Nós por lá. Notas de Lisboa sobre postais
1. Um postal não é uma carta. Um postal é apenas uma nota, algo que diz: eu estive ali. Um pequeno bilhete que se envia para que alguém não se esqueça de que nós estamos no mundo a caminhar de encontro a algo: campos, manchas enormes de água, picos de montanhas, bosques, dunas de areia, monumentos, obras de arquitectura que se tornaram paisagem, outras pessoas das quais não lembraremos quase nada a não ser das suas terras.
2. Uma das últimas coisas que digo à minha filha mais velha antes de partir em viagem é que vou escrever. Que vou escrever à mão, mas a realidade é que nem ela – nem eu – estamos preparadas para essa comunicação dessíncrona, para não assistir quase em directo à resposta à nossa mensagem.
3. Sempre gostei de guardar postais de lugares perto de mim. Tenho em casa, por exemplo, um postal de uma das ruas onde vivi em Lisboa. Não é uma recordação, é mais uma nota a mim mesma para me lembrar o quanto viajei desde aí para quase não sair do lugar.
4. Quando olho para uma paisagem estrangeira ela automaticamente transforma-se num postal. Olho e reparo num comboio que atravessa os campos verdes do lugar para onde acabo de viajar. Vejo, é claro, o contorno dos montes, o modo como as nuvens pousam ou se acomodam a ele. Vejo a densidade das árvores nalguns pontos como manchas de escuridão fresca, vejo telhados também e ao longe são todos convidativos.
Não consigo adivinhar os pormenores, não ouvi falar das guerras que antecederam certas linhas na paisagem, nem das vitórias de certas mudanças. Sei que há pessoas mas elas estão ausentes do meu olhar pouco treinado.
Talvez os estrangeiros vejam Lisboa assim. Acordem de manhã, saiam para a rua e a rua seja uma sucessão de imagens que podiam ser enviadas (e são, provavelmente, enviadas no telemóvel), mas da qual escapam os erros, as falhas, as diferenças. Escapam também as faltas, porque para dar conta de algo que não está é preciso ter visto antes o mesmo cenário.
O postal é uma maneira de nos fazer recordar um momento mas nele está contido também tudo o que se está a apagar da memória.
5. Lisboa é uma cidade ideal para postais. Veja-se a primavera lisboeta. Os jacarandás em flor. Uma alegria nas roupas leves que as pessoas usam. O sol ofuscando as montras. As ruas resplandecentes de luz.
Como não temos ícones (o Cristo-Rei pertence a outro, a ponte 25 de Abril também, e ninguém conhece o Padrão dos Descobrimentos) os postais de Lisboa estão cheios de pessoas. De certa forma, a vida lisboeta é o único ícone da cidade. E aquele ao qual nos agarramos ferozmente.
6. A caixa cheia de postais que guardo ainda em casa já não tem muito importância para mim. A certa altura deixei de precisar de ter postais nas paredes do escritório ou no frigorífico na cozinha.
Nessa caixa há postais que me foram enviados e outros que não cheguei a enviar. E postais que comprei desde logo para mim própria, por exemplo, muitos postais de Londres: quadros que estão na Tate Modern ou na Tate Britain ou na National Gallery e que visitei várias vezes; ruas por onde passei perto de casas onde vivi; um cemitério pouco conhecido mas do qual gostava particularmente com as suas estátuas de anjos; edifícios como a central eléctrica de Battersea que não foram construídos para estarem em postais e que por isso mesmo se tornaram fascinantes.
Penso agora que esses postais são a prova de que nunca deixei de ser estrangeira. Eram postais para eventualmente, um dia, trazer comigo para casa. Mostrar às filhas de que ainda não era mãe, mas seria, que tinha estado ali.
7. Faço fotos pitorescas, perfeitas. Como a maior parte das pessoas, não sei fazer outras. Seria preciso arte para que elas parecessem verdadeiramente reais. Daqui a muitos anos algumas paisagens parecerão sonhos, ainda que sonhos do passado.
8. Tenho também, numa caixa separada, postais que trouxe da casa do meu avô depois de ele morrer. São todos enviados por mim e pela minha irmã, que mandámos postais para ele e para a minha avó religiosamente todas as férias durante muitos anos. São imagens de paisagens exóticas ou de monumentos europeus que os meus avós não sonharam visitar. Leio-os e não têm nada de especial. São alegres e breves na sua alegria.
Cada geração tem o seu modo de escrever mas talvez só com a distância se possa perceber qual o modo da minha. Essa geração que viajou uma vez que foi possível viajar – quando já não era uma actividade extremamente privilegiada e exclusiva – e antes de se deixar de viajar porque o mundo não aguenta.
9. “Nós por cá, todos bem” é a expressão que ficou da correspondência dos anos 60 e 70. O que é mais interessante nesta expressão não é o “todos bem”, que era o que era sempre apropriado dizer, nem o “cá”, que remete para uma metrópole a comunicar com terras distantes, tão apaixonantes quanto ameaçadoras, mas o “nós”. O que é que significa que o “nós” fosse o pronome que fica desse tempo?
10. O gesto de enviar um postal, em si, basta. Não é preciso ainda dizer: estou aqui a pensar em vocês. Não é importante o que se escreve no postal: isto é muito bonito, ou estou a divertir-me, ou estou ansiosa por voltar para casa.
11. O que não apareceria num postal – e será que por isso me esquecerei? -: os insectos que voam rente ao vidro da janela. Os carros que teimam em cortar a meio a paisagem e pelos quais é preciso esperar para fazer uma fotografia bucólica. Os tractores e outros grandes objectos que revelam o trabalho que é preciso para criar qualquer paisagem.
*Artigo originalmente publicado em Mensagem de Lisboa a 06.06.2021