Crise na Amazônia: a luta pela educação indígena que mobiliza povos originários e tradicionais, professores e a sociedade civil contra o governo do Pará

Fotografias de Raimundo Paccó. 

Uma crise no estado do Pará, na Amazônia brasileira, envolvendo a educação indígena, já dura duas semanas e ganhou proporções – sem qualquer pleonasmo – amazônicas, apesar de, curiosamente, estar sendo ignorada pela imprensa brasileira e ainda não ter alcançado a projeção internacional. O estopim foi a decisão do governo estadual, liderado pelo governador Helder Barbalho, de alterar o Sistema Modular de Ensino (Some) e o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), medidas que, segundo indígenas e professores, retiram direitos fundamentais e representam um retrocesso para as comunidades tradicionais.


O protesto, que começou com a ocupação da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em Belém, a capital do estado, já reúne mais de cinquenta etnias, professores, ativistas sociais e o apoio de entidades nacionais e internacionais. A cidade será sede, em novembro de 2025, da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que reunirá líderes mundiais, cientistas, ambientalistas e representantes da sociedade civil para discutir e negociar políticas climáticas globais, com foco no combate às mudanças climáticas e na implementação do Acordo de Paris. Como todos deveriam saber, as populações originárias e tradicionais são as principais responsáveis pela preservação da floresta amazônica.

O início da crise: a ocupação da Seduc

No dia 14 de janeiro, mais de cem indígenas de diversas etnias, como Munduruku, Tembé, Xikrim, Borari, Arapium, Kumaruara, Sateré-Maué, Maytapu, Tapuia e Tupinambá, ocuparam a sede da Seduc. Eles protestavam contra a Lei 10.820/2024, sancionada pelo governador Helder Barbalho, que extingue o Some e o Somei, sistemas que garantem educação presencial em comunidades isoladas. Os manifestantes denunciam que a substituição por aulas virtuais, através do Sistema Educacional Interativo (SEI), é inviável devido à falta de infraestrutura, como internet e energia elétrica, e à necessidade de ensino presencial para alunos que não falam português.

A ocupação foi recebida com repressão pela Polícia Militar, que usou spray de pimenta, cortou água e energia elétrica no prédio e impediu a entrada de alimentos para os manifestantes e jornalistas. Alessandra Korap, liderança Munduruku e vencedora do prêmio Goldman Environmental Prize 2023, usou as redes sociais para esclarecer à sociedade que a ocupação era pacífica e que os manifestantes estavam dispostos a resistir até que suas demandas fossem atendidas.

A escalada do conflito: greves e bloqueios de rodovias

No dia seguinte, o procurador da República Rafael Martins da Silva visitou a Seduc e confirmou que o protesto era pacífico, porém criticou a falta de diálogo do governo. Enquanto isso, professores da rede pública estadual decidiram entrar em greve, ocupando a a Estação das Docas e o Teatro Maria Sylvia Nunes, emblemáticos pontos culturais e turísticos de Belém e onde onde acontecia o I Congresso Internacional de Direitos Humanos na Amazônia, promovido pelo governo através da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Igualdade Racial. Em várias partes do estado, indígenas fecharam rodovias federais, como a BR-222 e a BR-163, em protesto contra a lei.

O governo do Pará, por sua vez, manteve uma postura intransigente, enviando tropas de choque e cavalaria para intimidar os manifestantes. O secretário de Educação, Rossieli Soares, limitou-se a negar as reivindicações em declarações gravadas, sem abrir espaço para negociação.

A luta judicial, liberdade de imprensa e direitos indígenas

A crise ganhou contornos jurídicos quando o Tribunal de Justiça do Pará garantiu, em liminar, o acesso de jornalistas à Seduc, após o Sindicato dos Jornalistas denunciar o cerceamento da imprensa. Paralelamente, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) manifestaram apoio às demandas dos indígenas, destacando que qualquer mudança na educação indígena deve ser precedida de consulta livre, prévia e informada, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

No dia 20 de janeiro, data simbólica para a memória da resistência indígena no Brasil, o governo do Pará intensificou o conflito com os povos originários ao acionar a Justiça pedindo a reintegração de posse da sede da Secretaria de Educação (Seduc) em Belém, ocupada por indígenas e professores em protesto contra mudanças no ensino. O pedido, feito pela Procuradoria Geral do Estado, teve parecer contrário do Ministério Público Federal, e a juíza federal Maria da Penha Gomes Fontenele Meneses decidiu não analisar o caso em regime de plantão, encaminhando a decisão para uma Vara competente. A ação judicial alegou que não houve consenso em tentativas de diálogo e solicitou a restrição da ocupação ao auditório e ao refeitório, sob risco de multa ou outras medidas coercitivas.

A condução do governo tem agravado a crise, levando mais indígenas a aderirem ao protesto e incentivando bloqueios em rodovias estratégicas, com impactos na economia estadual. A possibilidade do uso da força para dispersar os manifestantes gerou apreensão sobre as consequências políticas e humanitárias da crise. O cenário de embate também resgatou um histórico de resistência indígena na região, relembrando episódios como o Levante Tupinambá, entre 1617 e 1619, e a Cabanagem, entre 1835 e 1840, alimentando a luta dos povos originários por seus direitos.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a Lei 10.820/2024, argumentando que ela viola direitos constitucionais à educação diferenciada e à preservação das culturas indígenas. Além disso, o MPF impetrou um Mandado de Segurança contra o governo do Pará, exigindo que fossem garantidas condições básicas aos manifestantes, como acesso a água, alimentação e banheiros.

No dia 23 de janeiro, os professores da rede pública estadual regular e do SOME declararam greve. O coro que pede a exoneração de Rossieli Soares é uníssono, assim como a declaração de que se a lei não for revogada e as exigências atendidas, a indígenas, professores, quilombolas e ativistas sociais fecharão as ruas e impedirão as atividades da COP30.

A denúncia à ONU

A crise ganhou dimensão global quando caciques e cacicas das etnias Arapyun, Jaraki, Tupinambá, Munduruku, Munduruku Cara-Preta, Borari, Tupayú, Maytapú, Sateré-Maué, Tapuia, Kumaruara, Wai-Wai, Katwena, Xerew, Hiskaryana, Mawayana, Paritwoto, Tikyana, Kaxuyana, Tiriyó, Xikrim e Tembé, representados pelo Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns – CITA, através da coordenadora Margareth Pedroso dos Santos, e a deputada estadual Lívia Duarte, líder do Psol e presidente da Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) denunciaram o estado do Pará à Organização das Nações Unidas (ONU). O documento acusa o governo de violar direitos humanos fundamentais, como o acesso à educação e à dignidade, e destaca a repressão policial e as condições insalubres impostas aos manifestantes.

A denúncia à ONU afeta não só o Pará, mas o governo do Brasil, que sediará a COP30 em Belém em 2025. O governador Helder Barbalho, que tem buscado construir uma imagem internacional como defensor da Amazônia, vê sua reputação ameaçada pela crise. O presidente Lula, segundo fontes, pressionou Helder a revogar a lei e buscar uma solução negociada o mais rápido possível.

A resistência indígena e a falta de diálogo

Apesar das tentativas de mediação, o governo do Pará continuou a adotar medidas controversas, como a criação de um Grupo de Trabalho para elaborar uma nova política de educação indígena, sem a participação de todas as etnias envolvidas no protesto. Os caciques e cacicas rejeitaram a proposta, afirmando que a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), convidada para representar os indígenas, não tem legitimidade, pois sua diretoria está vencida e não representa todas as comunidades.

No dia 28 de janeiro, após 15 dias de ocupação, o governador Helder Barbalho finalmente convocou uma reunião com as lideranças indígenas. No entanto, o encontro foi marcado por muitos desentendimentos. Os indígenas se sentiram desrespeitados pelo aparato policial e pela exigência de deixarem seus telefones celulares na antessala. A reunião, que durou horas, não resultou em acordo, e os manifestantes mantiveram suas demandas: a exoneração do secretário Rossieli Soares e a revogação da Lei 10.820/2024.

Esta não é a primeira vez que Rossieli Soares da Silva provoca descontentamento ao longo de sua trajetória na gestão educacional. Quando chefiou a Secretaria de Educação do estado do Amazonas, de 2012 a 2016, foi processado por dispensa ilegal de licitação ao autorizar a contratação sem licitação de associações de pais e comunitárias para prestação de serviços educacionais. Durante sua gestão na Secretaria de Educação do estado de São Paulo, de 2019 a 2022, protagonizou polêmicas relacionadas ao retorno das aulas presenciais durante a pandemia de COVID-19. Também não está claro o porquê de Rossieli ficar “pulando” de estado em estado.

Um conflito que reflete mais de 500 anos de opressão

A crise no Pará não é nada de novo no histórico de violências e opressões enfrentado pelos povos indígenas na Amazônia, desde a colonização européia até os dias atuais. A luta por educação de qualidade, que respeite as especificidades culturais e linguísticas, é parte de uma batalha maior por reconhecimento e direitos. A intransigência do governo estadual, aliada à repressão policial, só agravou a situação, transformando um protesto legítimo em uma crise de proporções internacionais que deve gerar graves consequências políticas para o próprio governo.

A sociedade civil, o MPF, a ONU e lideranças indígenas continuam a pressionar por uma solução negociada, deixando bem claro que o diálogo e respeito aos direitos dos povos originários são fundamentais, especialmente em um momento em que o Brasil busca se posicionar como líder global na proteção da Amazônia e na promoção da justiça climática.

A resistência indígena, fortalecida pelo apoio de professores, ativistas e entidades de direitos humanos, é uma demonstração nítida de que a luta por educação digna e inclusiva não será abandonada. O desfecho é incerto, mas uma coisa é garantida: os povos indígenas do Pará não estão sozinhos em sua jornada por justiça e dignidade e parece que, finalmente, têm ao seu favor a grande maioria da sociedade, que percebeu, depois de séculos de manipulação colonial, que somos todos parentes.

 

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Matéria 16 (29 de janeiro): https://uruatapera.com/helder-nao-atendeu-as-etnias-que-podem-empastelar-a-cop-30/

por Gabriella Florenzano
Vou lá visitar | 29 Janeiro 2025 | Amazónia, educação indígena