O legado musical e intervencionista de Zeca Afonso
José (ou Zeca) Afonso é uma referência nacional. Entre as vozes de contestação ao regime do Estado Novo, a ditadura que já se prolongava desde 1928 em Portugal, era ele que encabeçava. Era precisamente a partir da arte, da composição lírica, da música que expressou a sua indignação em relação ao estado do país, fazendo-o de forma tão sagaz e subtil que foi fintando a austeridade da censura. Após a queda do regime, manteve-se firme e vincou as promessas de Abril, que asseverou até 1987, ano em que faleceu, vítima de esclerose lateral amiotrófica. No entanto, o seu legado perdura e é, cada vez mais, um alimento para a alma de quem não é só português, mas de quem respira e usufrui da liberdade.
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu em Aveiro, a 2 de agosto de 1929. Cresceu numa família de classe média-alta o “Zeca”, filho de um juiz, nascido no Fundão, e de uma professora, oriunda de Ponte de Lima. Cresceu com os tios em Aveiro até aos três anos com o seu o irmão, João. Com essa idade, iria para Angola com a família, por obrigações do trabalho do seu pai, e viu Maria juntar-se à família como sua irmã. Aqui, cresce uma íntima relação com a natureza e com a geografia africana, aquela que camuflava as vicissitudes dos locais. Depois de Angola, e após um breve regresso a Aveiro, volta a África, desta feita a Moçambique. Foi curta a estadia, regressando a Portugal para viver em Belmonte, no distrito de Castelo Branco, na casa de um tio. É aqui que faz o ensino primário, obrigado a envergar o traje da Mocidade Portuguesa e a cumprir os preceitos do regime.
No ano de 1939, os seus pais partem para Timor, tendo até sido presos pelas tropas japonesas, que tinham ocupado a ilha, só regressando mais tarde, já depois do final da Segunda Guerra Mundial. Enquanto essa ausência de notícias sobre o seu paradeiro se mantinha preocupante para o jovem Zeca, este tinha entregue o seu destino formativo à cidade de Coimbra. Fez aqui o liceu e, como estudante da Faculdade de Letras da Universidade da cidade, no curso de Ciências Histórico-Filosóficas, integrou a Tuna e o Orfeão desta mesma universidade. O gosto pela canção de Coimbra foi-lhe incutido nesta fase, começando a percecionar um caminho que lhe possibilitava assumir uma crítica implícita e subtil ao próprio regime. Eram os primeiros traços de proximidade entre a música popular portuguesa, aquela que se viria a tornar intervencionista, com o fado. Adriano Correia de Oliveira, outro nome coimbrão, também caminhava neste sentido, acompanhando Zeca no sentido da inovação musical que inspirasse um hino à liberdade.
Zeca conheceria a sua esposa, Maria Amália, uma costureira de origens modestas, com quem casaria em 1950, em segredo, tendo em conta a oposição da família em relação a este matrimónio. Continuaria profundamente envolvido nas causas académicas e da própria composição musical, viajando com o Orfeão e com a Tuna pelo país e pelas próprias colónias, em especial Angola e Moçambique, que sempre guardou com saudade e com estima. Em 1953, o primeiro filho de Zeca nasceria. A sua família necessitava de um outro tipo de contributo que não o moral e o emocional: o financeiro. Pôs, assim, mãos à obra, enquanto obtinha alguns rendimentos das explicações que dava e da revisão textual que fazia no jornal “Diário de Coimbra”. É nesta fase que grava o primeiro trabalho discográfico com “Fados de Coimbra” (1953, o primeiro grande testemunho da sua efervescência criativa na cidade dos estudantes) e que tem a autorização para dar aulas no Ensino Técnico, um dos ramos do atual ensino secundário. Cumpre, no ano de 1955, o serviço militar obrigatório, dando início a uma carreira de docente que passa por cidades tão distintas, como Alcobaça, Mangualde ou Faro, dando aulas de História e de línguas.
Divorciar-se-ia em 1956, quando é colocado em Aljustrel a dar aulas. Dois anos depois, os filhos – nascera Helena em 1954 – vão para Moçambique, ficando ao cuidado dos avós. Zeca procurava, apesar destas turbulências, manter-se a par de Coimbra e daquele fôlego lírico que daí advinha, ajudando a isso a convivência com o compositor Flávio Rodrigues da Silva ou com o poeta Manuel Alegre. Os anos 1960 ajudam-no a catapultar esse caudal criativo para os discos e para uma presença cívica muito enérgica. “Balada de Outono” (1960) é mais um disco que o possibilita ganhar notoriedade no seio das comunidades locais dispersas pelo país, para além de se manter próximo dos movimentos académicos, que iam crescendo em desagrado em relação ao regime ditatorial. Mantém, no seu grupo de amigos, uma série de autores, como António Ramos Rosa ou Luiza Neto Jorge, que procuravam o mesmo caminho que Zeca: o de uma contestação que conseguisse levar de vencida o poder da pólvora com o poder da palavra. Continua ativo na Tuna Académica até meados da década, em que procura um caminho mais a solo, sem a guitarra coimbrã tão presente, pouco tempo depois de terminar o seu curso, em 1963, com uma tese sobre a filosofia de Jean-Paul Sartre. No plano pessoal, conhece a algarvia Zélia Afonso, com quem casaria.
A música de intervenção que tanto o caraterizou nasce, precisamente, neste período, fértil em baladas inspiradas pelas vivências e pelas convivências coimbrãs. Um dos seus principais colaboradores seria um estudante de medicina à data, o guitarrista Rui Pato. Com ele, grava dezenas de temas e viaja pelo país em diferentes festividades, nomeadamente aqueles que procuravam assumir uma postura anti-regime. Zeca dedicava-se à composição lírica, deixando os arranjos e a parte musical a cargo de Pato. “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro” são os primeiros grandes temas de contestação que o cantautor desenhou, juntando-se ao contributo de Correia de Oliveira que adaptou o célebre poema de Manuel Alegre “Trova do Vento que Passa”. A sua fama começa a ganhar contornos internacionais, expandindo-se pela Europa Central e pela Escandinávia, levando colaboradores da sua estima, como o violinista Durval Moreirinhas ou os compositores José Niza e o já mencionado Adriano Correia de Oliveira.
Em 1964, viria a ter uma atuação que marcaria indelevelmente a sua carreira. Uma atuação na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense inspira a composição de “Grândola, Vila Morena”, uma canção que viria a ser determinante na Revolução dos Cravos, protagonizada pelo Movimento das Forças Armadas a 25 de abril de 1974. Seria a palavra-chave do início das movimentações do golpe pelo qual Zeca tanto se bateu. Entretanto, lançara “Cantares de José Afonso” (1964) e “Baladas e Canções” (do mesmo ano, pautada por tons mais contemplativos mas interrogativos da sua realidade). Aqui, ficaram temas como “Canção Longe”, “Canto da Primavera” ou “Ó Vila de Olhão” no ouvido, juntando-se aos já apresentados “Minha Mãe” e “Os Bravos”. Zeca emigraria com Zélia para Moçambique, onde daria aulas e onde reencontraria os seus filhos. Procura, através da música e do próprio teatro – chega a colaborar com um grupo local -, dar resposta aos desafios impostos pela sociedade, procurando opor-se ao colonialismo (“Menina dos Olhos Tristes” é uma composição que reflete este descontentamento, que é amadurecido pela Guerra Colonial que deflagrava e da qual Zeca acabou por escapar). Joana juntar-se-ia à família em 1965, sendo filha do casal, assim como se juntaria Pedro, mas nem isso o impediria de pugnar pela livre determinação das então colónias portuguesas.
Regressaria a Portugal em 1967, quando é colocado em Setúbal como professor. No entanto, e após um período de baixa por doença, é expulso, sendo obrigado a retomar as suas explicações para o sustento da sua família. É uma fase em que intensifica a sua ligação às ações concertadas de contestação ao regime, mantendo-se perto do raio de ação do Partido Comunista, embora sem se afiliar. Seria preso pela PIDE pouco tempo depois, o que não o impediu de procurar outros horizontes para que o mundo pudesse ver o que se passava em Portugal. É assim que participa em vários concursos internacionais e até nacionais, arrecadando alguns prémios. Entretanto, também lança “Cantares de Andarilho” (1968, um álbum mais tradicional no qual se destaca a poderosa “Canção de Embalar”, “Vejam Bem”, “Balada do Sino” e “Natal dos Simples”).
Seria tratado por um anagrama (Esoj Osnofa) pela comunicação social, para evitar a desconfiança do regime. Os anos 1970 completariam o assomo criativo de Zeca, começando por “Traz Outro Amigo Também” (1970, que traz “Canto Moço”, “Canção do Desterro” e “Cantiga do Monte”) e por “Cantigas do Maio” (1971). Este é um álbum que conta a produção do portuense José Mário Branco, também ele um pulmão na canção de intervenção portuguesa, trazendo um grande cariz inovador à música composta. Juntam-se uma plenitude de instrumentos, como o trompete, a flauta, o piano e o acordeão na revelação de temas, como “Milho Verde”, “Grândola, Vila Morena” ou “Maio Maduro Maio”. Seria, de igual modo, crucial para fomentar uma nova geração de músicos de intervenção, onde se enquadravam Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino, Luís Cília, Francisco Fanhais, José Jorge Letria ou Manuel Freire. “Grândola, Vila Morena” seria interpretada, pela primeira vez, em 1972, no atual Auditório da Galiza, em Santiago de Compostela.
O LP “Eu Vou Ser como a Toupeira” é outro marco, em que Zeca interpreta vários ditos de Fernando Pessoa, assim como do moçambicano António Quadros. Interpreta, também, “A Morte Saiu à Rua”, dedicada ao escultor Dias Coelho, militante do PCP que havia sido assassinado pela PIDE em 1961. Houvesse uma grande manifestação em prol da democracia e anti-regime e Zeca estava lá. Era uma presença assídua e, para lá de criativa, atenta, constante e perseverante. Depois de atuar, em 1973, no Congresso da Oposição Democrática, aliando-se à Liga de Unidade e Ação Revolucionária, trabalha e grava “Venham mais Cinco”, que é o último gravado antes do 25 de abril por José Afonso. Aliás, pouco tempo antes do álbum ter sido lançado, foi preso no Forte de Caxias, vendo muitas das suas gravações serem interrompidas e perturbadas pela presença da polícia política. É um disco que traz, entre outras músicas consagradas, “Venham Mais Cinco”, mas também “A Formiga no Carreiro” e “Que Amor Não me Engana”, entre outros poemas que escreveu enquanto esteve preso e que interpreta.
A Revolução acontecia. Zeca era dos mais aclamados, precisamente pela luta que desenvolveu e pelas causas pelas quais se foi batendo desde há algum tempo atrás. Enquanto esta acontecia, a sua presença pouco ou nada tinha mudado. Enquanto leciona, procura estar sempre presente em comícios e em palestras, salvaguardando as causas e as conquistas de abril. A sua continuação na música só garantiu isso mesmo, do que é exemplo “Coro dos Tribunais” (1974), que sente uma grande influência das fragrâncias sonoras e culturais de um Moçambique que vislumbrava a sua independência e a sua autonomia. Fausto contribuiu nos arranjos de um trabalho que trouxe “O Homem Voltou”, “Ailê! Ailê!”, “O Que Faz Falta” e “A Presença das Formigas” para o mundo. Lançaria, também, “Com as Minhas Tamanquinhas” (1976), “Enquanto Há Força” (1978), “Fura Fura” (1979) e “Como se Fora Seu Filho” (1983), para além de revisitar os seus fados coimbrãos em “Fados de Coimbra e Outras Canções” (1981).
É um admirador confesso do PREC, que, a seus olhos, era o que mais cumpria com as promessas da Revolução. Defendendo a candidatura presidencial de Otelo de Saraiva Carvalho, é incansável, espalhando toda a sua grandeza musical e a sua firmeza lírica pelos palcos de todo o país, enchendo ambos os Coliseus de Lisboa e do Porto. Porém, a doença – neste caso, a esclerose lateral amiotrófica – susteria o seu percurso, acabando por procurar contorná-la o máximo que possível. Recusou a Ordem da Liberdade, que lhe seria atribuída em 1983, e ainda conseguiria lançar um outro álbum de originais, “Galinhas do Mato” (1985). Muitas das canções já seriam interpretadas por outros artistas que não ele, embora fossem suas as letras. A sua última manifestação pública seria a de apoio à candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo, que havia sido a primeira primeira-ministra do país.
Zeca Afonso faleceria a 23 de fevereiro de 1987, em Azeitão, Setúbal, aos 57 anos. As suas cerimónias fúnebres seriam de grande comoção pública, com quase vinte mil pessoas a homenagearem-no. Seria, aliás, bastante reconhecido postumamente, sendo várias ruas atribuídas com o seu nome pelo país, para além de vários galardões e galas com o seu nome, especialmente dedicados às causas e às celebrações de abril de 1974. Um pequeno sabor da grandiosidade transmitida por Zeca ao vivo nos palcos é mostrado pelos discos gravados ao vivo na Universidade de Hamburgo (“José Afonso in Hamburg”, produzido em 1976) e o reputado álbum duplo “Ao Vivo no Coliseu” (1983, no Coliseu de Lisboa). É uma autêntica celebração da sua obra e da sua carreira, contando com as presenças do guitarrista Octávio Sérgio, de Durval Moreirinhas, de Rui Pato, de Fausto, do instrumentista Júlio Pereira, do flautista e guitarrista Sérgio Mestre, do cantor Janita Salomé, entre outros. Uma homenagem que também perduraria seria a compilação feita por vários artistas nacionais em “Filhos da Madrugada” (1994). Celebravam-se vinte anos da Revolução e foram diversos aqueles que foram convidados a interpretar músicas de Zeca, nomeadamente bandas formadas entretanto, como os GNR, os Madredeus, os Delfins, os Mão Morta, os UHF, os Sétima Legião, os Xutos e Pontapés, entre outros.
José Afonso, ou Zeca, como foi abordado ao longo deste artigo, é um rosto totalmente incontornável na história mais recente da música portuguesa. Como se não bastasse a formação e a sensibilidade musical e lírica, o seu rosto e a sua presença tornaram-se marcos inabaláveis da causa democrática portuguesa num período de grande opressão, em que poucas eram as possibilidades da liberdade passar por aqui. Não era o povo que mais ordenava, adormecido como numa canção de embalar. Fazia falta animar a malta e Zeca foi um desses grandes estímulos, que acordou e abanou com as estruturas políticas e sociais, fazendo da arte e da música um caminho instintivo para que deixasse de ser a morte a sair à rua. Daí em diante, e até hoje, é e será sempre a vida, à boleia da liberdade que Zeca tanto fez por resgatar.
Artigo originalmente publicado por Comunidade Cultura e Arte a 24.04.2020