"Pode a subalterna tomar a palavra?" — Prefácio

Uma jovem de classe média, com apenas dezassete anos, suicida-se, em 1926, no apartamento da família em Calcutá. Uma leitura superficial do celebrado ensaio de Gayatri Chakravorty Spivak poderá ver neste episódio - que, apesar de várias vezes aludido ao fio do texto, ocupa apenas algumas páginas finais - uma simples ilustração da teoria. Nada mais errado. Na verdade, o enigma desta morte é o fio condutor de toda a reflexão e, longe de ocupar um lugar marginal, cons­titui o foco central do  texto, representa, em larga medida, o objecto que faz mover toda a densa argumentação do ensaio. É, pode dizer-se, o núcleo compassivo dessa argumentação, a consideração específica de um destino trágico individual que, na economia do texto, funciona como revelador das lógicas de poder que impedem a subalterna de tomar a pala­vra. Já não é segredo, entretanto, dado que a própria autora o tem referido em várias ocasiões1 que Bhubaneswari Bhaduri, a mulher suicida, era irmã da sua avó. A compaixão pelo des­tino trágico desta mulher, que faz mover o ensaio, está, no entanto, muito além da esfera privada ou de uma lógica sen­timental; pelo contrário, ao ler esta morte como texto, por parte de «uma figura que escreveu com o próprio corpo», Spivak inscreve-a no cerne de uma reflexão a muitos títulos paradigmática.

Se existe um cânone da teoria pós-colonial, Pode a Subal­terna Tomar a Palavra? ocupa, indubitavelmente, nesse cânone um lugar de absoluto relevo, apenas comparável ao de uma obra matricial como Orientalismo, de Edward W. Said. E, no entanto, o texto não foi originalmente pensado para intervir na discus­ são pós-colonial, como a autora não se cansa de insistir, subli­nhando, por exemplo, em conversa com Étienne Balibar, que o ensaio foi escrito «contra a sua própria cultura» e «para fugir à influência francesa», enquanto crítica, a partir  de dentro, de todo o tipo de essencialismos.2 Não obstante, o núcleo da argumentação rapidamente tornou o texto uma peça decisiva da discussão sobre silêncio, discurso e poder, central ao desen­volvimento da reflexão pós-colonial a partir dos anos 80.

A versão original do texto está numa conferência de 1983, publicada, em 1985, pela revista Wedge.3 Em versão revista e aumentada, o ensaio tornou a ser publicado em1988, datando desse ano, verdadeiramente, a sua ampla circulação e trans­formação em objecto de larguíssima discussão e polémica.4 Finalmente, a autora incorporou o texto, em versão muito revista, no capítulo «History» da obra A Theory of Postcolonial Reason, publicada em 1999.5 Esta última versão, entre outros aspectos, clarifica o sentido, muitas vezes mal compreendido, da frase que dá o título ao ensaio: o silêncio da subalterna não é, evidentemente, ontológico, é situacional, dependente das condições de enunciação em que se encontra e que condenam à irrelevância toda a tentativa de articulação.

O conceito de subalterno/subalterna desempenha uma função estratégica na argumentação de Spivak, neste e nou­tros textos. Trata-se de um conceito originado na reflexão de Antonio Gramsci sobre «a questão do Sul» e que, no contexto indiano, foi adoptado pelo Subaltern Studies Group, de ins­piração marxista, a que Spivak esteve associada, mas do qual viria a demarcar-se. Entre outros aspectos desta demarcação, a crítica desconstrutivista à noção de sujeito desempenhou um papel fundamental: o subalterno/a subalterna definem-se, não enquanto classe, no sentido marxista convencional, mas sim pela posição não-hegemónica que ocupam no seio das relações de poder. A mulher suicida, como lembra repetidas vezes Spivak, pertence à classe média, mas, genericamente, a sua dupla inscrição como sujeito colonizado, não-hegemónico, e como mulher permite caracterizá-la como subalterna. A subal­terna, como insiste recorrentemente a autora, não é «a outra» e, muito menos, a outra absoluta; é, sim, uma categoria rela­cional, construída na sua subalternidade pelos discursos dominantes.

A controvérsia que tem rodeado este ensaio desde a publi­cação de 1988 tem vertentes muito distintas, mas, em primeira linha, não é separável da grande complexidade do texto, que constitui um enorme desafio à leitura. Não é apenas o quase hermetismo de algumas formulações e a enorme erudição da autora, que obriga o leitor ou a leitora a lidar com um conjunto muito amplo de pressupostos teóricos; a própria estrutura do texto, que vai focando o seu objecto através de aproximações sucessivas, por vezes inesperadas, na forma do que uma leitura menos atenta poderá interpretar como derivações - mas que, na verdade, são formas de preparar o terreno da análise através da construção dos níveis de com­ plexidade exigidos pela substância da argumentação - , sus­cita dificuldades consideráveis. Não surpreende, assim, que seja um texto muitas vezes mal compreendido. Rosalind C. Morris enumera, com pertinência, as quatro principais tresleituras de que o texto tem sido objecto: a ideia de que o silêncio da subalterna representa uma simples ausência, facil­mente colmatável por uma atitude de abertura do discurso hegemónico, ou, noutro plano, que esse silêncio é ontológico, inerente a uma condição fatalistamente insuperável; a inter­pretação de que Spivak estabelece uma oposição constitutiva entre teoria e prática, uma binaridade que o próprio texto elaboradamente rejeita; a noção de que a autora utiliza o caso indiano como metonímia para o conjunto do «Terceiro Mundo» e, portanto, apresenta as suas conclusões como directamente extrapoláveis (quando Spivak insiste, de modo recorrente, em que o seu uso do caso indiano se deve a um acidente auto­ biográfico); e, por último, esta a tresleitura mais grotesca, a acusação de que o texto adopta a perspectiva nativista de um fundamentalismo cultural à luz do qual procede a uma apologia do sacríficio das viúvas.6

Gayatri Chakravorty Spivak, foto de Hartwig KlappertGayatri Chakravorty Spivak, foto de Hartwig Klappert

Não é por acaso que o primeiro núcleo teórico da argu­mentação se centra na noção de representação e toma por base uma crítica a Michel Foucault e Gilles Deleuze, a partir do conhecido diálogo destes sobre «os intelectuais e o poder». A crítica é violenta: por um lado, na perspectiva da autora, teóricos como Foucault e Deleuze constroem para si mesmos uma posição de transparência e exterioridade que, suposta­mente, os situa além das estruturas de poder que criticam; por outro lado, são os próprios protagonistas da desconstrução da narrativa iluminista ocidental e da concomitante des­ construção do sujeito cartesiano que transpõem uma noção não-desconstruída de sujeito para grupos marginalizados que, deste ponto de vista, «podem» falar, afirmando trans­ parentemente, por exemplo, um ponto de vista de classe. Desta forma, é possível «representar» o subalterno, na dupla acepção cuja crítica Spivak vai buscar a um passo d’O 18 de Brumário, de Karl Marx, de representar, dar uma imagem de, e de ser representante de, estar mandatado para falar em nome de. Assim, o pensamento desconstrucionista enreda-se nas suas próprias aporias, incapaz de apreender a especifici­ dade da dupla subalternidade da mulher em contexto colo­nial. Construir a subalterna como objecto de conhecimento significa, deste ponto de vista, fazer parte das estruturas de poder que a silenciam.

Quando o texto se volta  para o contexto indiano, atra­ vés da longa discussão sobre o significado do sati, da imola­ção sacrificial das viúvas, segundo uma certa tradição hindu, o problema continua a ser a questão do sujeito e da represen­ tação do sujeito. A mulher imolada está silenciada e violen­ tada pelas elites locais, masculinas, mas não o está menos pela intervenção civilizadora da potência colonial que vem salvá­-la desse destino horrível. Como já referido, é este talvez um dos aspectos menos compreendidos do texto. Na linha do que já discutira no seu texto sobre a «Rani de Sirmur» (incorpo­ rado na primeira parte do capítulo «History»  de A  Critique o/ Postcolonial Reason), não se trata, evidentemente, da defesa de uma «tradição» contra a ingerência do poder colonial. Trata-se, sim, de dar a perceber que tanto o discurso britâ­ nico, à luz do qual a pressuposta voz da mulher enquanto vítima grita pela libertação (tornando, assim, a proibição do satium acto civilizador que legitima o poder colonial), como o discurso das elites hindus, na lógica do qual essa é uma voz submissa que exprime a adesão voluntária ao sacrifício, coin­ cidem no silenciamento da mulher subalterna e representam a manutenção de relações de poder que traduzem a complexidade e heterogeneidade dos contextos concretos para cons­ truções ideológicas aparentemente transparentes.

Não é, seguramente, um dos menores créditos de Spivak o facto de, desde o início dos anos 80, ter contribuído de modo decisivo para fazer inflectir os estudos pós-coloniais, então ainda bastante incipientes, no sentido de uma refle­xão feminista. Embora, na economia do ensaio, não tenha a mesma proeminência do que a discussão de Deleuze e Foucault, a crítica ao «feminismo ocidental» ou «do Primeiro Mundo» corre paralela a esta e assenta, fundamentalmente, nos mesmos  pressupostos: a incapacidade  de descolonizar os seus próprios pressupostos, levando o discurso feminista dominante no Ocidente a construir uma imagem da «mulher» incapaz de apreender a complexidade das condições específi­ cas de articulação da subalterna.

No conjunto, é, justamente, a tentativa de reconstrução dessa especificidade que constitui o elemento mais poderoso da argumentação do ensaio. O sacrifício pessoal de Bhubaneswari Bhaduri é um gesto de revolta e de resistência. Escolhendo, para consumar o seu gesto definitivo, um dia em que está mens­ truada, põe-se calculadamente à margem dos lugares-comuns dominantes, na tentativa de impedir que o seu suicídio seja objecto da interpretação trivial que o atribuiria a uma gravidez socialmente inaceitável. A sua tragédia não consiste no carácter irremediável do seu gesto, uma vez que este não constitui a aceitação passiva da condição de vítima, antes pelo contrário, exprime a reivindicação expressa de uma capacidade de acção e de inscrição como sujeito. A tragédia está antes no facto de as condições de articulação em que, como subalterna, está enre­ dada não permitirem que o seu gesto de inscrição seja enten­ dido. Assim, a sua voz, reinterpretada pelo discurso dominante reproduzido na sua própria esfera familiar, é reduzida aos luga­res-comuns desse discurso e, neste sentido, silenciada. A ques­tão, portanto, não é não ter sido ouvida: é ter sido ouvida à luz das lógicas interpretativas dominantes e, portanto, ter visto rasurada a radicalidade do seu pronunciamento.

É este o ponto essencial desta e de muitas outras inter­venções críticas de Spivak e a razão que as torna não apenas relevantes, mas também flagrantemente actuais. Tal como a condição subalterna é definida a partir dos lugares de poder dominantes, também a fala da subalterna é permanentemente condenada à irrelevância pela assimilação aos códigos impos­ tos por esses lugares. Significa isto que toda a resistência é fútil e que o silêncio da subalterna só pode ser visto como uma espé­ cie de fatalidade intransponível? De forma aparentemente paradoxal, o ensaio de Spivak «dá voz» à subalterna - não no sentido transparente que o texto põe profundamente em ques­ tão, mas sim pelo trabalho analítico que, expondo os mecanis­mos de silenciamento da subalterna, constitui em si um gesto de resistência, apontando para formas de articulação susceptí­veis de permitir que a voz silenciada se faça ouvir. Trata-se, no fundo, de um trabalho de tradução, assente na suspeita perante todas as lógicas de assimilação e empenhado em criar um espaço de ressonância e de articulação anti-hegemónica.

É assim que não se trata apenas de «falar»; trata-se, muito mais, de «tomar a palavra». O conjunto de opções de tradução tomadas ao longo da presente edição - preparada em estreita articulação com a autora - explica-se por si mesmo e não carece de especial comentário.

A tradução do título, contudo, ao divergir do conjunto das traduções existentes, necessita de ser justificada. Não tanto a opção pelo feminino, que o inglês, pela natureza da língua, deixa em suspenso, mas que o português, como muitas outras línguas, nomeadamente as români­cas, tem de deixar explícita a necessidade do uso do feminino resulta, de modo evidente, da própria sequência do ensaio, está suficientemente abonada em várias entrevistas da autora e foi explicitamente confirmada ao tradutor em conversa pessoal havida em 12 de Outubro de 2018. Nesta mesma conversa, houve oportunidade para uma inesquecível troca de impres­sões em torno do significado do verbo to speak no contexto do ensaio. A posição nesse momento manifestada pela autora esteve explicitamente em linha com as preocupações fundamentais do seu texto, culminando na indicação de que, não dominando o português, se estivesse a traduzir para francês, nunca utilizaria simplesmente o verbo parler, mas a expressão prendre la parole, muito mais precisa e consentânea com a lógica da argumentação. Com o que a solução a adoptar na versão portuguesa se ofereceu de imediato e de maneira inequívoca.

 

Pode a subalterna tomar a palavra? Título original Can the Subaltern Speak?  Tradução e Prefácio António Sousa Ribeiro 2021 | 136 pp., Orfeu Negro. 

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  • 1. Por exemplo, em Gayatri Chakravorty Spivak, «ln Response. Looking Back, Coming Forward», em Rosalind C. Morris, org., Can the Subaltern Speak? Rejlections on the History o/an Jdea (Nova Iorque, Columbia Univer­ sity Press, 2010), p. 231.
  • 2. Étienne Balibar e Gayatri Chakravorty Spivak, «An lnterview on Subal­ temity», Cultural Studies 30(5), 2016, pp. 856-871. Noutro local, a autora clarifica que Pode a Subalterna Tomar a Palavra? «não é, de modo nenhum, sobre o colonialismo. É sobre a capacidade de acção [agenry]: acção insti­ tucionalmente validada» (Gayatri Chakravorty Spivak, «Foreword: Upon Reading the Companion to Postcolonial Studies”, em Henry Schwarz e Sangeeta Ray, orgs., A Companion to Postcolonial Studies (Malden, Mass., Blackwell, 2000), p. XX.
  • 3. «Can the Subaltern Speak? Speculations on Widow Sacrifice», 1Vt?dge 7/8 (Primavera/Verão de 1985), pp.120-130.
  • 4. «Can the Subaltern Speak?», em Cary Nelson e Lawrence Grossberg, orgs., Marxism and the Interpretation o/ Culture (Urbana, University of Illinois Press, 1988), pp. 271-313.
  • 5. Gayatri Chakravorty Spivak, A Critique o/ Postcolonial Reason - Toward a History o/the Vanishing Present (Cambridge, MA/Londres, Harvard Uni­ versity Press, 1999), pp. 246-311. É esta a versão que serviu de base à presente tradução, tendo o parágrafo inicial sido reescrito pela autora. Outras pequenas adaptações tornadas necessárias pela autonomização do texto seguiram a versão incluída em Rosalind C. Morris, org., Can the Subaltern Speak? Rejections on the History (Nova Iorque, Columbia University Press, 2010), pp. 21-78. A autora agradece a Iuri Bauler Pereira pelo auxílio na leitura da versão portuguesa.
  • 6. Rosalind C. Morris, «Introduction », em R. C. Morris, org., Can the Subaltern Speak? Rejections on the History (Nova Iorque, Columbia University Press, 2010), pp. 2-3.

por António Sousa Ribeiro e Gayatri Chakravorty Spivak
A ler | 1 Março 2021 | Antonio Gramsci, estudos do subalterno, estudos pós-coloniais, Gayatri chakravorty spivak, livro, pode a subalterna tomar a palavra, prefácio