a autonomia adulta. Está, assim, enquadrada naquilo que é o ser em si, que são todos os objetos presentes no mundo exterior, a existência que, simplesmente, é, não sendo consciente, mas não sendo nem ativo, nem passivo. Por isso, classifica-o como o nada, já que a consciência não pode ser objeto dela própria e, como tal, não pode possuir uma essência. A ambição que Sartre identifica no ser humano de se transcender e de se deificar aponta para este conceito do exterior. Já o Outro é uma experiência análoga àquela que o ser humano vive no mundo, retratando, de certa forma, uma outra existência.
A própria perceção do ser humano do Outro permite a divisão da consciência por parte de Sartre: antes do ser em si, há o estado pré-reflexivo, em que o ser humano (o ser para si) age de forma independente de tudo o que lhe rodeia, com a consciência totalmente focada no que está a fazer. Porém, quando se apercebe do que lhe rodeia, ou de quem lhe rodeia, acaba por validar a existência de outras mentes e, em muitas ocasiões, adaptar o seu comportamento, tendo em conta os constrangimentos sociais e convencionais. É esta dimensão da consciência que compromete a ação individual totalmente autónoma e independente do ser humano, que, assim, acaba por abdicar de parte da liberdade que tem à sua disposição. A sensação de “desespero” acaba, de igual modo, por se fundamentar aqui, tendo em conta a presença do Outro e daquilo que a mente deste “dita” (o ser para os outros).
Sartre aborda estes e outros temas em obras de ficção, como “Náusea” (1938), um romance em que um historiador se apercebe da influência que objetos inanimados têm na sua vida e na sua existência e interroga o seu papel na definição daquilo que é a sua liberdade intelectual e espiritual. Daí advém essa sensação de náusea; ou a coleção de pequenos contos “O Muro” (1939), assim como a trilogia de “Os Caminhos da Liberdade” (1945-49), já com alguma propensão política. No teatro, deixaria a sua marca com “Entre Quatro Paredes” (1944), na qual três personagens no pós-vida a verem-se confinadas numa sala, aguardando o seu destino “infernal” e o seu carrasco, na qual estarão juntas para a eternidade. Aliás, seriam os fundamentos para Sartre receber o Nobel da Literatura, apesar de serem anteriores ao despoletar da Segunda Guerra Mundial, já que, só depois, o existencialismo em França ganharia mais volume e reconhecimento. Sartre herdava os saberes de Heidegger e de Edmund Husserl, ambos importantes pensadores alemães e, este último, o pai da fenomenologia, que tanto impulsionou a filosofia do francês. A essa fama, ajudaria a criação de um jornal, ao lado de Beauvoir e de Maurice Merleau-Ponty, “Les Temps Modernes” (1945), que abrigou muitos escritos de fundação do existencialismo, mas também vários escritos sobre questões e posições políticas que tanto viriam a fraturar o grupo, onde se incluía Albert Camus, entre convicções comunistas e outras mais moderadas. Seria nas posições anti-coloniais que Sartre criaria a maior controvérsia, especialmente quando critica a postura francesa em relação aos grupos de resistência argelinos, pró-independentes, mas também enquanto foi pró-soviético, mesmo após ter visitado o país, em 1954, até condenar a invasão à Hungria por parte desta União Soviética.
Nesta derivação política de Sartre, ficaria uma tentativa de unir o existencialismo ao marxismo em “Crítica da Razão Dialética” (1960), numa fase em que o francês já não se revia no comunismo partidário francês e no soviético. A ação consciente do indivíduo é um movimento direcionado para a totalização, que é influenciado pelas condições sociais existentes. Assim, a tal liberdade reivindicada não existe em absoluto, mas as circunstâncias também não limitam aquilo que é a ação humana. Assim, a sedimentação da História e a luta humana com a Natureza da sua vida e da sociedade acaba por desenhar um percurso que se pode definir como a vida social, numa busca incessante pela satisfação de necessidades individuais e coletivas. Tendo em conta que, no passado, reside a experiência da escassez, existem obstáculos inerentes a isso que se levantam e que limitam a humanidade daquilo que é o tomar de decisões. Para Sartre, o objetivo final do comunismo é restaurar a liberdade individual e a sua capacidade em reconhecer a liberdade dos outros.
Afirma-se, assim, claramente distanciado da ideia de Deus, ao contrário do seu predecessor, o dinamarquês Soren Kierkegaard. Limita-se, assim, à humanidade e à realidade tangível, na qual o ser humano não pode fugir de si mesmo e nada exterior ou transcendental o pode salvar. Nada existe a priori que o possa governar e que o possa orientar, limitando-se, assim, qualquer tipo de responsabilidade a si mesmo (assim, se agir mal ou de forma incorreta para com outrem, essa ação torna-o um ser humano cruel). Essa perceção, como mencionado, é pode levar à tal sensação de desespero e de intolerância, em que o opressor não existe, senão em forma de tomada de consciência da realidade. Para Sartre, o mundo é um espelho da liberdade humana, que obriga a que o ser humano aja e a que, de uma forma controlada na realidade, se “transcenda”. A liberdade total da ação humana reflete-se, assim, numa situação, situação essa que também só pode existir a partir dessa liberdade. É a situação que mobiliza a ação e o seu alcance, na plenitude das suas possibilidades e potencialidades.
Jean-Paul Sartre viu a sua filosofia ser profundamente questionada e desmontada por diferentes pensadores, tantos seus antecessores (como o próprio Heidegger), como sucessores. Porém, difícil é colocar de lado o seu peso e a sua influência na história da filosofia ocidental como um todo, já que se tornou basilar na discussão e na interrogação daquilo que é o ser e a existência humana, em relação à formação da sua própria essência. De igual modo, tornou-se uma figura de destaque nas causas de esquerda que muito mobilizaram muito do Terceiro Mundo, nas suas causas independentistas, mas também no seio da própria Europa. Porém, em destaque, está o seu trabalho, pautado entre ensaios e incursões por vários géneros literários, que fortaleceu o interesse pela filosofia por mais gente, de diferentes quadrantes, enquadrando-se neste dilema do ovo e da galinha: primeiro a existência ou a essência?
Artigo originalmente publicado por Comunidade Cultura e Arte a 13.02.2021