A via do martírio
Fotografias de Jorge Nogueira
Um grupo de homens e mulheres vestidos com os fatos tradicionais da tribo marcha no deserto. São “activistas”, o nome que os saharauis dão àqueles que defendem a independência nas zonas controladas por Marrocos. Sultana avança, abraçada aos outros, com o olhar a brilhar. A multidão lança-se sobre ela. Tentam falar-lhe. Querem tocar-lhe. Os jornalistas cercam-na. Cansada, continua a andar em direcção ao muro marroquino que divide os territórios controlados pela Polisário das terras do Sahara Ocidental ocupadas pelo exército de Rabat.
Depois de 34 anos de conflito, estes activistas são a arma secreta da Polisário para derrubar as fortificações. A greve de fome de Amenitu Haidar, a mais célebre de todos eles, criou uma racha na fortaleza da monarquia marroquina. A procissão continua com um grupo de activistas que visitou as suas famílias nos campos de refugiados e foi preso ao regressar aos territórios ocupados. Estão em greve de fome. Com o seu sofrimento pretendem despertar um mundo indiferente que se esqueceu do Sahara Ocidental.
Marcham abraçados, sabem que quando regressarem espera-os um pequeno inferno. A eventual prisão e tortura não os faz parar. A determinação dos activistas contrasta com o torpor nos campos de refugiados.
Num comício na zona de Farsia, em Smara, um deles afirmou: “vocês (os refugiados dos acampamentos) deram-nos a coragem para lutar, devemos-vos a nossa fé na independência da nossa terra”.
Para quem vê de fora parece o contrário: a fé inquebrantável dos activistas é uma injecção de adrenalina nas populações cansadas de esperar. Quando são apresentados no comício, a enumeração do número de familiares mortos em prisões secretas marroquinas e a lista das torturas sofridas faz a audiência vibrar como se tivesse levado um choque eléctrico. As mulheres fazem ecoar os gritos tradicionais que rasgam o silêncio do deserto. É como se o sofrimento fosse uma poderosa bomba pronta a explodir tudo.
Na marcha em direcção ao muro participam menos de 1.500 pessoas, muitas delas estrangeiras. A segurança impede que um grupo de saharauis avance demais. No ano anterior, um jovem não quis recuar e perdeu uma perna nos campos de minas que cercam as fortificações marroquinas. Mais uma vítima dos cinco milhões de minas que as ONG calculam haver espalhadas, apesar do cessar-fogo.
A segurança da marcha e um grupo de manifestantes exaltam-se e trocam murros. Há saharauis que não querem parar.
“Estamos prontos para nos sacrificar, queremos fazer qualquer coisa”, diz um deles. São dadas ordens para recuar. O calor está no auge. Toda a gente tenta o impossível: encontrar no meio do deserto uma sombra para esperar. Uma hora depois, num palco no meio do nada, a música começa a tocar. A cantora saharaui Cheeta sobrepõe a sua voz à melodia: “não é porque estamos desarmados que quer dizer que somos fracos”.
Conseguimos falar com Sultana, um diálogo mediado por um tradutor. O discurso é cadenciado por palavras de ordem.
“Vim hoje com os saharauis e com as pessoas que defendem os direitos humanos para dizer, em frente a este muro da vergonha, que vamos lutar pelos territórios ocupados e que este povo não se vende”, afirma.
A via sacra de Sultana começou há anos quando se manifestou em Marraquexe contra o “desaparecimento” de estudantes saharauis. Segundo o seu testemunho às organizações de direitos humanos, datado de 14 de Maio de 2007, os estudantes organizaram uma marcha da Faculdade de Direito até a cidade universitária de Alqady Ayad, em Marraquexe. Foi aí que os estudantes foram «atacados» e espancados violentamente por agentes marroquinos.
«Fui a primeira das vítimas, eu era um dos alvos principais», disse Sultana, acrescentando que «começaram a espancá-la com matracas, batendo repetidamente nos olhos, até que um rebentou». Mas mesmo assim continuaram a bater-lhe. A polícia não se limitou a espancar os estudantes, vários deles foram borrifados com ácido.
Depois de 40 minutos de espancamentos e brutalidades, os estudantes foram algemados e transportados numa ambulância para o hospital Ibno Toufail. Mas as agressões continuaram.
«A equipa da ambulância agarrou-nos pelos cabelos e bateram com as nossas cabeças no veículo, enquanto gritavam ‘morte aos Polisários’», contou.
Após alguns tratamentos na unidade hospitalar, os estudantes foram conduzidos ao posto da polícia de Jamaâ Elafna onde foram identificados e torturados durante mais duas horas.
Por falta de assistência médica adequada, Sultana começou a vomitar sangue sendo transferida para o hospital de Elmamounia. Depois do médico ter constatado que o olho de Sultana tinha sido esmagado, foi decidida a sua transferência para a unidade Alantaki de Marraquexe. Durante o trajecto a estudante foi novamente sujeita a «espancamentos e pontapés».
Sultana é instalada num quarto do hospital para mulheres, mas nenhum tratamento lhe é administrado. Dizem-lhe que, como terrorista, vai ter de pagar antecipadamente o tratamento hospitalar ou nada será feito.
É colocada num quarto com vários polícias e «oito pessoas à civil». Um dos civis ordena que a estudante assine vários «documentos», mas Sultana explica que não consegue fazer uso das suas mãos, porque estavam destroçadas. Um dos presentes pega então no braço partido de Sultana e obriga a estudante a assinar documentos com a impressão digital. Sultana mal consegue ver, um dos olhos foi esmagado e o outro estava inchado devido aos espancamentos.
A vinda de muitos familiares obriga os médicos a operarem-na. Segundo nos disseram, os traumas ficaram.
Quando conseguiu sair para o estrangeiro, voltou a ser operada à vista em Barcelona e depois esteve na Suécia numa clínica especializada em acompanhamento de vítimas de tortura.
A guerra é suja e o conflito entre o Sahara e Marrocos não é excepção. Marrocos acusa também a Frente Polisário e as autoridades argelinas de terem torturado prisioneiros marroquinos e de reprimirem os saharauis que se opõem à independência.
O presidente da Associação Marroquina de Ex-prisioneiros de Guerra, Ali Najab, detido durante 25 anos, declarou a uma comissão das Nações Unidas, em 10 de Outubro de 2005, que tinha sido torturado quando da sua detenção pela Polisário. Ironia da história, um dos acusados de ser o responsável por este tipo de práticas é Omar Hadrami, na altura chefe da segurança da Polisário, que desertou para Marrocos e é hoje um quadro do Ministério do Interior de Marrocos, nomeado pelo rei Moahmed VI.
Há 10 anos visitei os prisioneiros marroquinos, presos nos campos do Sahara. Os saharauis quiseram-nos então mostrar que, apesar dos seus meios modestos, tentavam dar as melhores condições aos seus prisioneiros. O discurso não escondia a imensa dureza da realidade. Alguns dos marroquinos estavam presos há 30 anos sem ter comunicação regular com os seus familiares. Pareciam sombras no meio do deserto. Aproximavam-se de nós e pediam-nos para lhes tirarmos fotografias, davam-nos as moradas e suplicavam que enviássemos as imagens aos seus parentes para que soubessem que estavam vivos.
Hoje, todos esses homens regressaram a suas casas.
Artigo originalmente publicado na Grande Reportagem do jornal I.