Ângela Mingas: Recuperar o passado, propor para o futuro
Artigo originalmente publicado em Rede Angola a 3/3/2014.
Quando começou a perceber a apatia que existia em relação à defesa do património de Luanda, Ângela Mingas descobriu também que o seu trabalho não teria só a ver com arquitectura. Nem sequer com história. Era uma coisa do presente e, para a qual, toda a sociedade teria que ser chamada. Fala em mudança de mentalidades e é esse o trabalho mais difícil.
Num país de grande crescimento, mas com desequilíbrios sociais gritantes, onde se quer o novo e se associa o novo ao rico, defender o direito de edifícios antigos a continuarem a fazer parte do quotidiano da cidade, pode ser uma tarefa algo quixoteca. Mas Ângela Mingas não parece ter perfil de sonhadora. Professora universitária, fundadora da Escola de Arquitectura da Universidade Lusíada de Angola e do Centro de Estudos e Investigação Científica de Artes, Arquitectura, Urbanismo e Design (CEIC-AAUD), tem um discurso tranquilo e quase sem hesitações. Conversámos no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no dia seguinte à sua conferência no âmbito da exposição de arquitectura “África, Visões do Gabinete de Urbanização Colonial”.
Acha que o património arquitectónico africano devia ser tão valorizado quanto o europeu ou o asiático. Cada vez que um edifício importante, que testemunha a história de Angola, é destruído, ela pensa no que diria o resto do mundo caso se tratasse da demolição de um edifício icónico em Itália ou no Afeganistão.
Ângela Mingas estuda, ensina, projecta. E, sobretudo, faz as paredes falar.
Como é que começou a interessar-se pela questão do património arquitectónico em Luanda?
A minha especialidade de formação não é só arquitectura, é também património. Então, começou por ser um interesse académico. Entretanto, enquanto docente, encontrei um problema: na Escola de Arquitectura [da qual é fundadora, na Universidade Lusíada de Angola] definimos como campo de estudo primordial a cidade de Luanda mas, para a maior parte daquilo que é o património construído, é muito difícil encontrar referências e dados sobre essa arquitectura. O principal motivo foi então a ausência de informação específica, de literatura, de bibliografia.
Grande parte da sua actividade tem a ver com a tentativa de sensibilizar a sociedade para as questões de património. O que a motivou a dar o passo entre agir no círculo mais restrito da arquitectura e levar o tema para a rua?
O clique aconteceu em 1998 quando se começou a falar sobre a destruição de um dos edifícios mais icónicos da cidade, representativo do período da escravatura, que era o antigo palácio da Dona Ana Joaquina. Esse foi o primeiro edifício destruído no final do século XX com a clara intenção de fazer construir no lugar uma torre, de serviços e escritórios, perfeitamente desconectada daquilo que é a história da cidade. Esse foi, para mim, o ponto de virada. Comecei a aperceber-me dos argumentos que justificavam a demolição: que o edifício era antigo, que não tinha recuperação. Como arquitecta, disse que não era assim. Qualquer arquitecto com o mínimo de conhecimento sabe que não é pelo facto de estar degradado que um edifício não tem hipótese de reinserção naquilo que é o quotidiano da cidade. E eu via que a população, de maneira geral, aceitava aqueles argumentos. Entendi que o cidadão comum – quando digo o cidadão comum, quero dizer o cidadão que não é arquitecto e que não tem formação nessa área – não tinha esclarecimentos básicos para compreender a importância daquele edifício, que era um testemunho fundamental de um dos períodos mais difíceis da nossa história que é a escravatura e, por isso, o edifício foi destruído sem que ninguém se importasse. Na altura, pensei: e se destruíssem o Coliseu de Roma? Provavelmente meio mundo era capaz de se insurgir. Lembro-me que tinham sido destruídos pelos Talibãs dois budas milenares e o mundo todo ficou em choque. Eu percebi que o que estava a faltar era conhecimento e formação. Falar de património não é só falar de um edifício como edifício propriamente dito, falar de património implica que exista uma comunidade que sinta aquele objecto como seu. O trabalho sobre o património tem que passar pela sensibilização.
Inicialmente, foi um processo algo arrogante: falávamos entre arquitectos sobre arquitectura com linguagem de arquitectos, um pouco como os médicos que quando querem ser pedantes não falam em dor de cabeça, dizem cefaleias. E entretanto, é destruído em Luanda um edifício absolutamente extraordinário da época do modernismo: o mercado do Kinaxixe. Com a demolição desse edifício icónico a população acorda, não necessariamente pela destruição do edifício em si, mas porque perdeu na cidade uma referência urbana. A partir daí, as pessoas começaram a estar receptivas à informação que nós, arquitectos, tínhamos para passar, e foi só juntar as coisas. O Centro de Estudos [CEIC-AAUD, Centro de Estudos e Investigação Científica de Artes, Arquitectura, Urbanismo e Design] juntou-se com uma associação de amigos e residentes de Luanda e com esta parceria criou-se uma campanha de sensibilização pública, a trabalhar na rua, com as escolas, a fazer passeios diários para mostrar o património e falar sobre os vários períodos históricos de consolidação da cidade. E com isso, ganhámos um espaço social.
Usou a expressão “sentir o património como seu”. Esse sentimento ou essa falta de sentimento dos angolanos em relação aos edifícios históricos tem a ver com o facto de associarem muitos deles à história colonial?
Não, não tem a ver com isso. É, primeiro, uma questão de vivência e, depois, uma questão de reconhecimento e de importância.
Nós temos uma sociedade muito jovem. Angola é um país que, segundo as estatísticas e alguns dados levantados que agora vão ser confirmados pelo censo, tem cerca de 70 por cento da sua população abaixo dos 25 anos. Portanto, estamos a falar de uma população que já nasce quando Angola era há muito independente. Quer dizer, para eles a questão colonial não tem importância. Mesmo eu, que nasço no início dos anos 70, tenho muito pouca relação com aquilo que é o momento colonial. Só quem tenha para cima de 50 anos é que terá uma experiência vívida daquilo que foi o regime colonial. Em Angola, não se sabe de nenhum edifício que tenha sido violentado pela população por ser um edifício colonial. Inclusivé, o ex-libris da cidade de Luanda é o Banco Nacional de Angola que é um edifício colonial e muitos deles são hoje edifícios públicos angolanos. Não acho que as pessoas façam qualquer tipo de rejeição por associação à época colonial. Agora, esse tipo de argumento pode ser usado facil e maliciosamente – e jogado pela imprensa – por agentes do mercado imobiliário para justificar a alienação desse património, um património que na maioria dos casos está altamente bem localizado. Estamos a falar às vezes de casas pequenas, como sobrados do século XVIII, que são casinhotos com dois pisos e com 100 metros quadrados, que estão virados para a baía na zona histórica da cidade. Quer dizer, é uma localização perfeita para fazer um shopping...
Posso dar um exemplo: há uma casa – uma casa típica de Luanda que morfologicamente tem características particulares que vêm desde o século XVI – que é utilizada como posto da polícia e que tem na parede do quintal grilhões de escravos. Não podemos de maneira nenhuma destruir um edifício como este. Independentemente de ter sido construído ou não por um português, o que interessa é ser um espaço que testemunhou o processo da escravidão humana.
É por a sociedade angolana ser muito jovem que há uma sede de edifícios novos?
Luanda está a precisar, e isso não é de hoje, de uma renovação das suas estruturas. Temos uma cidade que tem, à vontade, mais de metade da sua mancha urbana ocupada por bairros degradados. É preciso investir no sentido de optimizar alguns bairros que têm solução assim como alienar zonas que são absolutamente putrefactas e que não têm qualidade nenhuma de vida para dar lugar a novas instalações porque as pessoas precisam de viver com qualidade.
Agora, eu não falo da necessidade de mudar e de introduzir factores novos na cidade. Eu falo da destruição daquilo que é perfeitamente recuperável e de se integrarem projectos que, na maior parte dos casos, nem sequer servem os propósitos e o interesse do cidadão comum.
E o que precisa o cidadão comum de Luanda?
O cidadão de Luanda precisa, por exemplo, de espaços verdes. Estamos a falar de uma cidade que só tem 7 por cento das áreas verdes que necessitaria. Luanda está a precisar de um sistema de serviços que facilitem a vida do cidadão e faça com que ele não tenha que se movimentar às vezes quilómetros para poder usufruir de equipamentos públicos.
Luanda precisa de melhorar cada vez mais o seu espaço público, precisa de se democratizar na sua vivência quotidiana e de eliminar a ideia, para mim preconceituosa e arrogante, do condomínio.
Isto é o que Luanda precisa, o que se vê é um bocado diferente, mas é uma questão de tempo, espero.
A Ângela dá aulas e lida com muitos jovens arquitectos. As novas gerações vão pensar a cidade de forma diferente?
Acredito que sim, mas acho que uma mudança de mentalidades sobre como intervir na cidade só vai acontecer com expressão talvez dentro de uns dez anos, porque leva vários ciclos formativos até isso acontecer.
E depois, os estudantes saem da universidade com formação e com ideias novas mas chegam ao mercado de trabalho e os clientes não estão receptivos. Por exemplo, um estudante que formamos e que diz a um cliente que o cimento é um elemento de altíssimo grau de toxicidade para os solos e que se devia investir na arquitectura de terra, por questões de sustentabilidade, depara-se com a mentalidade de que construir com terra é ser pobre.
As pessoas têm ideias feitas sobre o que é ser moderno, é isso?
É, e entende-se perfeitamente que assim seja. Quando se está a fazer recuperação e se faz uma casa igual à anterior, se, socialmente, a pessoa foi formatada para ver aquela casa como uma casa de pobre, então não vai querer. Porque a ideia de progresso, a ideia de bom, a ideia de qualidade de vida não está associado àquilo. Os processos não são lineares e não se trata só do objecto de arquitectura, é tudo o resto.
Os processos de sensibilização precisam de exemplos conseguidos e consolidados – e aí, creio que as figuras públicas e os movimentos públicos têm muita importância.
Há muitos arquitectos estrangeiros a trabalhar em Luanda, muitas empresas de fora. Quais são as vantagens e as desvantagens?
O que vejo acontecer é que existem muitos front offices de ateliês de vários países – Portugal, África do Sul, Brasil, e até de países asiáticos, como Singapura, Malásia, China, Coreia – que depois são representados por arquitectos angolanos, muitas vezes júniores. O que acontece então é que temos muita arquitectura a ser produzida fora do país e depois posta em prática e fiscalizada por angolanos. De facto, a produção estrangeira é discrepantemente superior à produção angolana. Mas acredito que isso vai mudar.
Quer isso dizer que os projectos são pensados sem se conhecer o sítio onde vão ser localizados?
A maior parte da arquitectura que se faz em Angola é desenhada por pessoas que, na maior parte dos casos, nunca estiveram em Angola. Basta só olhar.
Que projectos tem a curto prazo?
Tenho dois. Um tem a ver com investigação que estou neste momento a desenvolver, num trabalho integrado com universidades africanas, que tem a ver com o estudo dos musseques e com a proposta de novos arquétipos e espaços habitacionais para o desenvolvimento das cidades em Angola, utilizando como elemento de base a filosofia Banto. O segundo, tem a ver com a recuperação específica de património que temos em Angola e que vem do período da escravatura e do período colonial. São dois braços, do ponto de vista profissional que, de alguma forma, se misturam. Um deles é propor para o futuro, o outro recuperar o passado.