Edson Chagas. Oikonomos
Em Oikonomos, Edson Chagas (Luanda, 1977) dá continuidade a uma reflexão que, iniciada em 2011-2012, adquiriu novos contornos por volta de 2017. Ao passo que algumas imagens mais antigas da série haviam já sido mostradas em Luanda, no contexto do festival de cultura urbana Mabaxa, em 2012, as mais recentes tinham, até à data, sido expostas apenas na África do Sul. Exibida muito parcialmente e em grupo na Cidade do Cabo em 20181, a nova série de Oikonomos chega agora a Luanda de forma praticamente integral e a solo.
Tanto o recurso ao método serial na fotografia, como a decisão de manter algumas das suas séries em aberto e em processo revelam um aspecto fundamental da prática artística de Chagas. Trata-se da procura constante e minuciosamente atenta ao mundo em redor, do local ao continental e ao global, e por isso mesmo, também e sem contradição, desacelerada e introspectiva2, vivencial e intuitiva, sem nunca abdicar do espaço e do tempo necessários à observação e à reflexão, à experiência e à experimentação, nomeadamente no que ao próprio meio da fotografia diz respeito, enquanto ponto de partida formal e conceptual para todos os demais sentidos que a sua obra indubitavelmente adquire. A fotografia, entendida e praticada de forma serial e expandida, subjectiva e não documental, permite-lhe tomar criticamente o pulso aos impactos que as dinâmicas sociais, económicas e políticas do capitalismo globalizado têm tido sobre os ritmos quotidianos de cidades no Norte e no Sul globais (com destaque para Londres, onde viveu, e Luanda, onde vive)3, cujos espaços e objectos escapam cada vez menos à total mercantilização, e cujas subjectividades se reduzem cada vez mais ao desagenciar alienante do consumo (ou do seu desejo), em detrimento da participação cidadã. Se, historicamente, a serialidade surgiu enquanto manifestação da reprodutibilidade técnica da modernidade industrial, em contexto artístico, ela constituíu-se muitas vezes como um dispositivo crítico do elitismo aurático da obra de arte, na linha de Benjamin4, e dos mitos de originalidade e de autoridade da subjectividade moderna ocidental5, nomeadamente na arte pop dos anos 1950 e no minimalismo dos anos 1960 nos EUA – este último, uma assumida inspiração para Chagas6. A serialidade aberta da fotografia permite-lhe, então, aprofundar, ao longo do tempo e através de deslocações entre os vários espaços que habitou, o seu labor (artisticamente) experimental e (ético-politicamente) crítico de olhar e sentir o mundo7.
Oikonomos remete, em grego antigo, para uma concepção de subjectividade fundada na gestão de riqueza com vista à sua acumulação. É o vocábulo que, através do latim oecomonus, culminou posteriormente na moderna economia. A escolha deste termo e da sua versão em grego antigo para nomear a série foi determinada, em 2011, pela atenção de Chagas às crises mundial e europeia e pela forma como estas afectaram, em particular, a Grécia e os restantes países do sul da Europa (Portugal, Espanha e Itália, para além da Irlanda), pressionados pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional a implementar duríssimas políticas de austeridade, com consequências dramáticas para a maioria dos cidadãos, principalmente os mais desfavorecidos. Cerca de três anos depois, a partir de 2014-2015, a diminuição do preço do barril de petróleo retraiu a economia angolana, que, gozando anteriormente de uma forte aceleração (cujos impactos Chagas também examina), se afundou numa grave crise, de que tem tentado progressivamente reerguer-se desde então. Estando a crise no sul da Europa na génese da primeira fase de Oikonomos e a crise em Angola na origem da segunda, a verdade é que estes acontecimentos constituem apenas, mas significativamente, um pano de fundo para as reflexões mais alargadas que Chagas desenvolve nas duas fases da série.
Em ambas, mais genericamente, o termo Oikonomos aponta para o que, estrutural e sistemicamente, antecede, origina e pretende justificar tais crises: a suposta inescapabilidade global do capitalismo nas suas múltiplas formas, quer ocidentais, quer orientais, quer a norte, quer a sul, e das suas promessas de uma felicidade sustentada pela acumulação de riqueza, pelo consumo e pela concomitante mercantilização do espaço, do tempo, dos corpos (humanos e não humanos), dos recursos naturais, dos objectos, dos conhecimentos e dos afectos. O espectador depara-se com uma série de torsos de camisa branca. Trata-se do corpo do próprio fotógrafo em performance ‘invisível’ para a câmara. Esses torsos têm as cabeças e os rostos cobertos com sacos de plástico (e, nalguns casos, de tecido), que anunciam, entre outras coisas, mundos de felicidade turística e vidas aprazíveis de consumo. Chagas reflecte sobre as consequências desfigurantes, alienantes e homegeneizadoras do capitalismo global (tantas vezes disfarçado, no continente africano, também sob a capa da ajuda internacional e do desenvolvimento)8. Ao utilizar uma inconspícua camisa branca em cada uma das fotografias que compõem a série, mantém o foco sobre as cabeças e os rostos enquanto indicadores de uma individualidade, na linha das convenções retratísticas. Contudo, essa individualidade é minada pelo facto destas serem cabeças sem rosto, sempre encoberto por ‘máscaras de consumo quotidiano’, nas palavras do artista9. O duelo e a dualidade em jogo na interacção performativa do fotógrafo com o objecto parecem culminar numa espécie de ‘fotografia escultórica’, em que corpo e objecto se fundem. Estas ‘máscaras’ tornam-se indicadores anódinos dos fluxos globais do capital – de que Angola faz parte, apesar da recente crise –, cujas origens são reveladas ou ocultadas pelas mensagens em várias línguas (inglês, chinês, português, etc.), que, por sua vez, acompanham imagens de suposto sucesso, comércio e lazer.
Tal como noutras obras de Chagas, Oikonomos é o resultado da repetição de gestos performativos com objectos: descartáveis, mas reutilizados e, assim, revalorizados, como em Found Not Taken (2008-); ‘mascarantes’, realçando e, ao mesmo tempo, problematizando identidades, como em Tipo Passe (2012-2014). Mas, ao contrário dessas obras, em Oikonomos os objectos são colocados no espaço do próprio corpo do fotógrafo-performer. O objectivo é analisar as contradições inerentes a uma época em que, apesar da especificidade dos contextos, o agenciamento parece ter sido globalmente reduzido ao consumo massificado (ou ao seu desejo), embrutecedor e produtor de desperdício. O processo fotográfico e performativo de Chagas parece reflectir criticamente, através do próprio medium, sobre estes processos sociais desagenciadores, já que, ao ser tanto fotógrafo, como modelo das suas imagens, abdica do controlo sobre o resultado final e não exclui a sua própria subjectividade da objectificação social em análise. Para além do objectivo mais imediato da experimentação com os meios da fotografia de estúdio e da performance com objectos para a câmara, o gesto de colocar um saco na cabeça surgiu também, inicialmente, como a expressão de um cansaço relativamente à cobertura mediática da crise económica mundial, sem solução à vista (que Chagas acompanhou em proximidade no jornal económico onde, à época, trabalhava)10. O facto de esse gesto ser realizado pelo próprio artista convida-nos, igualmente, a considerar como os circuitos globais da arte contemporânea, mesmo quando críticos, dificilmente escapam às dinâmicas neo-liberais.
Como sucede habitualmente na obra de Chagas, os objectos escolhidos são também ‘viajantes’. Para além de, no caso de Oikonomos, fazerem circular significados em texto e imagem, os sacos são, eles próprios, objectos que passam de mão em mão e que, por sua vez, possibilitam o transporte não só de outros objectos e de materiais, como também de conhecimentos e afectos por parte de sujeitos em trânsito. Algo que, com frequência, acompanha os actos quotidianos de compra e venda, os sacos remetem não apenas para a deslocação de pessoas e do que transportam consigo, mas igualmente para as práticas generalizadas de mercantilização que privilegiam a livre circulação de bens, serviços e capital, em detrimento dos sujeitos migrantes. Ao evocar estas múltiplas formas de movimento, o sentido conferido por Chagas a estes objectos convoca-nos a reconhecer a urgência da desconstrução de vários tipos de fronteiras, na senda de um cosmopolitismo crítico, sem, contudo, nos deixar esquecer os enormes limites que o capitalismo impõe quer a esse cosmopolitismo, incluindo a sua versão africana (na linha do Afropolitismo de Mbembe11), quer ao chamado nomadismo na arte contemporânea (a forma como os artistas de várias proveniências e as suas obras viajam regional, continental e globalmente). Para que a circulação contra-hegemónica da produção cultural, em geral, e da arte contemporânea, em particular, cumpra os seus desígnios resistentes, deve manter-se criticamente consciente do modo como ‘o globo encolhe para aqueles que o possuem’, enquanto que ‘para o deslocado ou o destituído, o migrante ou o refugiado, nenhuma distância é mais assustadora do que os poucos metros que separam as fronteiras’12.
Ao atentar nos signos visuais (figuras públicas, paisagens, produtos, logotipos, etc.) e linguísticos (marcas, slogans publicitários, datas, etc.) que os sacos disseminam, percebe-se como a escolha deste tipo de objecto permite igualmente a Chagas, nas duas fases distintas da série, contar uma espécie de narrativa alternativa de dois momentos históricos recentes, vincando tanto as descontinuidades, como as continuidades entre ambos, numa perspectiva simultaneamente global, continental, regional e local. Se, em 2011, reconhecemos Obama, assim como Ronaldo e Messi em ‘mundos de esperança’ tecnológica por entre resorts e arranha-céus ao estilo do Dubai, em 2017, destaca-se a Union Jack, a bandeira do Reino Unido, entre outros indícios preocupantes do reinstaurar de fronteiras, e motivos referentes à importação de bens essenciais por parte de Angola, cuja economia permanece dependente da exportação do petróleo e da flutuação dos seus preços. Com efeito, entre 2011 e 2017, vários fenómenos globais, continentais e locais mantiveram-se relativamente inalterados, como, por exemplo, a intensa actividade económica chinesa no continente africano e, em particular, em Angola, e, mais genericamente, um status quo reificante e consumista.
Ao contrário da primeira parte da série, a segunda, agora exibida em Luanda, foi totalmente fotografada com sacos encontrados pelo fotógrafo no mercado de São Paulo, um facto que, por si só, demonstra tanto a inscrição local do projecto, como a inserção inequívoca de Angola nas malhas contraditórias da globalização. Ao colocar os sacos na sua própria cabeça, Chagas inverte-os, dessa forma desacelerando e desnaturalizando a imediatez normalizadora com que, acriticamente, eles próprios e as suas mensagens circulam. Sem deixar de se implicar a si mesmo e, por extensão, a todos nós, o artista incita-nos a um questionamento essencial, enquanto ponto de partida para a procura conjunta de outros modos de vida.
- 1. Uma parte muito reduzida de Oikonomos (2017) foi mostrada no contexto da exposição colectiva Both, And, na Stevenson, na Cidade do Cabo, entre 5 de Julho e 21 de Agosto de 2018.
- 2. Ana Balona de Oliveira, ‘In Slow Motion: A Fotografia de Edson Chagas/ In Slow Motion: The Photography of Edson Chagas’, in NOVO BANCO Photo 2015: Ângela Ferreira, Ayrson Heráclito, Edson Chagas (Lisboa: Museu Coleção Berardo, 2015), pp. 91-116; Ana Balona de Oliveira, ‘Journal of Uncollectable Journeys: Edson Chagas’s Found Not Taken Series and Other Works’, Nka: Journal of Contemporary African Art (2017), No. 40, p. 46.
- 3. Balona de Oliveira, ‘Journal of Uncollectable Journeys’, pp. 44-55.
- 4. Walter Benjamin, ‘The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction’, in Illuminations, intro. Hannah Arendt, trans. Harry Zorn (London: Pimlico, 1999), pp. 217-252.
- 5. Rosalind E. Krauss, The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985).
- 6. Balona de Oliveira, ‘Journal of Uncollectable Journeys’, pp. 44-46. No trabalho de Chagas, a serialidade surge também sob a forma de fotografias impressas em cartazes que o espectador pode levar consigo, como ocorreu com Found Not Taken em Luanda, Encyclopaedic City, na 55ª Bienal Veneza, em 2013, e, posteriormente, noutros contextos. Oikonomos também foi exibido desta forma em Both, And.
- 7. Edson Chagas, ‘Most of my work is series. It’s a method that reflects how I feel things’, Contemporary And (2013), https://www.stevenson.info/sites/default/files/2013_suzana_sousa_contemp....
- 8. Dambisa Moyo, Dead Aid: Why Aid Is Not Working and How There Is a Better Way for Africa (London: Penguin, 2009).
- 9. Edson Chagas, ‘Artist Statement – Oikonomos’ (2015), página não numerada, tradução da autora.
- 10. Edson Chagas, ‘Grande Entrevista - Cultura’, de Marta Lança, Rede Angola (2015), http://www.redeangola.info/especiais/entrevista-edson-chagas/.
- 11. Achille Mbembe, Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée (Paris: Découverte, 2010).
- 12. Homi K. Bhabha, ‘Double Visions’, Artforum (January 1992), p. 88, tradução da autora.