A cadeirada e o coice

José Luiz Datena deu uma cadeirada em Pablo Marçal e quem levou o coice foi a democracia. Não se fala em outra coisa no Brasil e a perplexidade sobre o acontecimento transborda para o além-mar. O programa da TV Cultura – uma emissora pública administrada por uma organização sem fins lucrativos e com a missão histórica de transmitir conteúdos educativos, informativos e de promoção cultural – que tinha como objetivo promover o debate entre os candidatos à prefeitura da cidade mais populosa do continente americano, São Paulo, ficará eternizado como um meme de extremo mau gosto, que de tão absurdo parece ter sido fabricado propositadamente com o objetivo de concorrer com o último debate entre os presidenciáveis estadunidenses, quando Trump fez a acusação esdrúxula de que imigrantes estariam comendo os animais de estimação das pessoas.

Atores políticos bizarros que conquistam o voto e a aprovação popular não são uma exclusividade americana, seja do Norte, do Sul ou Central, e tampouco de nossa época. O chocante da projeção atual dessas figuras no mundo inteiro é a nossa imaginação esperançosa que não queremos abandonar de achar que, com o acesso à informação aumentado, apesar de obviamente ainda muito longe do ideal, e a implementação de leis que identificam e criminalizam incontáveis formas de violência que eram normalizadas até há muito pouco tempo, esses seres jamais poderiam falar o que falam e agir como agem sem sérias punições.

Infelizmente não é exclusividade masculina líderes da política com posicionamentos que ferem os direitos humanos e o bom senso, porém – e apesar daquele episódio surreal em que a deputada Carla Zambelli correu atrás de um homem pelas ruas de São Paulo apontando uma arma em sua direção, após uma discussão no período das eleições em 2022 – alguém imagina a Damares Alves dando uma cadeirada na Michelle Bolsonaro numa hipotética disputa entre as duas para um mesmo cargo? Qual seria a possibilidade de Marina Helena, candidata de direita à prefeitura de São Paulo, que integrou o Ministério da economia do governo Bolsonaro – e de quem Datena “roubou” a cadeira – repetir a agressão com a candidata centro-esquerdista Tabata Amaral?

Muita gente se declarou de “alma lavada” com a agressão de Datena em Marçal. O discurso de ódio tem o poder de despertar o pior não só naqueles que corroboram com ele, mas também naqueles que discordam veementemente e que, de tão ultrajados, acabam por também cair na barbárie. Datena, mesmo se ainda não ostentasse cabelos brancos da experiência e quase meio século de carreira, jamais poderia ter agido através da violência. Para agravar, ainda publicou nota admitindo o erro porém dizendo não se arrepender. Se aqueles que se propõem a representar o povo não procederem através e não confiarem nas instituições de justiça, que futuro terá o país além do caos?

Enquanto o ex-coach, com condenação e investigações nas costas, nenhuma fala que pode ser ao menos levada à sério e um comportamento ridículo, divide a liderança das intenções de voto de São Paulo, Tabata Amaral, uma mulher jovem, deputada, com robusta formação acadêmica, reputação ilibada e que tem propostas (sem nem entrar no mérito de serem boas ou ruins e sim no simples fato de as ter), ela precisa lutar ao quíntuplo para ser ao menos ouvida à medida que é atacada tanto pela extrema-direita, misógina e outras coisinhas mais, quanto por uma esquerda que não aceita indivíduos que não seguem exatamente a cartilha idearia.

Das dez pessoas que disputam a prefeitura de São Paulo, uma cidade na qual 52,96% da população é feminina, só duas são mulheres. Provavelmente não concordo com nada do que defende Marina Helena, mas até hoje nem sabia que ela existia e não tenho a menor sombra de dúvidas em afirmar que seria, no mínimo, menos prejudicial ao povo brasileiro escutar o que ela tem a falar do que qualquer coisa que diz Pablo Marçal. A política que dá audiência (e votos), porém, ainda é a de rinhas entre galinhos carijós, onde os que saem depenados somos todos nós.

por Gabriella Florenzano
Cidade | 16 Setembro 2024 | Brasil, democracia, política, TV cultura