Socorro, vem aí um meet!
Esta histeria de Verão é mais reveladora dos medos da nossa classe média e das taras sazonais da comunicação social que propriamente da criminalidade dos bairros.
Esperava-se uma batalha. Eram dezenas de jornalistas à porta do Centro Comercial Colombo e um impressionante dispositivo policial. Estava anunciado um terrífico meet - mítico ajuntamento de jovens convocado pelas redes sociais, que os órgãos de comunicação social e as almas gentis da classe média identificam com hordas de negros dos subúrbios que vão violar, assaltar e matar tudo o que passa. A tensão estava ao rubro. Estávamos na véspera das grandes batalhas. Como os jornalistas portugueses não têm órgãos de comunicação social com dinheiro para fazer reportagens de guerras para lá de Vila Franca de Xira, esta era a aventura possível. Imagino que muitos tenham tirado os coletinhos Coronel Tapioca do armário para o efeito.
Devido à tensão excruciante, temia- -se o pior. Felizmente, nenhuma velhinha tossiu nas redondezas, evitando assim que o corpo de intervenção carregasse sobre as meninas da Zara, detendo as mais tisnadas.
Na semana anterior, antes do concerto do popular Anselmo Ralph nas Festas de Cascais, durante dias as televisões e os jornais do costume noticiaram que estava marcado um terrível meet para Cascais. Ouvidos os tios mais velhos e mais novos nas entrevistas, todos temiam pela entrada de uma horda de selvagens na bela vila. Tocaram as campainhas de alarme e as autoridades garantiram que estavam preparadas para todas as eventualidades.
No próprio dia esperava-se o pior. Até porque havia na audiência muitas pessoas com a cor do cantor, embora incomodativamente pobres. Estavam reunidas as condições do arrastão anunciado. Tivesse alguém tropeçado num copo de capilé e mandado um sonoro “booolas”, como se diz na região, e as coisas seriam iguais.
Neste caso, foram dois tipos que se desentenderam no meio de uma praça muito cheia. Apesar de não haver arrastão, nem meet, as coisas correram como previsto: como prevenir é melhor que remediar, o dispositivo reagiu à altura do que se esperava. E as pessoas à altura do pânico que podiam ter, caso fosse de facto um arrastão. E mais alguns miúdos negros foram, a fazer fé nas imagens, detidos.
A histeria começou uns dias antes, em plena época sem notícias, para além da Ucrânia e de Gaza. Um meet como tantos outros realizou-se em Lisboa. Desta vez, e dado que eram muitos, a polícia dispersou-os. Ao irem embora, em direcção à Gare do Oriente, os jovens cortaram caminho pelo Centro Comercial Vasco da Gama. Dois desentenderam-se no centro. Foram agarrados pelos seguranças, que chamaram a polícia. Segundo os responsáveis do centro não houve nem arrastão, nem violência contra clientes, nem roubos. Mas estava, como no mítico arrastão de Carcavelos, criado o acontecimento. Pouco importa que não tenha acontecido: até pessoas inteligentes e normalmente ponderadas entraram em pânico a pedir a intervenção da polícia e dos serviços secretos, deixando para o futuro o pedido de apoio à esquadra da NATO e o uso de drones.
Por mim, imaginava o agente Bernaaardo das secretas, vestido à dred, na Cova da Moura, a tentar espiar perigosíssimos meets, e a dizer aos transeuntes, enquanto batia com o punho no peito: “respect, niga.”
Falando sinceramente, a histeria em relação aos meets diz mais do estado psicológico da classe média e de alguma comunicação social que da situação de miséria que vivem os subúrbios de Lisboa.
Não é portanto de espantar que a nossa justiça de classe venha pedir uma condenação exemplar para os jovens que convocaram o primeiro meet, e de passagem garanta que “não há racismo em Portugal”. Fica por explicar de onde a magistrada retirou tão sábia conclusão. Não foi decerto de ter vivido num bairro sendo negra.
Por vontade de algumas pessoas, destas “não racistas”, os angolanos com dinheiro deviam ser azul-escuros para não se confundirem com os jovens negros pobres dos subúrbios. O racismo tem aqui, com em muitos sítios, também a cor do dinheiro. Portugal tem o racismo envergonhado daqueles que não admitem os problemas que têm. Agosto acabou, venham a universidade do PSD e as primárias do PS.
Crónica originalmente publicada no jornal I.