Perdidos no deserto - Sahara Ocidental

Fotografias de Jorge Nogueira


São pedras a perder de vista. Lápides irregulares espalham-se sobre a areia por centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As tendas e as casas de cor da terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte, confundem-se com o deserto. Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria dos habitantes fugiu aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova que o conflito do Sahara Ocidental dura há tempo de mais.

O motorista saharaui que nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde repousa um familiar. A morte é dura em todo o lado, aqui parece mais desesperada.
“Os velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos territórios libertados. Ninguém quer morrer aqui”, diz-nos Sidahmed Ahmedbaceid (Sidi), o guia.
As pedras contam as histórias das pessoas que morreram no exílio. Uma pedra se for um homem, três pedras (junto à cabeça, barriga e pés) se for uma mulher, como Fnaina Chei Ahmed que morreu a 1 de Março de 2010.

Quando morrem, os corpos são perfumados, embrulhados num lençol e deitados à terra do deserto. Familiares e amigos oferecem cabras e comida. Toda a gente pode comer em honra do morto. A vida e a morte neste lugar inóspito são assuntos de toda a comunidade. Se voltarem à sua pátria, os saharauis vão levar os mortos consigo. Até lá vai crescendo este cemitério das areias.

“No ano passado todo aquele lado não estava ocupado”, garante Sidi.

A última vez que estive nos campos de refugiados na fronteira entre a Argélia e o Sahara Ocidental, as pessoas acreditavam que o referendo se realizaria no ano seguinte. Marquei com algumas famílias fazer a reportagem do regresso às localidades de onde fugiram nos territórios ocupados por Marrocos. Tinha a intenção de testemunhar a marcha de mais de 100 mil pessoas a atravessarem o deserto com os seus parcos haveres em busca da terra prometida. Passaram dez anos, a diplomacia e a missão da Nações Unidas para o Referendo no Sahara (Minurso) não resolveram o que a guerra deixou ficar. Esquecidos no meio do deserto continuaram a estar dezenas de milhar de pessoas que há 34 anos esperam que as deixem viver na sua terra.

Ao longo da viagem de quatro horas no Boeing 727, da Air Argel, que nos levou de Sevilha ao Aeroporto Militar de Tindouf, alguns passageiros transformaram-se enquanto o avião percorria os céus. As jovens saharauis que estavam vestidas de uma forma sensual, à ocidental, envergaram a partir do meio da viagem as vestes tradicionais das mulheres do deserto. Parecia que tinham conseguido detectar no ar, a milhares de metros de altitude, uma fronteira cultural entre a Europa e o Norte de África. Na escala no Aeroporto Boumediane em Argel, as calças justas, os decotes, e os cabelos à vista deram lugar aos tecidos coloridos da melfa, com as caras semi-tapadas, a que se somaram as luvas e os óculos escuros quando desembarcamos. Ao preceito religioso acrescenta-se a ditadura da moda. As mulheres do Sahara Ocidental têm como ideal de beleza não estarem queimadas pelo Sol.

A cidade militar argelina tem história na vida das tribos do deserto. Tindouf era tradicionalmente um oásis nas rotas das caravanas, lugar de encontro dos nómadas das tribos. Berbéres e tuaregues que não respeitavam as fronteiras traçadas a régua e esquadro pelas potências coloniais europeias. De Smara a Nema, de Ayoun a Nouakchott, as caras parecem as mesmas. As várias tribos, que falam o dialecto hassania, partilham hábitos, caminhos e culturas que as fronteiras não conseguiam impedir. Têm autoridades próprias e formas de política comum. Não é por acaso que quando a França coloniza a Argélia das primeiras medidas que toma para controlar as populações é impedir o acesso livre dos nómadas ao oásis de Tindouf.
Depois de passar os controlos do exército à volta da cidade militar, a estrada avança directamente para Smara, o maior dos campos de refugiados dos saharauis que dista pouco mais de 20 quilómetros. Uma grande mudança: até há pouco tempo todo o trajecto era feito literalmente pela areia do deserto, neste momento, só o longínquo campo de Dakhla, a cerca de 150 quilómetros, ainda não está completamente ligado por estrada.

O número de refugiados que vive nos campos de El Aiun, Dakhla, Smara, Rabouni e 27 de Fevereiro é um segredo de Estado. A Polisário fala, informalmente, em 150 mil pessoas, o triplo daquelas que fugiram em 1976 aos ataques aéreos marroquinos com bombas de fósforo e napalm. Os marroquinos garantem que aqui vivem, “raptadas” pelos militares argelinos e pelos milicianos da Frente Polisário, menos de 70 mil pessoas. De qualquer forma, estamos perante um prodígio de sobrevivência humana, dezenas de milhar de pessoas habitam uma das zonas mais inóspitas do planeta, com temperaturas escaldantes. Aqui só há duas estações: o Inverno e o Verão. E este ano, devido às mudanças climatéricas, quase não choveu. A vida tem de respeitar a dureza do clima. Só é possível trabalhar de manhã ou depois das 18 h. O resto do tempo, o sol queima sem piedade quem se aventura.

Mohamed Fadhar Labed estudou três anos em Cuba e agora aprende inglês em Smara, em aulas dadas por três professoras voluntárias de uma ONG dos Estados Unidos. Por vezes serve de guia às delegações estrangeiras, levando-as pelos arruamentos de terra do campo. Tinha sete anos, em 1976, lembra-se do dia em que teve de fugir com a família da sua aldeia.
“Ficou marcado na minha cabeça, a minha mãe tinha tido uma criança. Em resultado da fuga e dos bombardeamentos a bebé não sobreviveu”, contou.

A população da aldeia escondeu-se até que as camionetas e os carros argelinos, conduzidos pela Polisário, empreenderam este grande êxodo para Tindouf.

Vamos para os arredores do acampamento de Smara para casa do tio de Fadhar Labed. Até há dois anos, viviam no centro do acampamento, as chuvas destruíram-lhes a casa. As construções são feitas de tijolos de areia cozida ao sol, que não resistem às águas. Hoje, estão numa zona mais alta. O tio é um homem mais velho, que serve o exército há 25 anos. Viu muitos amigos morrerem em combate. Afirma estar cansado do cessar-fogo de 1991. Diz que não teme os marroquinos - “não têm coragem”. O povo do deserto está habituado a combater. Quando pergunto de que tribo é, recusa-se a responder. Diz que isso hoje não tem importância nenhuma, que o Sahara Ocidental é uma nação democrática que ultrapassou as identidades tribais. Tal como o sobrinho, é um rguibet, tribo guerreira com grande influência no Sahara Ocidental, Marrocos, Argélia e Mauritânia. Faz o chá. A cerimónia do chá é tão omnipresente nas reportagens sobre vida dos saharauis como na realidade. As mãos ágeis vão deitando o líquido como de um exercício de ilusionismo se tratasse. O chá verde e o muito açúcar escorrem de copo em copo como se fosse mel. Diz a tradição que o primeiro chá é amargo como a vida, o segundo forte como o amor e o terceiro suave como a morte.
Tudo aqui é tradição. O pai andou no deserto. O avô andou no deserto. O avô do avô andou no deserto. O velho combatente diz que todos - desde que a memória dos seus existe - viveram a cruzar as dunas de areias com caravanas de camelos. O segredo das estrelas, das sombras e das árvores que permitem os nómadas conhecerem os caminhos do deserto são passados de pai para filho. Apesar de viverem fechados num campo, em alguns meses do ano leva os filhos para as zonas libertadas no interior do deserto para que aprendam a continuar a dura vida dos nómadas.

É por isso que quando vamos visitar uma base militar, a três horas de Rabouni, parece normal que o motorista do nosso jipe se oriente no deserto como se circulasse numa cidade com ruas. Vira com a decisão de quem conhece todas as pedras e caminhos. Cruzamo-nos com uma caravana com cerca de 50 camelos. Vêm de Meharrize, uma “terra libertada”  no Sahara Ocidental. A seca obrigou-os a procurar pastagens junto dos acampamentos. Os dois homens que conduzem os animais fizeram a longa viagem alimentando-se sobretudo de leite de camelo. Provavelmente, serão obrigados a vender um ou dois animais para comprar comida para os outros sobreviverem. Voltarão à sua terra assim que chover. Antes de nos irmos embora, o nosso guia oferece uma garrafa de água de litro e meio e um sumo ao homem da caravana. Aqui partilha-se tudo.

No meio do deserto está a base militar onde todos os jovens dos campos recebem formação militar durante um ano. Os jovens de cabelo rapado marcham na parada sob um sol mortal. A instrução militar não será fácil nesta espécie de caldeirão. Assistimos às aulas em que os recrutas montam e desmontam as AK 47 e aprendem a conhecer os diferentes efeitos das granadas ofensivas e defensivas, e a evitarem minas e outros explosivos.

Somos recebidos por três combatentes. No exército saharaui não há divisas nem postos. Cada combatente tem a sua tarefa. Como simples soldado até comandante de batalhão. A conversa é bastante limitada. A perguntas sobre as manobras militares marroquinas junto ao muro e sobre questões políticas, os nossos interlocutores remetem-nos para o Ministério da Defesa. Estranhamente, o diálogo é bastante aberto sobre o cessar-fogo estabelecido em 1991 com Marrocos. Um dos comandantes diz-nos directamente: “estamos fartos de esperar”. Acrescentando que, em sua opinião, a guerra lhe parece a melhor solução. “Em 10 dias resolvíamos o problema”, garante.

Quando contraponho que não basta pensar que se tem razão, que a desproporção de forças no terreno é esmagadora - Marrocos tem mais de 200 mil militares, metade dos quais no Sahara Ocidental, contra 15 a 20 mil combatentes saharauis - , o mesmo comandante afirma que  “a diferença de números e de tecnologia sempre foi enorme, mas a diferença ainda maior é na coragem”.
Para Bullema Abdel, o combatente responsável pela Saúde na base, “os marroquinos não sabem porque razão estão a combater, nós sabemos que lutamos pela nossa terra”.

O conflito no Sahara Ocidental arrasta-se desde 1975. A potência colonizadora aceitou fazer um referendo sobre o estatuto da província. Em Outubro do mesmo ano, o rei Hassan II de Marrocos organizou a chamada “marcha verde”: 350 mil marroquinos avançaram sobre o Sahara. A Espanha capitulou e aceitou entregar o território a Marrocos e à Mauritânia. Os saharauis, organizados pela Frente Polisário, fundada em 1973, contestaram a anexação. A seu favor tinham a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1972 que afirmava “o direito do povo saharaui à autodeterminação”. O Tribunal Internacional de Haia dá, a 16 de Outubro de 1975, parcialmente razão aos argumentos marroquinos das ligações históricas das tribos nómadas com o xerifado marroquino, mas argumenta com o princípio do direito internacional e da inviolabilidade das fronteiras coloniais, para concluir também pelo “direito do povo do Sahara Ocidental à auto-determinação”. Depois da ocupação militar marroquina, as populações nómadas são bombardeadas e mais de 50 mil pessoas refugiam-se em campos de refugiados do deserto argelino. No terreno militar os combatentes saharauis, usando tácticas de guerrilha e aproveitando-se da mobilidade dos seus veículos Land Rover, infligem pesadas baixas às tropas marroquinas e mauritanas. Atacam cidades em Marrocos e chegam duas vezes à capital da Mauritânia. Numa dessas operações, o primeiro líder da Polisário, Mustafa Sayed Ouali, cai em combate. Na sequência da guerra, o governo de Nouakchott é derrubado e acorda o fim das hostilidades com a Polisário, entregando os territórios sobre ocupação mauritana. Marrocos anexa estes territórios. As tropas de Rabat constroem a partir de Agosto de 1980 um muro fortificado com mais de 2.800 quilómetros, guardado por 80 mil soldados, que isola o chamado triângulo útil do Sahara: as principais cidades, as zonas de exploração das grandes reservas de fosfatos e a costa muito rica em peixe. A guerra de guerrilha torna-se mais difícil.

Do ponto de vista diplomático, a ocupação do Sahara Ocidental não foi aceite por nenhum país e a República Árabe Saharaui Democrática é membro da OUA (Organização de Unidade Africana) e foi reconhecida por 70 países. Em 1991, por pressão das Nações Unidas, instaurou-se o cessar-fogo. Marrocos, Polisário e Argélia comprometem-se a iniciar um processo de paz que leve à realização de um referendo, organizado pela ONU, para decidir se o território fica no Reino de Marrocos ou será independente. O corpo eleitoral que podia participar no referendo foi alvo de uma verdadeira batalha. Ficou estabelecido que seria com base nas pessoas que viviam no território, e seus descendentes, recenseados em 1972 pelas autoridades espanholas. Por pressão marroquina, foram incluídas tribos do sahara marroquino. Apesar desse acordo, depois do referendo de Timor Leste, Marrocos voltou atrás e recusou discutir a soberania do território. O novo rei de Marrocos, Mohammed VI, propõe agora um estatuto de autonomia para o território e recusa qualquer hipótese de referendar a autodeterminação.

Mohamed Mouloud viveu todos estes acontecimentos numa posição particular: com uma máquina fotográfica numa mão e uma kalashnikov na outra. Para provar o que diz, mostra-nos a sua fotografia da época. As fotos do passado são de mulheres vestidas à soldado, jovens de cabelo comprido, mais parecidos com os revolucionários cubanos do que com o aspecto actual dos saharauis.

A história de Mouloud começa cedo. Depois de uma manifestação pela independência, reprimida pelos marroquinos, em Dezembro de 1975, deixou a família toda para trás e fugiu para as zonas controladas pela Polisário. Deram-lhe, a ele e a mais dois, a tarefa muito especial de fazer reportagens da frente de combate. Aprenderam a fotografar sem nenhum curso.
“Tirávamos muitas, alguma havia de sair bem”, diz. São deles as fotos iconográficas do primeiro líder da Polisário, Mustafa Sayed Ouali, pouco antes de morrer, que aparecem em muros e pósteres por todo o lado.

“Parece a foto de Che tirada por Korda, era um homem muito carismático”, diz Moulouda, lembrando que “fazer mais de dois mil quilómetros no deserto, para atacar duas vezes a capital da Mauritânia não é para qualquer um”.

O fotógrafo recorda a forma como as pessoas o escutavam com 28 anos. “Dizia-nos que só seríamos livres quando os marroquinos e os mauritanos fossem livres, quando toda a gente do Magrebe tivesse a liberdade”.

Mouloud deixou a frente de combate. Tem um filho no Ministério da Informação e outro como repórter do exército. Abriu três lojas no acampamento 27 de Fevereiro. Uma de recordações, outra de comida e bebidas e a terceira de telemóveis.

Quem não vai ao Sahara há dez anos nota agora imensas diferenças. Os campos têm lojas e comércios privados. Todos os rapazes e raparigas exibem telemóveis. Nas ruas, para além dos jipes das ONG e do governo, vêem-se muitos Mercedes. Segundo o nosso guia, Sidi, estes carros custam aqui 2.500 euros.

As famílias que trabalham fora ajudam nessas novas despesas e consumos. Os donos das lojas são muito reservados. Falámos com um que nos disse que abriu o comércio há cinco anos e que “dá para ocupar o tempo”. Nada mais. O silêncio é a regra do negócio.

Andando pelos caminhos de Smara pode-se ir a um ciber-café, sem café, comprar águas, cabeça de camelo, roupa, telemóveis, cortar o cabelo - quando o barbeiro não considera que temos areia a mais na cabeça -, e até relógios de parede. Os refugiados fartaram-se de esperar e estão a tentar viver.   

Artigo originalmente publicado na Grande Reportagem do I.

por Nuno Ramos de Almeida
Vou lá visitar | 13 Agosto 2010 | Polisário, Sahara Ocidental