E quão livres são os imigrantes?

Em 1980 havia cerca de 50 mil estrangeiros em Portugal e agora há quase 500 mil. Desde 2006, Portugal tem uma das melhores leis de imigração da Europa. Gostamos de dizer que somos um país de emigrantes e que por isso entendemos os imigrantes. Redescobrimos no século XXI em Lisboa a cidade cosmopolita, desaparecido durante a maior parte do século XX. Somos morenos, somos louros, somos negros, somos mulatos, somos asiáticos, somos sul-americanos, somos de muitas nacionalidades, somos europeus, somos portugueses. Somos cada vez mais pessoas crescendo com diferentes coordenadas. Um em cada oito bebés que nascem no país tem pelo menos um dos pais estrangeiro. Falar sobre diversidade não é moda; é o nosso futuro. Este é um debate sobre “migração”, “discriminação”, “integração”, entre jovens para os quais estas palavras são o quotidiano.

lisboa, fotografia de Marta Lança lisboa, fotografia de Marta Lança

 

Malam Sisse nasceu em Portugal, mas porque nasceu em 1990, entre 1982 e 2006, quando a lei portuguesa não lhe dava direito à nacionalidade, não é considerado português e joga futsal, porque os estrangeiros não podem jogar futebol de 11. David Varela (Fox), 23 anos, veio da Covilhã mas ninguém acredita, porque ele é negro e é mais convincente se disser que é cabo-verdiano. Nuno Alves, 24 anos, não é de Lisboa porque é de Viana do Castelo e em Viana não é de Viana porque é de Lisboa, e de alguma forma, como outros serão sempre imigrantes, ele será sempre um migrante. André Silva, 21 anos, é um português como todos gostariamos de ser e dizemos que somos, mas muitas vezes não fazemos: tem amigos de todas as origens e pensa que assim será melhor pessoa. Edgar Silva, 27 anos, nasceu em Paris, cidade que já teve mais portugueses que Lisboa. Mamadu Faty, 16 anos, é português e tem familiares guineenses que arriscam a vida para chegar a Portugal e quase nunca encontram o Eldorado. Álvaro Pena, 23 anos, veio da Venezuela e tem sangue português, colombiano e argentino. Alex Dragomir, 22 anos, veio da Roménia para Portugal há seis anos, mas os empregadores não acham que fale suficientemente bem português para lhe darem emprego.
Vivem todos nos Anjos, bairro babélico, onde alguns julgam que Lisboa se perdeu e outros que Lisboa se encontrou. Frequentam o Espaço ConTacto Cultural, um espaço apoiado pelo Programa Escolhas, coordenado por Tiago Fernandes e Nuno Torres. É neste espaço que alguns colaboram dando formação ou fazendo animação cultural, outros simplesmente vão jogar xadrez ou consultar o facebook nos computadores disponíveis. No ConTacto Cultural também fazem rádio e gravam canções. Fazem rap ou hip-hop, a sua principal forma de expressão, e é raro terem outros espaços de intervenção pública. Este debate foi informal, num círculo na sala do ConTacto Cultural, no Mercado do Forno do Tijolo, junto da Junta de Freguesia dos Anjos. Durou uma hora e meia, o suficiente para ficarmos a conhecer, como diz uma canção rap de David Varela (Fox), outra “visão do futuro do passado”.

Trouxe um excerto de um poema “Queen’s Speech”, do poeta Lemn Sissay, britânico de origem etíope, que traduzi, e que me pareceu interessante para começar a discussão: “Eu sou um imigrante. Serei sempre um imigrante/ Eu ando como um imigrante. Eu falo como um imigrante./ Eu sou um imigrante da cabeça aos pés.// Esta palavra Imigrante, sabem como nasceu?/ Emergiu da palavra Migrar. Migrar./ Primeiro utilizada para descrever aquilo que os pássaros fazem./ E quão livres são os pássaros? Eu sou um imigrante como os pássaros.” Querem comentar?
Malam Sisse: “Imigrante como os pássaros”.  Ele está a comparar as pessoas com os animais, mas os animais não têm fronteiras. Nós ainda temos fronteiras e o que nos bloqueia são os papéis. Os europeus podem viajar para onde quiserem, mas para nós, os africanos, é complicado. Para vir para Portugal é preciso documentos. No Serviço de Emigração e Fronteiras [SEF] ficamos bué de tempo à espera, e pagamos. Eu paguei 40 euros só para fazer o título de residência e nasci cá. Já meti o pedido de nacionalidade mas ainda não saiu. Tenho os mesmos direitos que um estrangeiro. Isso é uma maneira de nos cortar as asas.
Tentei praticar futebol de onze, mas não inscreviam um estrangeiro. Eu só fui uma vez à Guiné por 45 dias. Sempre estive cá. Não temos a nossa identidade, a nossa nacionalidade. Nisso, somos tratados como animais.
David Varela (Fox): Tenho grandes amigos que nasceram cá ou vieram para cá em criança, e até hoje nem residência têm. Não podem candidatar-se a um trabalho. Não podem ir para um curso profissional. Não podem fazer nada. São encostados pela polícia, correm. Não fizeram nada de mal, mas correm, têm medo.
Mamadu Faty: Lá no nosso país [Guiné-Bissau], por falta de oportunidades de documentação, as pessoas têm que vir de barco e é muito perigoso. Tenho um primo que veio de barco e não morreu por um triz. Não é seguro, é ilegal, mas eles vêm porque querem ganhar uma vida melhor.
Malam: A Europa é cheia de ilusões para os africanos. Pensam que chegam aqui e vão arranjar logo trabalho. Mas depois não é fácil…
Mamadu: Arriscam as vidas, e depois aqui têm um vida pior do que a que tinham lá, e querem voltar. Mas como é que vão voltar?
O que é que vocês acham que pode ser feito?
Malam: Não podemos mudar nada.
Mamadu: Não temos poder suficente. Vai continuar assim até alguém impôr…
Fox: Mas tem que ser alguém importante. Nós somos peixe pequeno.
Malam: Só vai mudar quando os países fracos começarem a subir. O Brasil está a subir. Se os países africanos começarem a subir assim também, vai mudar.
Vocês sentem que só podem ter poder aqui se os vossos países de origem tiverem poder?
Fox: Nem que seja comércio. Ou seja, tem que ser uma troca. Não é pelo pensamento de “vamos ajudá-los, já que eles estão cá há 20 anos, foram criados aqui, andaram na escola com os nossos filhos”…
Então acham que o facto de África ser visto como um continente mais desfavorecido tem impacto na vossa vida aqui?
Malam: Estou farto que mostrem sempre as mesmas imagens tristes de África. As pessoas que nunca foram a África não sabem a beleza que África tem. Quando mostram a imagem de um africano ou é o tema da doença ou do roubo.
Mamadu: Nos telejornais, quando é uma coisa boa, o africano não aparece, mas se for um assalto, sim, e os africanos ficam mal vistos.
Voltando ao poema. Vocês acham que serão sempre imigrantes apesar de muitos de terem nascido aqui?
Malam: Eu vou viver sempre como imigrante. Daqui a pouco tempo vou ter o documento português, mas vou carregar sempre as raízes africanas.
Fox: Encontras uma pessoa na rua, ela pergunta: de onde é que tu és? Sou da Covilhã. Ah, és da Covilhã… Ao pé da Serra da Estrela? Yá.
As pessoas ficam espantadas?
Fox: Um bocado… Um bocado não, mesmo muito. Estão à espera que eu diga o Zimbabué ou qualquer coisa assim. Apesar de ter aquele espírito cabo-verdiano - a minha mãe é, o meu pai é, toda a minha família é – não implica que não possa absorver novas coisas, e que não tenha crescido com estes dois lados [Caboverdiano e Português]. Eles [os portugueses] vêem só um lado: o  “black”. Um indiano no Bairro Alto é o quer-flor, o monhé. São as diferenças raciais.
No outro dia comprei um casaco que gostei, com capucho, fixe, mas se ponho o capucho as pessoas desviam-se na rua. Se acordo de manhã chateado, porque não bebi café, por exemplo, e apanho o autocarro para ir para o trabalho, achas que alguém se vai sentar ao meu lado? Não se senta ninguém.
Nuno Alves [que é branco]: Mas eu se tiver mal disposto também não se sentam.
E há diferença entre as pessoas mais novas e mais velhas nestas reacções?
Nuno: As pessoas mais novas já estão habituadas a lidar na escola com outras pessoas de visuais diferente. As pessoas mais velhas têm outra mentalidade. O meu pai e a minha mãe não têm nada a ver comigo. Eles são do Norte, de uma aldeia. O meu pai ainda se lembra do tempo do Salazar.
Mamadu: Acho que vai mudando de geração para geração.
Malam: Depende. Há mulheres jovens que agarram nas malas com força quando me vêem! Isso dá raiva.
André Silva: Eu conheço pessoal de quase todas as raças: chineses, indianos, timorenses, sempre me dei bem com eles, crescemos juntos. Temos as nossas confusões, claro, mas faz parte do nosso crescimento. Temos o privilégio de usufruir da cultura dos outros e aprendemos com isso – crescemos como pessoas. Devemos ver isso como um benefício, não como: “ah, são de África, são assim ou são assado” – são como qualquer outra pessoa.

Portugal agora está mal. Se eu tivesse a oportunidade de ir para uma Suíça ou uma Dinamarca, ia, e não gostava que as pessoas me olhassem de lado e dissessem, este é português, este é assado, os portugueses têm fama disto e daquilo. Não olho de lado para as pessoas porque não gostava que olhassem de lado para mim.
Lisboa, fotografia de Marta Lança Lisboa, fotografia de Marta Lança


Tiago Fernandes [coordenador do Contacto Cultural]: A cultura de um país ou de um continente é uma fronteira? Nós portugueses temos uma cultura limitada entre o Gerês e Vila Real de Santo António?
André: A vida de Trás-os-Montes é completamente diferente da vida que se leva em Lisboa. Eu se vivesse numa aldeia, com uma horta, ia aprender a viver assim e seria normal. Se chegasse um rapaz a comer um “big tasty” [do MacDonald’s], eu ficava a olhar para ele: o que é isso? Ainda há pouco tempo vi uma reportagem de uma rapariga que não sabia o que era comer um “big tasty” na vida.

Apesar de eu não poder definir dos pés à cabeça o que é a cultura portuguesa, o que eu acho é que somos pessoas um bocadinho mais pacatas, mais conservadoras, sempre com o pé atrás. Eu não ando com o pé atrás, mas no geral acho que os portugueses são assim. Os africanos costumam andar aos 20 e aos 30, é uma cultura mais unida. Os portugueses não são assim, têm um amigo aqui, outro ali…
Nuno: Mas se fores para Inglaterra, tens bairros de portugueses, onde os portugueses andam sempre juntos. Quando imigram, juntam-se para ficarem mais fortes. Como os chineses aqui se juntam aos chineses. E os indianos aos indianos. Acontece em todo o lado.
André: Mas acho que há uma diferença: em África tem se pouco, mas vive-se com pouco. Aqui, não há maneira.
Malam: Lá em África, eles vivem com pouco, sabes porquê? Porque o vizinho é como família. Falta qualquer coisa em casa, pedes, o vizinho dá. Estamos sempre a dividir as coisas. Isso torna as pessoas mais fortes e gastam menos. Ajuda muito. Agora aqui, vais pedir a quem?
Fox: Quando eu vim lá de cima [da Covilhã] e vim morar para os Anjos, apresentei-me ao prédio. Acreditas que em 10 anos, os únicos que fizeram isso foram dois guineenses da Bela Vista e um indiano? Em 10 anos! E acredita que passou ali gente e gente e gente. Nunca ninguém chegou com uma torta, nem que fossem rebuçados de mentol, a dizer boa tarde.
ilustração de Margarida Girãoilustração de Margarida GirãoNuno: Quando eu vim de Viana do Castelo também me passei com a vizinha da frente por ela não me falar. Aqui é habitual. Em todas as grandes cidades em todo o mundo se passa isso.
Edgar Silva: Eu nasci em Paris e na minha infância, na creche, havia muitas culturas. Quando vim para Portugal [com cinco anos] não havia tantas culturas juntas. Crescer com essa envolvência de várias culturas em Paris, fez com que encarasse a diversidade como uma coisa normal.
Vocês costumam falar destes temas entre vocês?
Mamadu: Eu dispenso.
Nuno Torres [coordenador do Contacto Cultural]: Achas que não vale a pena este debate?
Mamadu: Sim, mas entre nós não falamos disso.
Nuno Torres: Mas nas letras que fazes com o pessoal falam disto.
Mamadu: Aí estou a mandar uma mensagem, é uma forma de expressão.
Como é que são as vossas letras?
Mamadu: Falamos de racismo.
André: De experiências que vocês viveram ou presenciaram?
Mamadu: Nas minhas letras, falo de todos os negros, não falo só de mim.
Malam: É sempre tema de conversa. Quando um português olha de lado, dizemos já que é racismo. Quando vemos um branco com uma preta ou uma preta com um branco, comentamos… É sempre tema de conversa.
Essa é uma questão interessante. Como é que vêem as relações de namoro?
Malam: O André namora com uma preta. Eu também namoro com uma branca. Acho que a próxima geração vai ser só mulatos…  
Alex, apesar de não teres uma cor de pele diferente, não é por isso que as pessoas deixam de te ver como diferente. Como é a tua experiência?
Alex: Não tenho tido muitas oportunidades de trabalhar, porque sou romeno e ainda não falo muito bem português.
Nuno Torres: A questão da língua é importante.
Alex: Tentei inscrever-me para um trabalho num armazém. Não tinha que falar muito. Acho que não está certo.
André: Álvaro, vieste com que idade da Venezuela?
Álvaro: Com 15.
André: Veio com 15 e já se engasga a falar espanhol.
Álvaro: Estou aqui há 10 anos e nunca lá voltei… O meu pai é português, a minha mãe é da Colômbia, e conheceram-se na Venezuela.
André: Estás a ver? É o cruzamento de culturas.
Álvaro: E os avós da minha mãe são da Argentina.
Como é que vocês se vêem daqui a 10 anos?
Mamadu: Se nos queremos ver bem, temos que fazer por isso. Não podemos ficar à espera que o futuro venha cair aos nossos pés.  
Álvaro: O problema é que este país cada vez está pior…
Fox: Quero imigrar para a Suíça, ganhar montes de dinheiro, e voltar para cá e abrir um negócio.
Malam: Eu gostava de ser jogador da bola.
Nuno Alves: Gostar a gente gosta de fazer algumas coisas; ter a oportunidade de as fazer é que é complicado. Se precisamos de dinheiro, todos nos sujeitamos, até vamos para a obra. Mas para um bom trabalho vão 50 entregar o currículo, a vaga é só para um, e entra o da cunha. Hoje em dia arranjar um trabalho que a gente gosta é como sair o euromilhões.
Querem acrescentar alguma coisa?
Fox: Sim, esta frase: Nem legal, nem ilegal, cidadão mundial!

Debate feito em colaboração com o Espaço ConTacto Cultural e editado com a colaboração de Malam Sisse.
Publicado no caderno P2, jornal Público, 16 Maio 2011

por Susana Moreira Marques
A ler | 15 Junho 2011 | Anjos, discriminação, imigração, integração, migração, novos portugueses