Ainda estamos aqui com medo de não estarmos mais

Ontem, até que enfim, estreou Ainda Estou Aqui em Portugal. Acompanhei pela mídia portuguesa a fila enorme na rua, no frio, à beira do Cinema Trindade, talvez o meu primeiro lugar de amor no Porto, do qual eu fui vizinha por tantos anos, sócia de carteirinha (literalmente) e assisti tanta coisa, incluindo Central do Brasil (pela primeira vez em um cinema, numa exibição comemorativa dos vinte anos de lançamento, quando inclusive tive a oportunidade de conhecer o Walter Salles). Era completamente previsível que o público do Trindade, do Batalha, e de qualquer sala histórica com uma curadoria voltada ao cinema de arte lotasse o recinto. Por isso, quando anunciaram que os bilhetes entrariam em venda, eu, aqui do longínquo sul, quis fugir de lugares como o Cinema Ideal, na confluência da Baixa/Chiado com o Bairro Alto e a Bica, com toda aquela gente, com ares de entendidas e prontas para darem a sua opinião não-solicitada em alto e bom som à saída, e decidi ir num cinema de rede de um shopping center, desses metidos a grã-finos onde pretensas madames desfilam sem saber que mulheres ricas de verdade nem pisam em lugares como aquele, em Almada, numa sessão vespertina, achando que teríamos praticamente uma exibição privada. Bem bobinha, eu.


Sala lotada de pessoas com as quais eu, provavelmente, de comum só tenho a capa do passaporte. Jovens com cara de estudantes universitários, famílias inteiras, casais de idosos, grupo de amigas comentando que quase não conseguem sair a tempo do trabalho. Fiquei com medo do blablablá, porém, quando começou o filme, parece que a plateia entrou em transe. Eu, que venho escrevendo sobre o filme desde que foi ovacionado no último Festival de Veneza até a coroação de Fernanda Torres no Globo de Ouro, que sou leitora do Marcelo Rubens Paiva desde que ganhei e li Feliz Ano Velho, quando tinha uns 14 anos, me vi contorcendo e apertando minhas mãos enquanto via aquela mulher jovem, em um casamento feliz, mãe de crianças amorosas e cheias de personalidade, com uma vida de comercial de margarina em um casarão de frente para a praia do Leblon na Delfim Moreira nº 80, onde vivia dando festas para os amigos, ver sua vida ruir no dia que arrancaram o seu marido de casa, sem explicação, para nunca mais voltar.

Soube que, no Brasil, uma esquerda merendeira quis problematizar a não-presença de personagens pretos em uma obra autobiográfica de uma família burguesa da zona sul do Rio de Janeiro nos anos 70, numa militância tão rasa que nem ao menos se atentou que aquela mulher, que poderia ter sobrevivido se agarrando ao privilégio da sua branquitude, decidiu dedicar sua vida para a defesa dos povos indígenas. O Walter Salles, aliás e peloamordedeus, não é burro. Ao escolher dirigir a história de uma abastada família carioca ele sabia exatamente que iria passar a mensagem de que absolutamente ninguém fica imune à repressão e a violência imposta por um regime autoritário, antidemocrático e militar, tipo o que os malucos pediam acampados em frente aos quartéis depois da derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, e nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília.

É que estamos completamente acostumados a ver pretos e favelados sofrerem. A se foderem – não, não existe palavreado eufêmico possível. Indígenas, caboclos, quilombolas, ribeirinhos, populações periféricas, as bases da pirâmide socioeconômica: a sociedade, como um todo, perdeu a capacidade de se chocar com a miséria humana quando ela acontece em meios e com populações historicamente normalizadas. Eles estão fadados ao suplício. Walter Salles, o terceiro cineasta mais rico do mundo, que “perde” apenas para George Lucas e Steven Spielberg, com um patrimônio herdado de origem bem controversa, reunindo o Unibanco, fruto de uma expansão beneficiada pela política de centralização bancária da ditadura brasileira, com a metalurgia e mineração que dominam 80% do mercado mundial de metal, sabe perfeitamente disso.

O Le Monde chamou a Fernanda Torres de monocórdica, adjetivo que fala muito mais dos preconceitos de quem escreveu, refletindo com obviedade o estereótipo da mulher latino-americana barulhenta, do que da atuação desta grande artista que conseguiu nas expressões mais intimistas escancarar os sentimentos da vida tragicamente incrível de Eunice Paiva. Uma mulher que viu o amor da sua vida ser extirpado de casa para, logo em seguida, ela mesma ser, junto da filha de quinze anos, sem delonga encapuzadas e separadas num palco de horrores ao som da sinfonia dos torturados. O grito dos olhos de Fernanda Torres é muito mais alto.

Aliás, um breve comentário: impossível não comparar o final de Ainda Estou Aqui com o de Central do Brasil, a onipresente genialidade de Fernanda Montenegro ao som de um clássico da música popular brasileira, antes “Preciso me encontrar”, de Cartola, agora “É preciso dar um jeito, meu amigo”, de Erasmo Carlos. Antes, a partida racional para uma vida ressignificada, aqui a voz não ouvida de uma existência cheia de sentidos emprisionada num corpo com Alzheimer. Fernanda Montenegro está para Walter Salles como Marisa Paredes esteve para Almodóvar. É como se a obra dependesse dela para estar completa. E está tudo bem – e ainda bem.

Cinquenta e quatro anos depois do assassinato de Rubens Paiva, nós ainda estamos aqui, num sentimento de obrigação de reafirmar, argumentar, assistir, difundir a mensagem de que a democracia, apesar de imperfeita, é fundamental para cogitarmos a possibilidade de uma vida de direitos e dignidade. A arte de Ainda Estou Aqui é a vida projetada numa tela digital com Dolby Stereo and surround sound na expectativa de validação através de algumas estatuetas douradas em uma terra que arde em chamas. Ainda estamos aqui com medo de não estarmos mais e com a certeza de que, para muitos, nunca nem estivemos. Ou não deveríamos estar.

por Gabriella Florenzano
Afroscreen | 18 Janeiro 2025 | Ainda estamos aqui, Brasil, ditadura, Walter Salles