Conflitos de memória: o "bairro africano" de Berlim
A experiência colonial alemã foi, como é sabido, relativamente curta, tendo chegado a um fim definitivo com a derrota do Reich em 1918 – as muitas disposições punitivas do Tratado de Versalhes incluíam a obrigação de a Alemanha ceder o domínio sobre todos os territórios coloniais que detinha. É assim que, diferentemente do Holocausto, a história do colonialismo alemão, apesar de marcada, também ela, por formas de violência extrema, culminando no genocídio dos povos Herero e Nama em 1904-1906, no então Sudoeste Africano, está hoje largamente ausente da memória pública na Alemanha, tal como foi, durante muito tempo, largamente subalternizada pela investigação histórica.
Sobretudo nas duas últimas décadas, esta subalternização tem vindo a ser colmatada por uma investigação muito ampla que conferiu à questão do passado colonial da Alemanha, nas suas muitas implicações, o lugar que merece no conhecimento historiográfico. Este esforço, todavia, só pouco a pouco vai conseguindo trazer o tema à memória pública, no que, sem dúvida, a relutância das instâncias oficiais em tematizar adequadamente este capítulo da história alemã tem uma boa quota-parte de responsabilidade. Em 2016, uma iniciativa parlamentar tendente ao reconhecimento oficial da responsabilidade pelo genocídio dos Herero e Nama, foi rejeitada pela maioria dos deputados. O relatório elaborado pelos “Serviços Científicos” do Bundestag, um órgão com funções de assessoria e emissão de pareceres sobre matérias levadas ao debate parlamentar, concluía, baseando-se numa perspectiva estreitamente jurídica, do ponto de vista da qual apenas são aplicáveis as normas vigentes à época, que as acções do exército alemão não violaram o direito internacional. O fundo do argumento é o sofisma de que, em 1906, o exército alemão não pode ter cometido genocídio, pela razão de que o conceito de genocídio não existia ainda nem tinha sido incorporado no direito internacional. E, reconhecendo embora que, já no início do século XX, independentemente das normas jurídicas, os indivíduos beneficiavam de uma “protecção rudimentar”, derivada das “normas da humanidade e de civilização”, o parecer é taxativo na apresentação do argumento de que “a consciência jurídica da comunidade do direito internacional da época excluía destes critérios mínimos os povos indígenas que, aos seus olhos, eram “incivilizados’”.
Embora, também ele, sem valor de posição oficial, este tipo de argumentação é bem representativo de uma forma de negação ainda hoje em muitos aspectos estruturante da forma como os países europeus se posicionam perante o seu passado colonial. Significativamente, a lista bibliográfica apensa ao relatório citado omite várias referências importantes, sendo a omissão seguramente mais relevante a dos trabalhos de Jürgen Zimmerer que, em estudos publicados desde o início do milénio e reunidos, em 2011, na obra Von Windhuk nach Auschwitz (De Windhuk a Auschwitz), estabeleceu, de modo convincente, o elo entre as práticas genocidas ensaiadas no Sudoeste Africano e o Holocausto.
Sobre este pano de fundo, a notícia recentemente divulgada de que irão ser alterados os nomes das ruas do “Afrikanisches Viertel” (Bairro Africano) do distrito berlinense de Wedding, um importante lugar de memória colonial, adquire um significado especial e mesmo exemplar. A intervenção surge ao fim de bastantes anos de pressão por parte de organizações associadas na iniciativa “Berlim Pós-Colonial”. Para além de várias outras referências, o aspecto mais ofensivo da toponímia do “Bairro Africano” para uma memória pós-colonial está na forma como celebra vários nomes de personalidades destacadas, protagonistas do estabelecimento do domínio colonial alemão em várias regiões africanas. Entre estas figuras, é particularmente chocante a presença de Carl Peters, autoproclamado fundador da colónia da África Oriental alemã e um dos principais agentes da empresa colonial alemã (foi fundador, em 1884, da Sociedade para a Colonização Alemã). Peters é um exemplo acabado do mais brutal habitus colonialista – associado a organizações anti-semitas e nacionalistas alemãs, fundou a sua intervenção em África no mais profundo racismo, na defesa e implantação do trabalho forçado, no esbulho puro e simples da terra indígena. Não por acaso, viria a ser proclamado como um dos pais espirituais do nacional-socialismo. O seu papel sinistro valeu-lhe o cognome swahili de “mkono wa damu”, o “homem das mãos sujas de sangue”. Desde os anos oitenta que o seu nome, presente na toponímia de muitas cidades alemãs desde o período nacional-socialista, tem vindo a ser afastado, no meio de mais ou menos polémica. Chegou agora, finalmente, a vez de Berlim. O trabalho das últimas décadas sobre a memória do Holocausto e, em particular, a construção e preservação dessa memória no espaço público urbano de muitas cidades alemãs tem sido, em vários aspectos, exemplar. Talvez, mesmo que lentamente, se vão criando, do mesmo modo, as condições para a superação da amnésia colonial.
O consenso conseguido em Berlim em torno da iniciativa não foi total – tanto o Partido Cristão-Democrata como a Aliança para a Alemanha se opuseram. Entre os opositores, não faltou, como argumento principal, a estafada ideia, recorrente em contextos análogos, de que “não se pode mudar a história” e de que a substituição da toponímia corresponde a uma tentativa inaceitável de “reescrever a história” por parte de sinistras forças de esquerda. Sim, não se pode mudar a história, mas o conhecimento histórico, esse sim, pode e deve ser permanentemente enriquecido e revisto, nomeadamente lá onde esse conhecimento se baseia no silêncio ou no esquecimento da violência e do sofrimento infligidos e se limita a exprimir as visões dominantes. E, mais importante, não se trata, neste caso, como em muitos outros análogos, apenas da história, mas da memória, e da memória pública, isto é, da tomada de decisões colectiva sobre o que se quer celebrar e recordar e como se quer recordar. Também na afirmação berlinense de uma memória pós-colonial se revela com clareza como as lutas pela memória são sempre momentos-chave da construção do contemporâneo e da projecção no futuro das sociedades democráticas.
5/5/2018
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.