A pós-memória e a condição da vítima
A extraordinária proliferação dos estudos sobre trauma, memória e violência veio dar centralidade a conceitos cuja circulação generalizada redunda, com frequência, num efeito de banalização que põe a causa a sua operatividade analítica e exige, assim, uma crítica diferenciada. Esta crítica torna-se tanto mais necessária quando se verifica a tendência para reduzir os conceitos a uma forma singular, abdicando de uma reflexão sobre a sua especificidade. Assim, sem dúvida que uma situação traumática pode ser tipificada de acordo com coordenadas que são comuns a circunstâncias muito diversas - nomeadamente, a fixação da memória num momento particularmente violento do passado que regressa numa espécie de presente cíclico e perturba radicalmente a coerência de uma noção de identidade pessoal. Mas, para dar exemplos drásticos, ter sobrevivido a um acidente de automóvel não é a mesma coisa do que ter sido vítima de violência doméstica. E ambas essas situações se situam, indubitavelmente, num plano qualitativo bem diferente de, por exemplo, ter sobrevivido a Auschwitz. O mesmo é dizer que a contextualização do trauma é uma componente indispensável de qualquer atitude analítica.
Também o conceito de vítima tem sido objecto de uma análoga generalização e necessita, em cada caso, de ser investigado com especial atenção ao contexto. Trata-se de um conceito inerentemente mergulhado num paradoxo fundamental. Se é verdade, como afirma Simone Weil no seu ensaio sobre “A Ilíada como Poema da Força”, que uma característica universal de todo o acto violento consiste na tendencial redução da pessoa sobre a qual se exerce ao estatuto de objecto, o conceito de vítima é consubstancial a este processo de coisificação. Ao reivindicar o estatuto de vítima - desde logo, como exigência de reconhecimento do sofrimento infligido, como acusação e responsibilização de quem impôs esse sofrimento e como reclamação de uma compensação, nomeadamente de carácter financeiro, que possa significar algum grau de retribuição -, está-se a perpetuar essa coisificação e, deste ponto de vista, a conceder a vitória ao agressor. Por isso, concomitante a essa reivindicação, não pode deixar de estar a afirmação de um estatuto de sujeito, a recuperação da identidade negada e a construção de uma possibilidade de futuro para além do trauma. É isto que confere uma importância particular ao gesto do testemunho, enquanto gesto de autoria que, através da projecção no discurso, liberta a vítima do silêncio que a coisifica.
No plano da investigação sobre a pós-memória, o conceito de vítima exige uma reflexão e contextualização particulares. Na verdade, a pós-memória não significa simplesmente o assumir sem mais da memória de uma geração antecedente, o ambíguo prefixo “pós” não traduz, de modo nenhum, uma simples sequência temporal e muito menos um gesto de identificação. Pelo contrário, é inerente ao conceito de pós-memória uma ideia de distância, a existência de um intervalo, não apenas temporal, mas, igualmente, no plano da identidade assumida e da posição tomada em relação ao passado. A construção de pós-memória significa um gesto de construção de conhecimento - o seu impulso inicial é, quase sempre, a necessidade de interrogar o silêncio da geração anterior, de compreender todos os enigmas que se foram acumulando no seio de uma relação familiar frequentemente disfuncional. Esse impulso nasce de uma consciência difusa análoga à condição de vítima, objecto de um processo obscuro cujos contornos se quer, justamente, conhecer. A situação torna-se mais complexa quando a percepção de que a geração anterior foi vítima de violência e sofreu experiências traumáticas vai de par com a suspeita de que essa condição de vítima é inseparável da condição de perpetrador, o que pode colocar fortemente em causa a possibilidade de identificação com esse sofrimento: um pai ex-combatente da Guerra Colonial pode ser uma vítima de stress pós-traumático, isto é, uma pessoa doente, mergulhada num sofrimento profundo e com um comportamento anómalo susceptível de infligir um sofrimento não menos profundo aos que o cercam; mas é também, em simultâneo, um participante mais ou menos consciente numa guerra injusta e, potencialmente, um criminoso de guerra, se se deu o caso, nomeadamente, de ter sido participante na violência imposta à população civil. Gera-se, assim, uma zona cinzenta, um espaço de profunda ambivalência que não pode deixar de reflectir-se na especificidade da relação pós-memorial estabelecida pela segunda geração.
Estas breves reflexões servem, fundamentalmente, para sublinhar a necessidade extrema da vigilância epistemológica e metodológica para obstar à banalização dos conceitos que referi de início. É essa a razão pela qual a investigação no campo da pós-memória só pode ser radicalmente qualitativa e necessita, em primeira linha, de recorrer a instrumentos de análise do discurso e análise da narrativa que permitam captar com o necessário grau de acuidade analítica a especificidade de cada posição. De facto, a escala de posições possíveis na produção da pós-memória é muito ampla. No aspecto que interessa directamente a estas reflexões, uma das formas de graduar essa escala e de construir analiticamente os diferentes padrões nela possíveis consiste na referência ao grau de identificação ou de distanciamento relativamente à condição de vítima - o sujeito da pós-memória pode, no limite, construir para si uma identidade de “pós-vítima” e satisfazer-se com esse estatuto ou pode empreender o esforço de construir uma identidade inteiramente baseada na recusa dessa identidade e na busca de uma articulação muito mais complexa com a inevitável ambivalência da relação entre a geração da memória e a da pós-memória. É entre estas duas posições extremas que se situa a substância empírica da vida concreta de homens e mulheres confrontados/as com a violência da História.
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