O fascínio da calçada portuguesa
Um dos elementos mais marcantes da expressão criativa e artística portuguesa está nos pés daqueles que percorrem o seu território, para além de outros tantos nos quais os portugueses foram importantes no seu ordenamento: é, precisamente, a calçada. Repleta de motivos tradicionais e de aspetos geométricos notáveis, é um esforço que, por mais prolongado pelo país, está na mão de um sem número de laboriosos indivíduos, que, de picareta na mão, colocam pedra sobre pedra, materializando essa visão profunda. Os calceteiros são, assim, os mestres práticos de uma teoria que desenha uma das marcas de referência da portugalidade.
A calçada portuguesa é o palco de inúmeros percursos pedonais que os portugueses fazem nas suas ruas, pisoteando o consistente e resistente solo, pautado pela pedra mais natural possível, mais rarefeita. Porém, aquilo que faz da calçada ser tão nacional não são só os motivos artísticos e geométricos, mas também o valor produtivo e a qualidade do assentamento das pedras, de cada uma elas, e do diálogo que elas produzem. É um diálogo que começa na extração da pedra, que é transformada e formatada como um paralelipípedo, à imagem de todas as suas futuras companheiras de “estrada”. Foram técnicas que foram importadas para as antigas colónias portuguesas, nomeadamente para o Brasil, onde permanecem alguns dos mais belos exemplos deste tipo de calçada. Eram os próprios calceteiros – alguns deles já mestres – aqueles que lá iam para protagonizar algumas das suas mais importantes obras. A reputação tornou-se cada vez mais célebre, o que aumentou a procura, que empregou mais de quatro centenas de calceteiros, acabando por levar até à criação de uma escola, na cidade de Lisboa, para a formação e aplicação desta técnica, que, também ela, é fruto de uma expressão artística. Aliás, é aqui que está o Monumento ao Calceteiro, uma escultura feita em 2006 por Sérgio Stichini.
Tudo começou com a presença romana no atual território português. Sendo os romanos um dos povos peritos na arte do empedramento e do calcetar, acabariam por plantar a semente de como assentar a pedra, mas também de como usar o mosaico como uma forma de trabalhar e de decorar a pedra. Aliás, Conímbriga alberga, na sua extensão, vários desses trabalhos ilustres, que asseguram esse legado vivo. Por sua vez, é em toda a extensão do território português, inclusive na futura capital, Lisboa (então Olisipo), que os romanos procuram incutir grande parte do seu progresso civilizacional urbano, abrindo espaço, não só a uma rede de vias de comunicação esmerada, mas também a uma série de edifícios públicos e à sua acondicionação. Aliás, importante também no legado da arte do mosaico seria a presença árabe, que plantou uma forte influência mourisca, em muito revisitada na futura arte da azulejaria.
Porém, a verdadeira afirmação da calçada portuguesa surgiria bem depois, uns quantos séculos depois, nomeadamente no XIV, já Portugal era um reino independente e autónomo. É D. João II, o décimo-terceiro rei português, numa fase em que Portugal ia amealhando riquezas provenientes das suas expedições marítimas, que vai aumentando os cuidados a ter com as vias de comunicação da própria zona ribeirinha de Lisboa, agora um polo de atração alfandegário e um local de grande dinamismo. Assim, essa qualificação será pautada pelo uso da pedra como suporte desses novos arruamentos, algo já feito a norte, no Porto, embora, aqui, com uma densidade mais granítica. Naquela zona da capital, o calcário era (e ainda é) a pedra dominante, em especial o branco, pelo que se tornou o grande suporte dessa empreitada régia, que é continuada no reinado de D. Manuel I, onde se assiste a essa revalorização utilitária e artística da pedra, a partir das suas cartas régias, que ordenavam o calcetamento das ruas de Lisboa. Estavam dados os passos para que esta pudesse ser uma referência denotada do ser e do andar português.
Essa referência tornar-se-ia ainda mais pronunciada com a reconstrução de Lisboa após os seus terramotos, nomeadamente o abalo de 1755. No reinado de D. José I, foi o seu ministro, o Marquês de Pombal, que orquestrou a grande renovação urbana da cidade, dotando-a de uma geometria bem rigorosa e harmoniosa, onde a calçada foi rainha e senhora dos arruamentos que, aí, foram surgindo. No entanto, o gosto pelo uso da calçada com um sentido artístico seria referência já depois, em pleno século XIX, com o oficial Eusébio Pinheiro Furtado, um membro do Exército com formação em engenharia e que, assumindo o cargo de governador do Castelo de São Jorge (1842-46), alimentou a intenção de ver as ruas sedimentadas com esse gosto. Um gosto que depurava as ruas e a sua pavimentação, tornando-as mais atrativas e paisagísticas. É nesta fase que nasce o comum “passeio”, onde os transeuntes têm uma plataforma que lhes assegura comodidade e segurança nas suas deslocações a pé. Um dos exemplos mais proeminentes desta nova perceção urbana é, precisamente, a praça do Rossio, onde é Eusébio Furtado o responsável pela sua requalificação.
O Rossio é o ponto de partida para que o resto da cidade se torna calcetada e revigorada. Desde o Largo de Camões, passando pelo Príncipe Real, pelo Chiado, pelo Cais do Sodré, até chegar à ampla Avenida da Liberdade, que nascia no final do século XIX. Essas pedras dialogavam, assim, na forma de autênticos tapetes, com motivos vários, que percorrem as formas geométricas, sem dispensar as futuras referências à história de Portugal, nomeadamente à propalada época dos Descobrimentos. Os seus moldes variam, assim, entre assentamentos em quadrados praticamente iguais entre si (em fiada, alinhando as pedras em filas paralelas), assentamentos em leque, recorrentes a norte da Europa, malhetes (feitos de pedras irregulares e de tamanhos variáveis), sextavados (com forma hexagonal e com um diâmetro de cinco centímetros), o assentamento diagonal, o mar largo (extensas ondas feitas na relação entre a pedra preta e a pedra branca) e o assentamento circular. A calçada em Portugal, na atualidade, e ao contrário do que se passava até então, destaca-se pelas faces quadradas e pela regularidade do tamanho das pedras, apenas distinguidas com as típicas assinaturas dos mestres-calceteiros, em pequenas formas geométricas feitas por estes para personalizar o seu trabalho.
Pedras essas que passaram a ser extraídas em diferentes pontos do território, desde a região da Estremadura, ligeiramente a norte da zona de Grande Lisboa, na zona do Maciço Calcário Estremenho, para além da própria linha algarvia e de pontuais lugares no Alentejo. Aliás, a extração da pedra e a sua preparação para que fosse calcetada tornou-se num ramo bastante lucrativo da indústria portuguesa, abrindo portas a uma valorização das condições de vida de muitas das suas comunidades. Para além da extração do calcário, sempre dominante, o basalto surgiu como uma alternativa, embora de grande dureza, o que dificultava a manipulação da sua forma. Para além da irregularidade das formas de ambas as pedras, a diversidade das suas tonalidades também acrescentam uma dimensão que fomenta o espírito decorativo da pedra na calçada, tomando em conta as potenciais conjugações de contrastes, entre as pedras pretas, as cinzentas, as rosas, as azuis, entre outras cores. Daí, sim, o calcetamento nas calçadas, a partir do engenho (e da arte) dos calceteiros, responsáveis pela preparação (compactação e nivelamento) do piso e pelo assentamento de cada uma das pedras que as forma, aproveitando as suas rachas para as ajustar e as moldar da forma mais adequada. Aqui, a exigência está, também, nas juntas que as unem, não despedaçando as configurações do seu desenho, para além de garantir a sua planura. Daí, uma cobertura com pó de pedra ou de areia e alguma areia fina até ao alisamento final do piso e a sua devida limpeza. A sua própria preservação é um passo importante, já que pode haver a necessidade de repor algumas das pedras e de restaurar o que está calcetado.
É indissociável, nos dias de hoje, a arte da calçada portuguesa das ruas portuguesas, tendo provocado uma grande replicação de Norte a Sul do país, sendo exportada assiduamente para o Brasil (onde se destaca a zona de Copacabana), para Angola e Moçambique, mas até para o seu uso em Sevilha, em Gibraltar e até no Central Park, de Nova Iorque. Não obstante, o futuro das suas realizações é discutível, dados os onerosos custos de manutenção das pedreiras e das próprias restrições ambientais subjacentes à extração continuada da pedra. Isso, porém, não nega a valorização exponencial da sua realidade, que a fez soltar-se do chão e saltar para as paredes, em elementos decorativos de espaços residenciais e comerciais, com representações e inscrições personalizadas para os devidos efeitos. Por exemplo, a sua distinção denota-se nas cores: enquanto os passeios se destacam pela sua brancura, os motivos decorativos são referenciados pelo preto e pelo cinzento, com os parques de estacionamento e/ou as garagens a terem o branco e o cinzento-claro como dominantes, em contraste com os sonantes motivos artísticos, estes já resultado de uma combinação entre a pedra branca com a rosa ou com a preta. É uma calçada distinta, de um valor histórico e patrimonial inestimável, que vislumbra, diretamente do solo, a beleza de um outro céu.
Artigo originalmente publicado em Comunidade, Cultura e Arte a 14/12/2020