Em tempos sinistros, os flashes repentinos de resistência tornam-se mais intensos. Através da bruma de cinza que nos envolve, esses momentos podem atravessar as trevas do coração. Tal como Walter Benjamin bem sabia, ‘[a] verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente Iluminada no momento do seu reconhecimento. (1) Através da Europa inteira, presenciamos uma tentativa de anular as conquistas emancipatórias de todo um século passado, com as reivindicações de poder fazendo-se passar por tentativas de aliviar os danos sociais enquanto propagam formas tóxicas de nacionalismo serôdio e bafiento. Estas, por seu turno, são fundadas na xenofobia e no racismo, quer ainda debaixo de ténues disfarces, quer de modo aberto e bem direto. Tudo parece acontecer ou um pouco depressa de mais, e como se um pouco por toda a parte, ou então muito lentamente e, na aparência, apenas em circunstâncias isoladas. Como é óbvio, tudo isto não passa de um jogo de espelhos e muito fumo. Mas quase poderíamos ser ‘absolvidos’ por não prestar atenção, por cancelarmos o futuro no esquecimento ou recusa do passado, de maneira a melhor poder vender o presente. As apropriações gratuitas e dissimuladas do descontentamento popular – com as ‘elites’, esse termo que se tornou na mais maleável das palavras-valise e que já foi despejado de qualquer significado – geralmente andam em parceria com as mais ultrajantes formas de virar conceitos ao avesso. Do mesmo modo que o termo ‘verdade’ se tornou uma mera casca vazia atirada para aqui e acolá até ao momento de podermos abraçar uma suposta era da ‘pós-verdade’, assim com muitos outros termos de importância fulcral para qualquer compreensão do modus operandi do poder. ‘Democracia’, hoje em dia, é, seguramente, o termo mais abusado à medida que forças anti-democráticas acusam descaradamente os seus oponentes de serem eles os anti-democráticos. E o mesmo se tem dado com termos como ‘discurso livre’ e ‘racismo’. Um dos falsos paradoxos destes nossos tempos é a ideia do ‘pós-racial’. À medida que as atitudes e ataques racistas crescem de forma exponencial em termos absolutos e em termos de violência mortal através de toda a Europa, EUA, e certamente no Brasil também, o mito de uma sociedade pós-racial exibe-se a si próprio ornamentado com a fé na dita pós-verdade. Tal como David Theo Goldberg afirma, na conclusão do seu estudo Are We All Post-Racial Yet?: ‘A pós-racialidade […] em vez de significar o fim do racismo, dissimula na sua obliteração conceptual do termo ‘raça’ o motor principal da articulação racista hoje em dia. Os racismos desaparecem por detrás do véu da elisão formal da classificação racial, regulamentos de Estado, e a recusa jurídica da definição racial. Esses racismos afirmam-se de novo em nome do desaparecimento, renúncia, e recusa da categoria racial. Os racismos proliferam na esteira da suposta ‘morte da raça’ (2). Tal como Benjamin também nos alertou, ‘[a]rticular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi” [Otto Ranke]. Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung) quando ela surge como um clarão num momento de perigo’ (3). Será que os dois polícias a cavalo, brancos, estariam cegos para um tal momento de perigo quando decidiram levar Donald Neely, um homem negro e deficiente mental, através das ruas de Galveston no Texas, no sábado, dia 3 de Agosto de 2019, preso a uma corda e com as suas mãos atadas por detrás das costas? Parece que sim, porque, tal como um deles mencionou ainda durante esse ato, eles sabiam que isso ‘iria parecer tão mal’ (4). Mas assim seria tudo tão fácil. O problema não é que aquilo iria ‘parecer’ mal; era mesmo ‘mau’ e remontava a séculos do mal mais absoluto. No entanto, os dois polícias, mesmo assim, prosseguiram com essa ação; e, talvez, sem que ninguém se surpreendesse, apesar de ter havido uma forte denúncia pública assim que essa ação se tornou conhecida, as consequências para esses polícias foram ínfimas. Claro que aquele foi talvez um momento especialmente icónico e assim, ficará, pelo menos por um pedacinho mais ainda, retido na consciência de todos. Mas devemos evitar ficar cegos com isso. Apenas a raiva e o sentido de ultraje concomitantes podem ser vistos como uma mostra de resistência. A ação em si, e deixando de lado todas as considerações circunstanciais que possam ter sido tecidas para a ‘justificar’, não passou de uma repetição de incontáveis outros momentos, uma re-encenação, da desumanização generalizada e, muito particularmente, da opressão racial. Num momento fugidio, ‘a verdadeira imagem do passado’ passou por nós. Caso houvesse alguma dúvida sobre como o racismo, longe de ser uma aberração qualquer, é sistémico e endémico às nossas sociedades, bastaria ver as estatísticas sobre o número de pessoas negras mortas às mãos dos agentes da lei. Um estudo recente, conduzido por três cientistas sociais, Frank Edwards, Hedwig Lee e Michael Esposito, oferece uma acusação tão convincente como lúcida:
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