O ‘Jardim Imperial’ de Délio Jasse, ou Jardim das Delícias Brancas

Délio Jasse tem sido um dedicado investigador arquivístico para fins artísticos. Tem-se debruçado sobre vários tipos de arquivos coloniais e pós-coloniais, visuais e textuais, para examinar as formas complexas como as histórias do colonialismo europeu deixaram um rasto de legados duradouros. Fascinado pelos processos materiais, mecânicos e químicos da fotografia analógica e de outras técnicas de impressão, como a serigrafia, Jasse tem-se empenhado também em refletir sobre as múltiplas histórias do próprio meio fotográfico. Tem prestado especial atenção às histórias coloniais da fotografia, incluindo aquelas que se relacionam com os seus usos na etnografia e noutros conhecimentos classificatórios (pseudo)científicos (geológicos, botânicos, zoológicos, etc.), na ocupação territorial, na extração económica, no planeamento urbano e rural, na propaganda desenvolvimentista, na vigilância política, no conflito militar, bem como nos meios de comunicação e na cultura popular. Em particular, Jasse tem examinado o registo visual, frequentemente guardado em arquivos privados, do lazer colonial branco, ou seja, de uma vida ao ar livre de caça, festas e banhos de sol, conjurando a fantasia branca de um paraíso na terra – ‘O Jardim das Delícias Terrenas’ (maioritariamente) destinado a brancos (para citar o título do famoso tríptico de 1490-1500 do holandês Hieronymus Bosch que, exposto no Museu do Prado em Madrid, contém a sua própria advertência sobre o preço infernal a pagar pelo ilusório excesso branco, que uma esparsa presença negra, muito provavelmente, apenas pretendeu reforçar).

Jasse expõe a posição subjetiva do olhar fotográfico branco em contextos de ocupação colonial não só quando esse olhar captou a vida dos colonizados (representados de várias formas como: espécime etnográfico a ser preservado como autêntico atemporal; sujeito assimilado, permeável ao progresso e à civilização, mas nunca totalmente igual; mão-de-obra mineira e agrícola escravizada apesar da abolição; nu feminino negro, objetificado e exotizado ou como pitoresco primitivo desmerecedor de desejo, ou como corpo hiper-sexualizado facilmente consumível ou, ambivalentemente, como ambos). Jasse também revela como o olhar branco construiu visualmente a própria branquitude, chamando a nossa atenção para imagens de arquivo em que os colonos portugueses retrataram as suas próprias vidas prazerosas nos trópicos – uma espécie de recreio segregado, o cenário para um estilo de vida mais abastado, quente e livre do que o da pobre, fria e conservadora metrópole. Por vezes, a lente branca é também a dos soldados portugueses recrutados para combater na ‘guerra colonial’ / guerra de libertação de 1961-1974 em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, para quem esse recreio colonial se tornou uma arena militar complexa, simultaneamente mortífera e sensual, transformando muitos em perpetradores traumatizados enquanto politizava alguns (nomeadamente, os que derrubariam o regime do Estado Novo em 1974). 

Délio Jasse 'Jardim do Império' 2025Délio Jasse 'Jardim do Império' 2025

[vista de exposição, cortesia do artista e da Galeria Filomena Soares, Lisboa]

De seguida, Jasse reelabora as imagens de arquivo selecionadas, através de vários processos de experimentação visual e material, nomeadamente através de destaques formais e cromáticos, com os quais interrompe a narrativa visual colonial, redirecionando a atenção dos espectadores para pormenores da vida, da subjetividade e da agência negras que o enquadramento branco rejeitara como desmerecedoras do primeiro plano. O uso que Jasse faz de textos de arquivo sobrepostos e justapostos (por vezes retirados dos versos escritos das fotografias e dos postais de colonos e soldados, dos seus aerogramas e de outros documentos coloniais; outras vezes encontrados em fontes anticoloniais, pós-coloniais ou contemporâneas, como selos postais, carimbos de passaportes, revistas e jornais mais recentes) torna-se mais uma estratégia crítica para orientar a atenção dos espectadores para além do olhar e do enquadramento brancos originais. Ao sobrepor e justapor referências de arquivo visuais e textuais, Jasse cria opacidade, abstração e fragmentação palimpsésticas para perturbar as pretensões de transparência representacional e de objetividade epistémica dos documentos de arquivo coloniais e da fotografia documental, expondo criticamente a violência colonial ao mesmo tempo que tenta evitar a sua reencenação visual. Jasse sublinha a própria materialidade do arquivo colonial e da fotografia para revelar tanto o poder colonial operativo ao nível da representação, como as ansiedades ambivalentes que esse jogo de poder sintomaticamente evidencia. As intervenções artísticas de Jasse mostram como o arquivo colonial e a fotografia podem ser lidos criticamente através da criatividade inventiva, e até mesmo fictícia, para sugerir outras leituras possíveis e contra-hegemónicas (da mesma forma que se pode ler as poucas presenças negras no paraíso terrestre maioritariamente branco de Bosch para além do tropo protoprimitivista da luxúria exótica).

Sendo Jasse um angolano e português atualmente radicado em Itália, após muitos anos de luta lisboeta para aceder à cidadania plena e à nacionalidade portuguesa (finalmente obtida através do reconhecimento da sua ascendência portuguesa), o seu interesse pelas histórias coloniais e pelas suas continuidades diaspóricas, migratórias, pós-coloniais, globalizadas e contemporâneas é também uma questão profundamente pessoal. Tal interesse é motivado pela sua própria história individual, pela história dos seus antepassados familiares, e pelas histórias coletivas mais amplas das cidades, países e continentes onde nasceu e viveu: da sua Luanda natal às suas Lisboa e Milão adotivas, entre Angola, Portugal e Itália, África e Europa. Esta cartografia pessoal e coletiva multifacetada torna-se visível na obra de Jasse, que mais recentemente tem incluído referências às histórias frequentemente negligenciadas do colonialismo italiano na Líbia, na Eritreia, na Etiópia e na Somália e aos seus legados contemporâneos, assim como referências às histórias coloniais de outros contextos africanos de língua portuguesa como Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. 

No entanto, o trabalho mais recente de Jasse também reconhece como as histórias africanas pré-coloniais, coloniais, anti- e pós-coloniais foram sempre moldadas por cruzamentos de fronteiras, nomeadamente dada a imposição imperial da artificial cartografia estabelecida na Conferência de Berlim (1884-1885). Assim, Jasse inclui exemplos de arquivos que abrem a reflexão para as histórias do colonialismo francês na Argélia e do colonialismo belga na atual RDC (República Democrática do Congo, antigo Zaire), e para as circulações na África Austral entre Moçambique colonial e a África do Sul do apartheid, entre outras. Sem negligenciar as especificidades de cada contexto, Jasse considera como os vários projetos coloniais europeus partilharam o mesmo objetivo, pelo qual competiam, de aceder a todo o tipo de recursos para benefício económico das suas elites – uma realidade que, sendo agora impulsionada sob novas roupagens globalizadas por novos (a par dos mesmos velhos) agentes dos chamados progresso e desenvolvimento, está longe de ter terminado. 

 

De volta a Lisboa, o ‘Jardim do Império’ de Jasse também convida os espectadores locais e visitantes a reconhecerem a colonialidade que perdura na cidade, no país, no continente e para além dele. Em Lisboa, os antigos jardins imperiais (onde os espécimes botânicos extraídos de contextos coloniais foram guardados, estudados e apreciados, e onde o império foi publicitado e celebrado através de exposições coloniais que exibiram seres humanos) tornaram-se alguns dos pontos principais de uma economia baseada no turismo, sustentada por uma mão-de-obra precária que não consegue aceder a habitação digna. De facto, os jardins imperiais do capitalismo racial para deleite exclusivo têm sido sempre fechados, as suas fronteiras policiadas e a sua invasão punida, permitindo que a mão-de-obra explorada, da qual dependem, entre apenas pela porta traseira. Em comparação com outras nações coloniais europeias, Portugal veio a ocupar historicamente uma posição algo paradoxal enquanto potência colonizadora periférica e jardim subdesenvolvido (ou até primitivo) à beira-mar, pitorescamente apreciado pelo norte da Europa. Desde o fim da ditadura e do império em 1974-1975, os seus monumentais vestígios urbanos continuaram a alimentar a conceção de um passado colonial (comparativamente) benevolente a ser celebrado e, mais recentemente, a lógica gentrificadora de um intenso turismo de massas e de luxo. O ‘Jardim do Império’ de Jasse recorda-nos que, em vez de terem sido simplesmente desmanteladas, as velhas vedações foram, na realidade, substituídas por novos muros mais sofisticados e poderosos.

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por Ana Balona de Oliveira
Vou lá visitar | 25 Março 2025 | angola, arte contemporânea, colonialismo, Délio Jasse, o jardim imperial