A classe, a raça e o género em Angela Davis
Angela Davis é um dos rostos da luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos da América. Membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, foi uma das responsáveis pela criação do Comité de Correspondência para a Democracia e Socialismo. Para além de ter sido autora de mais de dez livros, abordando temas como o feminismo e as questões raciais e de classe, é professora emérita da Universidade de Califórnia. Tendo feito o seu doutoramento na Alemanha Ocidental, teve, ainda na licenciatura, também no mesmo país, como referência, o filósofo Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt. No regresso ao seu país, foi um dos rostos da campanha contra a guerra do Vietname e da campanha da segunda vaga do feminismo. Um dos seus sustentos teóricos foi, também, a questão das prisões – criou a organização Critical Resistance – e do nascimento desenfreado destas instituições, de forma quase industrializada. Numa fase em que a União Soviética caiu, preocupou-se em tornar o Partido Comunista mais moderno – ela, que havia ganho o Prémio Lenine da Paz -, posterior à linha dura do comunismo soviético. Atualmente, embora reformada da sua atividade letiva, permanece como um dos rostos de confronto e de choque em relação às distinções raciais subsistentes no seu país.
Angela Yvone Davis nasceu em Birmingham, no estado do Alabama, a 26 de janeiro de 1944. Cresceu, claro está, numa fase em que a discriminação racial era muito evidente, em especial no sul do país, herdando as tensões que a Guerra Civil não havia sanado e que as leis Jim Crow tinham alimentado. Aliás, as distinções eram cada vez maiores e os esforços concertados pontuais para poder confrontar estes dilemas. No entanto, o surgimento de rostos carismáticos, como o de Malcolm X e o de Martin Luther King, ajudaram a desenhar um caminho de resposta a estas vicissitudes, que nem sempre foram uníssonas. Entre incentivos à luta armada e à desobediência civil sem violência, muitas eram as vontades, mas pouca a harmonia. Para ajudar a isso, as mortes desses rostos carismáticos, quase todos eles assassinados por supremacistas raciais, só vieram acrescentar e até espicaçar as tensões já existentes.
É neste contexto que surge Angela Davis, uma académica que nascera num seio familiar estável, embora fustigado por essa discriminação. Após uma educação esmerada em casa, frequentou uma escola em que a realidade da segregação era, por demais, evidente. Apesar do ensino ser de menor qualidade, foi a rampa para que despoletasse o pensamento crítico de Davis, que se considerava uma privilegiada em relação aos demais colegas, maior parte proveniente de famílias empobrecidas. Seguindo as pisadas da sua mãe, Sallye B. Davis, que tinha sido uma ativista em prol da consciencialização cívica e social dos demais membros das comunidades afroamericanas, Angela manteve esse rumo quando recebeu uma bolsa para estudar em Nova Iorque e foi nesta cidade que assumiu, como ideal político e social, que cada um poderia contribuir para a sociedade em proporção das suas possibilidades e capacidades, enquanto esta lhe proporcionaria apoio material e espiritual. No entanto, e com a leitura do manifesto do Partido Comunista, idealizou a sua aplicação às questões raciais e às comunidades inseridas neste ambiente operário.
Depois de ingressar na especialização em Literatura Francesa, no estado do Massachussets, Davis recebeu uma bolsa para estudar na Sorbonne, em França, para essa mesma área. Conheceu de mais perto a realidade das lutas coloniais à escala afro-europeia e conheceu o filósofo Herbert Marcuse, que a incentivou a obter bagagem teórica para as suas causas. Concluído aqui o seu curso, foi estudar Filosofia para Frankfurt, dominando, já, o francês e o alemão. O seu doutoramento seria concluído já no regresso ao seu país, em 1969, dois anos depois de ter voltado, no estado da Califórnia. Aqui, estabelece ligações com as frentes de combate, nomeadamente com os Black Panthers, mas opta por se filiar ao Partido Comunista, apontando, como fonte da opressão e da pobreza discriminativas, o sistema capitalista. Por isso, assumia, como sua meta, o seu desmantelamento.
Enfatizava, assim, o caráter nacional da luta que assumia como sua, em prol de uma sociedade equitativa. Em 1969, quando já fazia parte dos quadros da UCLA (University of California – Los Angeles), é visada pelo governador do estado, Ronald Reagan, que a tenta expulsar, já que se havia tornado numa comunista. Esse aparato levaria Angela a tornar-se uma das referências das próprias lutas em que se havia envolvido e, depois de ver o seu lugar assegurado pelos tribunais, veria as suas aulas apinhadas. Porém, no ano seguinte, acabaria por sair, agora com o pretexto de usar linguagem incendiarária (embora não deixasse de dar aulas em outras instituições universitárias na Califórnia) e por se aproximar da realidade dos presídios californianos, que eram palcos de uma segregação racial manifesta, depois do célebre caso dos Soledad Brothers, em que três afroamericanos foram acusados de assassinar um guarda prisional. Angela Davis era, assim, protagonista em debates e em palestras, até ao dia em que foi acusada de assassinato. Isto porque uma arma sua havia sido usada por Jonathan Jackson, que tentara libertar os irmãos num sequestro em pleno tribunal.
Após tentar fugir, acabaria por ser presa e ficar atrás das grades durante ano e meio. Foi um período em que redigiu muitos ensaios, mas também uma fase em que recebeu o carinho de muitos artistas afroamericanos, que incentivavam a sua libertação. Em sua defesa, Angela expôs aquela que era a sua perspetiva: a responsabilidade pertencia a um sistema iníquo e compactuante com as injustiças sociais existentes e pouco consonante com a Constituição. Assume-se, de igual modo, como uma mulher de etnia negra e de valores comunistas e como obrigada a defender-se a si, com os meios à sua disposição, perante esse mesmo sistema que a perseguia e a todos aqueles que o colocassem em causa. Depois de ter sido declarada a sua inocência, Angela Davis via o seu legado fortalecido e a sua atividade legitimada, pelo que continuou a investir nas suas lutas, tendo, até, sido candidata à vice-presidência do país, tanto em 1980, como em 1984.
Um dos meios que Angela criou para poder materializar as suas preocupações foi a fundação da já referida Critical Resistance, atendendo às questões da mendicidade, da imigração e da não-conformidade de género como variáveis presentes na necessidade e na própria criação desses sistemas prisionais. Para a história, fica, também, o seu livro “Women, Race and Class” (1981), uma coleção de treze ensaios que sumariza as suas causas de vida e de trabalho, fazendo uma análise, de um ponto de vista marxista, norte-americana desde a escravatura até aos movimentos feministas e emancipatórios da década de 1960. Angela Davis tenta dar voz às mulheres de etnia negra, silenciadas durante o percurso da história, ao desconstruir as correntes feministas convencionais para poderem abarcar a questão da raça e das suas vicissitudes. Portanto, nunca é transparente que Davis se assuma como uma feminista, já que a sua preocupação em momento algum descarta essa dimensão racial. É uma linha de pensamento que, cruzando o ativismo e a militância política com a formação intelectual, se vai desenvolvendo da classe e da raça até à questão do género, que lhe chega nas relações profissionais que vai experienciando na própria militância, mesmo no próprio seio das comunidades negras. Portanto, identifica esta questão como transversal, embora destacando a dupla opressão da mulher de etnia negra.
É o reflexo da visão de uma África proveniente dos antepassados e até dos mitos, em que o homem assume o papel de protagonista e de guerreiro e a mulher se conforma na sua secundarização. Mesmo nas lutas contemporâneas pela igualdade e pela liberdade, a mulher vê-se, assim, presa a esse papel subordinado à ação do homem. Numa retrospetiva para a realidade da escravatura, Angela Davis relembra o caráter pioneiro das mulheres, que encabeçaram revoltas, inconformando-se da sua apatia na vida doméstica, que era a sua realidade nessa fase da história. No entanto, a dimensão da fragilidade feminina, num olhar passado, não abarca a mulher de etnia negra, já que esta não está contemplada no ideal de pureza e de brancura, mas antes associada, quase, a uma masculinidade. São estereótipos que também se prolongam na violência sexual perpetrada pelos senhores latifundiários e com escravos à sua disposição. Angela vê esta realidade como uma forma de a desumanizar e de atacar a própria comunidade escrava, que tanto despreza e odeia. É um ataque direto, que não só legitima a sua soberania em relação aos demais escravos, mas que os fere no âmago da comunidade.
Para esta leitura, Angela Davis sintoniza-se com o pensamento filosófico de Simone de Beauvoir e com o discurso do autor Frantz Fanon e coloca-os em diálogo, nesta dicotomia género-raça, avaliando o estatuto social e comunitário da mulher ao longo da história até ao seu momento presente. Neste, a mulher de etnia negra, que chega à atualidade após um passado de opressão e de constante necessidade de superação, vê-se nas frentes da igualdade de género e da luta assumidamente revolucionária, uma luta que se mantém presente, mesmo nas relações de exploração económica e até sexual da mulher de etnia negra. Condena, assim, o sistema por fazer vista grossa e por ter linchado o homem de etnia negra, no seu papel de “violador selvagem de mulheres de etnia branca”. Existe, assim, mais um confronto a fazer mossa e a isolar a mulher de etnia negra nas suas causas e nas suas lutas. De igual modo, critica o esquecimento da mulher de etnia negra que é presa e se torna invisível.
A pensadora viaja no tempo para resgatar os primeiros grupos que se juntaram em prol dos direitos inalienáveis das mulheres de etnia negra e debruça-se sobre os seus objetivos, como a questão de comprometerem-se com o desenvolvimento de todos os membros das suas comunidades. A questão de formar para empregar também é importante no seu pensamento, dado que é o emprego, o trabalho, que permite que a mulher possa ser independente e capaz de ter uma vida estável e certa, que, por outras palavras, é, também, uma fonte do tal empowerment que procura. Assim, acaba por enunciar que as mulheres de etnia negra são as responsáveis por trazer as ideias mais progressistas para o debate, já que convergem os interesses das mulheres no geral, mas também a vertente racial, que ainda mais evidencia a discriminação contra a qual se posicionam. Como base, a mesma proveniência: o sistema político e económico existente, que perpetua o racismo e que alberga os extremos, desde os homofóbicos, os sexistas e os racistas, com Angela a alertar para que estas ligações sejam devidamente percebidas e se interpretem. Como grande meta, neste percurso, alcançar uma ordem social que consiga abrir horizontes para as suas lutas, com a finalidade de redefinir os elementos que fazem perpetuar a opressão.
Sobre os blues, Angela Davis “pesca” este estilo musical, já que se trata de uma expressão que consegue abranger mulheres que, apesar de analfabetas e de um estrato social baixo, são algumas das principais protagonistas, tanto na composição de músicas, como na sua intepretação vocal e até instrumental. É dada uma voz sem filtros a estas mulheres para que possam, enfim, libertar-se dos tabus da sexualidade e poderem, enfim, ser transparentes no que toca às suas relações conjugais, boas e mais, e até a relações sexuais fugazes. Aqui, evidencia-se, então, a presença da mulher de etnia negra e da sua afirmação como um ser humano pleno de direitos e de liberdades, libertando-se dos habituais constrangimentos que a história e que a sua comunidade impunham.
Angela Davis, de uma vida farta de ativismo e de estudos, cujo número de ensaios e de perspetivas analíticas é bem amplo, tornou-se inovadora num discurso interssecional, capaz de unir género e raça numa só causa concertada. Para isso, porém, teve de desconstruir e de problematizar as teorias de origem de todos os movimentos pró-mulher e pró-comunidades afroamericanas. Isto porque a questão e a celeuma torna-se cada vez mais profunda e complexa, merecedora de uma visão que, no seu olhar, só poderia partir de uma caminhada marxista. Isto porque a luta de classes é, também ela, uma das frentes de Angela Davis e que não se pode dissociar da desconstrução de todo o sistema social, económico e político e das suas alternativas. Dessa forma, entre militâncias extremas ou não, largamente sustidas por um Estado, também ele, complexado nesses termos, Angela Davis desenhou um caminho de redescoberta e de combate que continua, ainda hoje, a ser tão influente e presente.
Artigo publicado originalmente por Comunidade Cultura e Arte a 06/12/2020