Outra forma de luta
Antes de conhecer a biblioteca, foi preciso conhecer a casa, porque esta biblioteca não existiria sem esta casa e vice-versa. Há lugares onde se percebe como tudo está realmente ligado e vale a pena olhar para muitas coisas antes de chegar aos livros. Primeiro, o terreno em redor da casa, onde já existe um gesto de coleccionador e um gesto de querer ter à mão o que é importante. Podia falar-se em auto-suficiência mas nunca se sabe o quão suficiente é suficiente. Daniel Nunes abre a porta da cozinha, descobrindo árvores de fruto, sai, e volta com lúcia-lima.
Serve o chá na sala, depois de acender a enorme lareira que, através de um sistema de aquecimento, chega a toda a casa. A sala, com tecto duplo, é ampla, testemunhando o desejo que há nesta casa dos grandes espaços; a madeira, revestindo uma parede inteira, torna-a acolhedora. Pendurados, quadros de pintores africanos de várias nacionalidades, máscaras tradicionais, mapas antigos de África, alguns dos quais Daniel Nunes procurou durante décadas. Numa vitrine, percorrendo quase todo o caminho entre a porta principal e a sala, peças em marfim, em bronze, em ferro, vindas de vários sítios de África e de épocas distantes, que falam de ritos de iniciação, de símbolos de procriação, que contam histórias milenares da humanidade. Pousada aberta, uma corrente como memória concreta da escravatura, um dos principais interesses de Daniel Nunes.
No lugar mais discreto, mas ao lado de uma janela pequena, fez um recanto de leitura, com espaço para um banco e uma mesa para um livro. Num suporte, está aberto um Missal Romano, editado para as colónias ultramarinas.
Daniel Nunes nasceu e cresceu em Cabo Verde. Viveu e trabalhou como engenheiro em vários países africanos. A família instalou-se nesta casa nos arredores de Lisboa, uma casa que ele planeou pensando em todos os pormenores e que agora parece ser o seu próprio e particular país.
E, finalmente, a biblioteca: a primeira parte fica numa mezzanine sobre a sala. De um lado e do outro, há varandas fechadas que asseguram que entre o sol e os livros há vários metros, muita espessura, porque a casa foi projectada para que os livros pudessem manter-se bem conservados. A temperatura, aqui, não muda com as estações. As prateleiras vão do chão ao tecto e foram construídas ao milímetro, ajustáveis a várias alturas de livros. Foi ele mesmo que fez parte delas, assim como o chão em madeira, para o qual teve ainda a ajuda do filho e da filha mais velhos.
Antes de morrer, a mulher ajudou-o a catalogar os livros desta secção da biblioteca: são cerca de 12 mil volumes, oito mil relacionados com a história da escravatura. A biblioteca continua na cave, com outros 30 mil volumes aproximadamente. O documento mais antigo que tem é de 1512.
Esta é a parte da biblioteca mais bonita, onde Daniel quis que fosse agradável estar. “Não quero estar num armazém de livros”, diz. “Quero sentir-me bem na minha biblioteca.”
Demora surpreendentemente pouco para encontrar um título. Sabe onde estão todos os livros. Estão organizados por assuntos, autores, depois por tamanhos.
No centro da biblioteca, estão duas secretárias onde pode ler e trabalhar e que podem ser utilizadas por eventuais visitas. Já tem recebido estudantes que lhe pedem para consultar livros raros. São poucos. É a primeira vez que Daniel Nunes mostra a biblioteca publicamente.
Como começou
Terá sido em 1953 ou 1954, numa daquelas cartas que enviava para Cabo Verde, para o pai, contando como ia passando em Lisboa com o irmão mais novo, sempre terminando com: “Saudades dos filhos amigos que a benção em nome de Deus vos pede”. Eram cartas que o pai depois devolvia, junto com as respostas, corrigidas a vermelho para que aprendesse a escrever bem. E terá sido numa delas que o pai autorizou que o irmão começasse a fumar e instruiu Daniel em relação ao dinheiro que devia retirar da mesada. A Daniel desagradava-lhe o tabaco e decidiu que, de cada vez que desse sete tostões ao irmão para um maço, guardaria outros sete tostões para si. Enquanto o irmão começava um vício, ele começava outro. Primeiro, comprou os livros que o pai o tinha proibido de ler, como Palavras Cínicas, de Albino Forjaz de Sampaio. Lembra-se que o primeiro livro que comprou teve de pagá-lo em duas prestações.
Naquela época eram poucos os estudantes africanos, mestiços e negros, em Lisboa, e em pouco tempo Daniel Nunes conhecia-os a todos, incluindo muitos daqueles que viriam ser figuras fundamentais na luta pela independência das colónias. Amílcar Cabral tinha chegado a ser estudante do seu pai em Cabo Verde.
Começou a frequentar a Casa dos Estudantes do Império, na Duque d’Ávila, no centro de Lisboa, onde tinha acesso aos livros e às ideias que circulavam e começavam a virar do avesso os conceitos do império. Descobriu que existia uma literatura africana e uma história africana. Descobriu que afinal estava tudo por descobrir.
Começou a comprar livros sobre África. Muitos dos amigos africanos juntavam-se aos vários movimentos de libertação e, de certa forma, fazer uma biblioteca onde se pudesse conhecer a história de um continente que até para os africanos era desconhecido era outra forma de luta.
“Primeiro, era o gosto pelo saber”, conta. Queria saber com tal profundidade que achou que tinha de ter os livros. “Para o que eu queria saber, se tivesse de ir a uma biblioteca pública não saía de lá.”
Não o satisfaziam explicações simples. Por exemplo, surprendia-o que as conversas sobre a escravatura fossem todas à volta da raça, negros vs brancos. Era o caso mesmo quando a discussão se passava entre pessoas com muita formação. Coleccionar livros e documentos sobre a escravatura, lê-los, era uma maneira de entender. Só juntando informação emergem explicações mais complexas. É essa a satisfação quando consegue comprar documentos de registo de uma das últimas levas de escravos a saírem de África. Ou um livro raro relacionado com o nacionalismo africano. Ou um exemplar de um livro africano que se dizia estar desaparecido.
“Por volta de 1968 ou 1969, já tinha a ideia de que estava a fazer uma biblioteca sobre a história de África. Primeiro, era a África de língua portuguesa. Depois, por causa do meu interesse na escravatura, toda a África. E depois, também a Europa, por toda a interligação.”
Nessa altura, os livros sobre África não eram caros, porque poucas pessoas se interessavam por eles. Quando os europeus entenderam que África iria ter importância e que seria preciso compreender as culturas africanas, isso mudou. Então, deixou de fazer contas.
Conhecer África
“Se tivesse metido o dinheiro no banco, tinha dinheiro, mas não tinha prazer”, diz. Está na cave e conversa enquanto procura um “título de concessão de propriedade” de Moçambique datado do início do século XX.
A cave são duas divisões grandes e um corredor. Todas as paredes têm estantes repletas de livros, com um intervalo de vez em quando para o olhar respirar. Uma das estantes é uma porta falsa que dá para uma espécie de arrumos. No centro das salas, há mesas repletas de papéis e livros que faltam organizar, enviar para restauro ou encapar. Um desumidificador trabalha constantemente.
Daniel encontra o documento que procurava e mostra os levantamentos topográficos detalhados necessários para que fosse atribuída uma propriedade em Moçambique. Explica que é preciso ver documentos destes para compreender como era feita a ocupação colonial.
Tem relatórios oficiais e periódicos de várias épocas. Completou recentemente os números do Boletim Geral das Colónias, mais de 500. Nada é em excesso. “Quem quiser conhecer profundamente Angola, tem de ter acesso, por exemplo, ao Mensário Administrativo.” Abre e mostra a Lista de Permutas e Ofertas. “Só me faltam nove cadernos”, diz. Mostra um dos números do Jornal de sciencias mathematicas, physicas e naturaes, que foi publicado pela Academia Real das Ciências de Lisboa entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, e que lhe falta encapar.
Vai até à secretária e pega num documento: “Isto aqui é a maior hipocrisia da história: países sob mandatos. O Sudão, onde caberiam vários países europeus, sob mandato dos ingleses. Algo estava errado.” São relatórios da Sociedade das Nações, entre 1919 e 1928.
Depois, tem “livros que são belos em qualquer parte do mundo”. Coisas como Espontaneidades da minha alma, do poeta angolano José da Silva Maia Ferreira, o primeiro livro impresso em Luanda em 1848, considerado um precursor da literatura angolana. Esta parte da biblioteca está organizada por países africanos de língua portuguesa e, dentro de cada país, para além de história, Daniel tem uma colecção também impressionante de romance, poesia, teatro.
É na outra sala da cave que conserva os livros que o marcaram na juventude. E é também na cave que está um exemplar da primeira tradução em português de O Capital, de Karl Marx, de 1912 (era uma tradução de uma versão francesa resumida), o único livro que veio dos mil e tal volumes que o pai tinha na biblioteca de que se lembra quando cresceu em Cabo Verde.
Como acabará
Senta-se à secretária, olha em redor, e diz: “E aqui estamos nós no meio desta livralhada.” É sábado e a filha mais velha e a filha mais nova de vez em quando entram na biblioteca e voltam a sair, vão ajudando com arrumações de livros e caixotes. Ele está aqui desde as 7h30 da manhã. As primeiras horas do dia passou-as a ler.
Pergunto-lhe o que acha que vai acontecer à livralhada. O que não pode acontecer, diz, é ser vendida às peças, desmembrada. “Até virava no túmulo.”
Já pensou que podia doá-la a um dos países africanos de língua portuguesa, mas os países onde gostaria de ver a sua biblioteca – uma das maiores bibliotecas particulares de história de África no mundo lusófono – provavelmente não têm condições para manter uma colecção destas.
Os filhos prometeram que vão tomar conta, mas ele sabe como é difícil manter uma biblioteca desta dimensão e com livros raros que precisam de cuidados especiais. E não se trata apenas de manter. “É preciso continuar a comprar”, diz. “Uma biblioteca nunca está acabada.” Daniel Nunes tem a sua lista de livros e os negociantes de livros, quer em Lisboa, quer em algumas cidades africanas, conhecem-no e sabem o que que procura. Outros livros aparecem sem saber que os procurava. Continua a ir aos leilões. Diz que os livros têm de continuar a ser comprados não pela bibliofilia mas pela informação, porque não é possível o saber estar completo. “Há quem diga que o Daniel Nunes tem tudo, mas nunca ninguém tem tudo.”