Papéis velhos

Olosapo, vyakuka, nd'uwala wafundala, echi wavita vyalinga vyokaliye. Umbundu. (mapa rodoviário de Angola 1967 e selos angolanos, cortesia da artista e escritora)Olosapo, vyakuka, nd'uwala wafundala, echi wavita vyalinga vyokaliye. Umbundu. (mapa rodoviário de Angola 1967 e selos angolanos, cortesia da artista e escritora)

História  velhas, como roupas enxovalhada ao contá-las tornam-se novas. | 2020 | Yara Monteiro (mapa rodoviário de Angola 1967 e selos angolanos | cortesia da artista e escritora)

 

O meu avô materno faleceu em casa, rodeado pela família e olhando o grande mapa de Angola pendurado na parede em frente à sua cama. Vivia em Portugal há quase vinte anos, porém não havia abandonado o país onde nascera. Na realidade, nenhum de nós. Não que alguma vez a família tenha considerado um retorno, simplesmente era-nos possível estar em dois lados ao mesmo tempo, acontecendo que se acabava por estar em parte alguma.
 
Em casa, o seu escritório tornou-se um lugar de memória. Por uma década, em nada se tocou. A sagrada limpeza primaveril, feita pelas mulheres da família, com o desígnio acrescido de minorar as pilhas de revistas, jornais e papelada, havia sido cancelada após a sua morte e por tempo indeterminado.
 
No antes, muito se discutia com veemência a sua obstinação em guardar “papéis velhos”: declarações, recortes de notícias, registos, apontamentos, fotografias – papelada ainda do tempo da Gamba, Angola. O avô não era compreendido. Sem titubear, entendia-se a atitude como mania derivada do trauma da guerra, de quem tudo perdeu e conviveu com a necessidade: “Guardemos. Poderá fazer jeito.”
 
Parte da minha infância foi passada a brincar naquele escritório. Colocava uma almofada na cadeira, sentava-me e ficava horas a mexer nos seus papéis, a martelar na máquina de escrever, a explorar livros, pilhas de revistas e dossiês. Quando saía do escritório, levava na pele e no cabelo o aroma característico daquele sítio: almíscar, tabaco, café e “papéis velhos”. Enquanto escrevo estas palavras, e sem grande esforço, consigo invocá-lo.
 
No depois, quando o luto se tornou um pouco mais antigo, encetou-se o desmantelamento do escritório. Descobriu-se que o avô criara um arquivo de correspondências, documentos oficiais, notícias, recortes de revistas, jornais com relevância histórica, vários escritos seus, inventários, recibos, envelopes e selos comemorativos. No seu conjunto, tornara-se possível mapear a história colonial de Angola e Portugal, as lutas de libertação, guerra civil e tentativas de acordos de paz. Os “papéis velhos” contam o nosso processo de migração para Portugal, as dificuldades de sobrevivência e adaptação à vida tão distinta e que gerou inúmeros registos sobre os seus conflitos internos. Encontramos também a mala diplomática, essa uma outra história. 
 
Conto-vos isso pois os “papéis velhos” representam para mim a herança arqueológica de trajetos de vida, memórias e eventos nacionais. Por circunstâncias várias, sou eu a guardiã destas memórias materiais que invadem o meu escritório com o seu perfume do antigamente. Existem silêncios, lacunas e incógnitas. Amiúde, interrogo-me: o que terá decidido não arquivar e deixar de fora? Que narração decidiu guardar para que não fosse condenada ao esquecimento? Não entendo o arquivo como um fim em si mesmo, é antes uma porta que se abre para a exploração do testemunho que o avô desejou deixarmos.
 
Pesquisar o arquivo de “papéis velhos” é entrar no reino de Hades, fazer parte dessa terra invisível de almas, espectros de realidades onde os meus ancestrais e outros de gente que desconheço permitem que me aproprie das suas histórias, dos seus rostos, gestos, afetos e desafetos; pois que se recusam a partir sem que as suas versões sejam contadas. Sempre me comovo e surpreendo. Os “papéis velhos” comprovam – ou não – as rememorações familiares, por mim ouvidas vezes e vezes sem conta.
 
Algumas das histórias conservadas no seu universo serviram de inspiração para escrever o meu romance Essa dama bate bué!. Reescrevi biografias, topografias e narrativas. Quiçá, tentando, sem que o soubesse, desconstruir traumas, conciliar e articular, pelo uso da imaginação, o meu lugar de pertença, esta minha vida repartida entre dois continentes, querendo dar sentido à nostalgia e ao sofrimento sentido pelo avô. Seguindo ao seu lado, enquanto dá as voltas à mística mulemba e diz: “O que fica, fica aqui.” Mas quis o destino que o passado viajasse connosco, ocultado em “papéis velhos”.


MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.


por Yara Monteiro
A ler | 27 Junho 2020 | angola, arquivo, Memoirs