Pode um homem angolano, militar das forças armadas, herói da batalha do Cuito Cuanavale, ser feminista?
É bom quando a vida nos surpreende!
No fim de 2009, de passagem por Luanda, ao entrar na Editora Chá de Caxinde à procura de novidades, fui surpreendida por um livro sobre a ‘mulher-soldado’ em Angola. A surpresa cresceu invulgarmente durante a leitura da obra, ao aperceber-me que um homem angolano, militar das FAA’S (Forças Armadas Angolanas), herói da batalha do Cuíto Cuanavale, não só colocava a ‘mulher-soldado’ na história da construção da nação como defendia uma tese feminista.
O livro Mulher-soldado, no ordenamento jurídico angolano, é a tese de Licenciatura em Direito de um militar que regressou à vida estudantil depois dos quarenta anos de idade, logo após o fim do conflito armado que orquestrou a vida de todos os angolanos nas primeiras três décadas da independência do país (1974/5 a 2002), conflito no qual o autor participou. Júlio Sebastião Fernandes de Carvalho é oficial na reserva das FAA’s e escreve esta tese (com algumas fragilidades académicas) a partir de uma realidade que conhece de dentro.
A admiração que o autor nutre pelo papel das mulheres na construção da nação e participação nas guerras e exércitos pode ler-se nestas palavras “Em Angola a mulher participou lado a lado com o homem na tarefa de luta pela independência nacional com a mesma coragem e passando pelos mesmos sacrifícios que os seus companheiros homens.” (p.24) ou “Era um orgulho ver a mulher, fardada com rigor militar, a cumprir as mais diversas missões, mesmo a mais arriscadas, em igualdade com os homens. Era uma verdadeira revolução…”. (p.25).
A “revolução” não foi isenta de exclusões como nos revela o autor e, depois de a Lei Constitucional da República Popular de Angola de 11 de Novembro de 1975 ter consagrado “Para a defesa da Pátria […] O serviço militar na RPA” como “um direito e um dever de todo o cidadão” e considerar todos os cidadãos iguais perante a lei, nomeadamente no que diz respeito ao sexo; após o Serviço Militar ter sido obrigatório para ambos os sexos durante a 1ª República, o decreto 40/96 da 2ª República vem alterar esta situação e prescreve que o serviço militar obrigatório é destinado aos “cidadãos do sexo feminino, que obtenham formação académica superior ou preparação técnico-profissional de interesse para as Forças Armadas Angolanas…”.
O autor assinala que há aqui “uma exclusão contra todas aquelas mulheres que não possuam tais requisitos” (p. 26), além da incorporação ficar condicionada ao período de guerra. Júlio de Carvalho vai mais longe e escreve que “há uma flagrante violação da Constituição quando se pretende tornar desiguais em direitos todos os cidadão…” (p.27).
Júlio de Carvalho sem nunca assumir que é um ‘homem feminista’ ao focalizar o mundo das mulheres, ao colocar as mulheres no discurso da guerra e das forças armadas, dando visibilidade histórica às mulheres-soldado e guerrilheiras e assinalando as exclusões e discriminações de que são alvo no quadro jurídico da nação, posiciona-se no campo da teoria crítica feminista. Lutar contra a discriminação de género, lutar por esbater as diferenças nas relações de poder entre homens e mulheres, é também uma estratégia feminista que o autor, ao enunciar as suas ideias, situa politicamente na área dos Estudos Feministas. O feminismo, ao contrário do que muitos pensam, não é um campo só destinado às mulheres. Da mesma maneira que muitas mulheres não são feministas, há homens que, ao defenderem a igualdade de oportunidades para todos independentemente do género, ao criticarem as relações de poder numa perspectiva de género, ao solidarizarem-se com as mulheres oprimidas, são feministas. Uns assumem, outros experimentam um feminismo subterrâneo, não assumido.
O autor nesta monografia também não omite um dos mais escandalosos processos de exclusão das mulheres, o dos recentes Acordos de Paz, quando foi assinado o Memorando de Luena e “onde a mulher foi a grande ausente da participação nas negociações formais […] Dos vários acordos produzidos, não se tem memória de que combatentes femininas fossem enquadradas no seio das Forças Armadas ou que tenham recebido qualquer subsídio.” (p.29). Quando os homens dos dois lados da guerra, o lado ganhador (MPLA) e o lado perdedor (UNITA) “cozinharam” a paz, as mulheres, depois de terem participado na guerra (muitas com patentes de oficiais), não foram integradas nas Forças Armadas Angolanas, ao contrário dos homens e foram remetidas à domesticidade das famílias e do lar. Numa ‘nota de rodapé’ ficamos também a saber que “muitas das mulheres que participaram nas guerras se encontram no anonimato, aguardando [há anos] por promessas, quer de pensão de reforma militar, como na reintegração na Caixa Social das Forças Armadas, sejam elas da OMA/MPLA, LIMA/UNITA, AMA/FNLA ou Forum Cabindez.” (p.28).
Apesar da tradição da participação de mulheres nas guerras em Angola remontar ao séc XVI, quando a rainha Nzinga Mbandi, (1582-1663) uma das mais famosas guerreiras da história de África, alterava as relações de género vestindo-se de homem para comandar os guerreiros Jaga com os quais se aliou na resistência à ocupação portuguesa. (Coquery-Vidrovicth 1994), o autor revela-nos que a presença da mulher nas FAA’s se limita a cerca de 1 a 2 por cento dos efectivos actuais. É de assinalar que o autor demonstra uma grande coragem para um homem que pertence a uma estrutura militar onde a hegemonia e a cultura são masculinas e androcêntricas. Este trabalho também é fundador, sendo Júlio de Carvalho o primeiro homem investigador angolano a reflectir sobre as relações de género no âmbito do direito militar.
Depois deste diálogo entre a história e o campo jurídico, na conclusão, o autor aponta para que as Leis sejam alteradas e “a Lei da Defesa Nacional devia ser a nº 1 e a Lei Geral do Serviço Militar a nº 2 uma vez que a primeira é premissa para a segunda” e explica-nos que o serviço militar é obrigatório apenas para os cidadãos do sexo masculino e voluntário para as mulheres. No entanto, a incorporação das mulheres poderá ser imposta por determinação do Conselho de Ministros, sempre que as necessidades do país o imponham ou que “os cidadãos do sexo feminino possuam formação profissional de interesse para as Forças Armadas” (p.34).
Como cientista social há muito que defendo que as guerras não fazem só vítimas e que podem ser uma oportunidade, sobretudo para as mulheres combatentes, as mulheres-soldado, as guerrilheiras. A ideia de dinâmicas criativas e reconfigurações sociais em tempo de guerra é inspirada em Frantz Fanon que teorizava a violência revolucionária nas Lutas de Libertação como um processo contra a dominação colonial. Ao longo da pesquisa que estou a desenvolver com as combatentes e guerrilheiras angolanas, tenho-me apercebido de que a participação das mulheres nas guerras não só lhes deu instrumentos para se defenderem, como criou condições para que muitas se emancipassem e empoderassem. É impossível compreender a participação das mulheres nas FAA’s e a recente chegada ao poder das mulheres angolanas (o 10º país do mundo com mais mulheres nos órgãos de soberania) sem perceber o papel que as combatentes desempenharam nas Lutas de Libertação e na Guerra Civil, papel esse que é secundarizado e tornado invisível por grande parte dos actores sociais angolanos, situação que este livro de Júlio de Carvalho contribui para esbater. Aguardemos que a 2ª edição do livro se debruce sobre o lugar da ‘mulher-soldado’ nas recentes alterações constitucionais.
Mulher-Soldado no Ordenamento Jurídico Angolano, Editora Chá de Caxinde, Luanda 2009. Júlio Sebastião Fernandes de Carvalho é brigadeiro na reserva, licenciado em Direito pela Universidade Jean Piaget de Angola e é o actual de director Provincial das Pescas de Luanda. Escreveu, em 1986, o caderno de poemas 17 momentos em Setembro: eu com saudade me lembro. No exército, também conhecido por Luxase, foi condecorado com as Medalhas de Mérito da Defesa da Pátria e da Defesa do Cuito Cuanavale.