Vasco da Gama: o massacre dos peregrinos e outras atrocidades

A vinte e nove de setembro de 1502, naus portuguesas avistaram na costa indiana um barco com centenas de pessoas que regressavam de Meca para Calecute. Vasco da Gama procurava há dias atacar peregrinos muçulmanos que ali passavam e tinha um plano sanguinário para os que se encontravam a bordo desta embarcação: «andando algumas das nossas naus em procura das que vinham de Meca, a S. Gabriel se encontrou com uma de Calecute que dali voltava com duzentos e quarenta homens, sem falar nas mulheres e crianças, que eram bastantes, e que todos voltavam daquela peregrinação: deu-lhes logo caça, e tendo disparado alguns tiros de bombarda, para logo se renderem».[1] 

Os passageiros estavam indefesos e logo pediram misericórdia, oferecendo todas as riquezas que tinham a bordo e ainda mais, para sobreviverem: «O Almirante  via o que se passava por uma escotilha, e algumas mulheres tomavam nos braços seus filhinhos e os levantavam ao ar persuadindo-o assim a que tivesse piedade daqueles inocentes; os homens faziam igualmente sinal com a cabeça que se queriam resgatar a todo o custo; e é certo que com a riqueza que havia naquela nau, se podiam tirar do cativeiro quantos cristãos estão presos no Reino de Fez, e ainda sobraria muito para El Rei N.S.».[2]

Vasco da Gama não queria apenas os bens dos peregrinos, tentou pegar fogo ao barco e mandou disparar mais tiros de canhão. As mulheres e homens resistiram bravamente com as poucas armas e pedras que tinham. Mas, depois de dias de perseguição e ataques, a embarcação foi finalmente capturada e saqueada. A três de outubro de 1502 - e, aqui, variam os relatos - mulheres, crianças e homens ou foram trancados no porão; ou amarrados ao navio; ou foram impedidos de sair a mando de Vasco da Gama, que ordenou que queimassem vivas todas aquelas pessoas e, de seguida, mandou afundar o barco: «fez o Almirante pôr fogo àquela nau, que ardeu com quantas pessoas se achavam dentro, com muita crueldade e sem comiseração alguma».[3] 

O escrivão Thomé Lopes que registou as palavras que tenho citado e foi testemunha ocular do sucedido, deixou-nos o mais longo e pormenorizado relato destes acontecimentos. Marcado profundamente pelo massacre, escreveu o seguinte: «lembrarei toda a minha vida».[4]

Já o cronista Gaspar Correa, que não fez parte desta viagem, narra um final diferente, mas também violento. Depois de Vasco da Gama recusar a proposta desesperada dos peregrinos de encherem os barcos portugueses com especiarias em Calecute, disse «vivos haveis de ser queimados», “mandou dar fogo à nau” e ficando «os Mouros a nado, os batéis andaram às lançadas». Refere ainda que os outros capitães portugueses tentaram persuadir Vasco da Gama a não massacrar as pessoas, aconselhando-o a aceitar as ofertas que os peregrinos lhes faziam.

Fernão Lopes de Castanheda, outro cronista do século XVI que viveu na Índia, diz que os peregrinos seriam trezentos «fora mulheres e meninos» e «o fogo pegou de maneira que ardeu metade da nau e parte dos mouros se afogaram nela, e parte foram mortos no mar onde se deitarão, e assim foram todos mortos».[5]. Nesta narrativa, provavelmente para aligeirar a brutalidade dos portugueses, Castanheda refere que as crianças foram retiradas do barco para serem convertidas ao cristianismo.

Terror em Calecute

 

Possivelmente, o massacre dos peregrinos de 1502 foi o evento mais sinistro do rasto de carnificina deixado por Vasco da Gama nas suas viagens à Índia. No entanto, este foi apenas um dos vários episódios de brutalidade perpetrada por este navegador português. Pouco dias depois deste massacre, Vasco da Gama bombardeou severamente Calecute, um dos portos mais importantes da região: «e todo o dia até à noite bombardeou a cidade, com que lhe fez grande destruição»[6]. O objetivo desta sua segunda viagem à Índia era dominar o comércio desses mares, expulsar a comunidade muçulmana da cidade e vingar os portugueses mortos em 1500 durante um conflito com os comerciantes locais.[7] 

Nesses dias de fim de outubro, de frente para Calecute, Vasco da Gama enforcou nos mastros das suas naus marinheiros “mouros” e “cafres” [negros] raptados em embarcações mercantis locais: «ordenou também que os guindássemos bem acima, para serem mais bem vistos […] Estava na praia um sem-número de gente, e saía muita da cidade para ver os enforcados, estando como insensatos a olhar para eles»[8]. E, depois, cortou-lhes as mãos, os pés e as cabeças, lançando-as à água para aterrorizar a população local: «À boca da noite mandou o Almirante dizer às naus que tirassem os enforcados, e lhes cortassem as cabeças, as mãos, e os pés, e que deitassem ao mar os toros dos corpos, remetendo todos os outros membros para a sua nau, os quais fez embarcar em uma almadia [canoa], das que tinham sido aprisionadas; e mandou escrever em língua indiana, a um chamado Frangola, um escrito por esta maneira: «Eu vim a este porto com boa mercadoria, para vender, comprar, e pagar os vossos géneros; estes são os géneros desta terra: eu vo-los envio de presente […]»[9]

Este episódio, assim como o massacre dos peregrinos, é retratado de diferentes formas, mas todas as crónicas retratam a sua brutalidade. Por exemplo, Gaspar Correa escreve que Vasco da Gama mandou desmembrar um grupo de tripulantes de uma embarcação de transporte de arroz que foi saqueada e, depois: «a todos os negros assim justiçados mandou atar os pés, porque não tinham mãos para se desatarem, e para que não se desatassem com os dentes, com paus mandou dar neles, que nas bocas lhos meteram para dentro, e foram assim carregados uns sobre outros embrulhados no sangue que deles corria»». De seguida, deu-lhes fogo numa barca que enviou para terra. Diz o mesmo cronista, que Vasco da Gama ordenou que cortassem as orelhas, nariz e mãos a um religioso local, colocando-lhe uma mensagem ao pescoço dizendo: «que mandassem fazer caril para comer».[10]

Meses antes, depois de deixar um rasto de violência na costa africana, recorda também Gaspar Correa que quando o navegador chegou a Quíloa, hoje na Tanzânia, para extorquir uma fortuna ao monarca local: «Houve na gente grande espanto, vendo entrar no porto tão grande armada, e conhecendo que era nossa, de que já tinham tanto sabido das cousas de Moçambique e Melinde, que toda a gente tomou grande medo».[11]. É preciso lembrar que uma das mais célebres obras da ourivesaria portuguesa, a Custódia de Belém, atribuída ao ourives e dramaturgo Gil Vicente, foi feita com o ouro extorquido em Quíloa nesta viagem[12].

Também um flamengo que era tripulante da armada portuguesa, relata que em Calecute: «tomámos ali dois navios grandes e matámos toda a gente e queimámos os navios diante da cidade». E, no regresso a Portugal: «encontrámos uma ilha onde matámos cerca de 300 homens e aprisionámos muitos».[13]

Herói ou Carniceiro?

 

O historiador indiano, Mahmood Kooria, refere como massacre dos peregrinos de 1502 é um tema recorrente nas memórias sul asiáticas, sendo narrado em cantigas, baladas, livros e no cinema[14]. As imagens que coloquei neste texto pertencem ao filme indiano em malaiala, Urumi (2011)[15], que retrata a história de um herói que pretende vingar a morte de seu pai às mãos dos portugueses. No início do filme, surge ficcionado o massacre dos peregrinos mostrando um Vasco da Gama implacável, louco e sanguinário. Numa das cenas, perante uma criança, o navegador corta a língua e as orelhas de um negociador de paz local, cozendo-lhe depois as orelhas de um cão à cabeça. No fim, o narrador lembra ironicamente que: «Agora, o mundo celebra-o como um grande homem!».

Numa outra perspetiva, em Portugal, Vasco da Gama é lembrado como um dos maiores “heróis” da história nacional. O navegador dá nome a pontes, ruas, avenidas, praças, largos, escolas, clubes, centros comerciais e restaurantes, e tem estátuas erigidas por todo país. É vangloriado na imprensa e televisão, em museus, nas salas de aula, em encontros de empresários e nos discursos oficiais de Estado. Fala-se de um suposto descobridor, ignorando a devastação que deixou nas suas viagens à Índia e suas ações terroristas. Principalmente, esquece-se as centenas de pessoas que tiveram a infelicidade de atravessar o seu caminho, sendo assassinadas de forma atroz, por fanatismo religioso, sede de poder, etnocentrismo, crueldade e, principalmente, por ganância. Na verdade, já é tempo de enfrentar a verdadeira história de Vasco da Gama, “O Carniceiro”.


[1] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulo VIII.

[2] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulo VIII. 

[3] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulo IX.

[4] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulos IX.

[5] Fernão Lopes de Castanheda, História do descobrimento e conquista da India pelos portugueses, livro I, Tomo II, capítulo XLV.

[6] Gaspar Correa, Lendas da Índia, Tomo I, “Dom Vasco da Gama, com que partiu para a Índia, ano de 1502”, Capítulo VIII.

[7] Em 1500 Pedro Alvares Cabral já tinha bombardeado Calecute, assassinado tripulações e saqueado frotas comerciais como retaliação a estes eventos.

[8] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulos XIV.

[9] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulos XIV.

[10] Gaspar Correa, Lendas da Índia, Tomo I, “Dom Vasco da Gama, com que partiu para a Índia, ano de 1502”, Capítulo VIII.

[11] Gaspar Correa, Lendas da Índia, Tomo I, “Dom Vasco da Gama, com que partiu para a Índia, ano de 1502”, Capítulo IV.

[12] http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/ourivesaria/custodia-de-belem

[13] Flamengo anónimo in Teixeira de Aragão, Vasco da Gama e a Vidigueira: um estudo histórico.

[14] Mahmood Kooria, “Killed the Pilgrims and Persecuted Them”: Portuguese Estado da India’s Encounters with the Hajj in the Sixteenth Century.

[15] https://youtu.be/M53RSi-4_Lc

por Pedro Varela
A ler | 29 Setembro 2021 | colonialismo, Descobrimentos, peregrinos, Vasco da Gama