“Fui angolana antes de ser portuguesa”, entrevista a Raquel Lima
Série Viver e escrever em trânsito entre Angola e Portugal (parte 1)
Filha de mãe angolana e pai são-tomense, Raquel Lima nasceu em 1983, na capital portuguesa, e cresceu na margem sul do Tejo onde se encontrou com a música, a poesia, o poetry slam e a arte urbana, encontrando-se também com a inscrição da diferença no seu corpo. Na impossibilidade de obter, antes da maioridade, a cidadania do país em que nasceu, foi construindo a sua identidade – angolana, portuguesa, diaspórica – primeiro pela da poesia oral e agora, depois de uma década de experiência no palco em festivais literários e de spoken word pela Europa e o mundo, por meio da palavra escrita. Assim, o seu livro de estreia, Ingenuidade Inocência Ignorância (2019), é também um audiolivro que contém um código para descarregar a faixa sonora. Além de poeta, performer e arte-educadora, Raquel Lima é doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde desenvolve a sua investigação sobre a oratura são-tomense.
Nesta entrevista, realizada em setembro de 2020, Raquel Lima conversa com Doris Wieser sobre o seu percurso, a construção da sua identidade diaspórica, bem como sobre o seu primeiro livro, que inaugura uma voz poética arguta, pulsante e lúdica.
Raquel, nasceste em Portugal e nunca foste a Angola, mas, pela história da tua família, Angola tem um papel importante na tua vida. Conta-nos um pouco do teu percurso.
Eu nasci em Lisboa, em 1983. A minha mãe é angolana, nasceu na Ilha de Luanda e chegou a Lisboa grávida de 8 meses de mim. Nasci em janeiro de 83, num hospital em São Sebastião da Pedreira. E passamos a viver na margem sul do Tejo, onde eu sempre estudei, onde eu tinha um circuito de amigos com quem brincava e escrevia aventuras. Então essa paixão pela escrita surgiu nessa altura, mas depois, quando eu fiz 18 anos, comecei a interessar-me também por encontros de poesia, então eu participava nos clubes literários e mais tarde eu conheci o poetry slam e o spoken word e comecei não só a participar, mas também a organizar eventos de poesia. Terminei o secundário na área de ciências, de científico natural. Depois tive uma incursão em farmácia, ciências da natureza, antropologia; e só mais tarde é que fiz a licenciatura em Estudos Artísticos/Artes Performativas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Cresci sempre com a minha mãe, crescemos a ouvir e a dançar música angolana, crescemos com muitas festas de família em que a comida e a história eram todas sobre Angola. Então é um território que faz parte de mim, apesar de que nunca estive em Angola. Sinto que uma boa percentagem da minha identidade e da minha subjetividade se encontra nesse lugar. Mesmo a questão linguística: eu cresci a ouvir a minha mãe a falar quimbundo, ela também fala umbundo. E depois algumas tias falavam quicongo. Então Angola faz parte da minha identidade.
E essa angolanidade esteve alguma vez em conflito com o facto de viveres em Portugal?
As questões de cidadania são interessantes. Fui angolana antes de ser portuguesa, apesar de ter nascido cá. Legalmente, fui angolana até aos 21 anos. Então costumo dizer que a minha primeira terra é o meu sangue, porque, na verdade, não havia uma lei da nacionalidade que me reconhecesse como portuguesa. E o ser angolana também teve várias consequências a nível de acessos, a nível de cidadania, porque estamos a falar da impossibilidade de ter algumas bolsas de estudo, de poder viajar sem ter um visto, para não falar da simples questão de ter um BI azul e os meus amigos terem um BI amarelo. Esse facto de ser angolana atravessou-me durante muitos anos.
Trouxeste também um documento. O que é?
É uma Autorização de Residência do tipo temporária. Lembra-me muito os percursos de renovação da residência, em que nós tínhamos que acordar muito cedo, às cinco da manhã, porque as filas do SEF eram enormes, para renovar o nosso documento oficial de identidade. E sempre foi um documento muito controverso para mim, porque ele é feito duma grande contradição: ele diz “Raquel Lima, nascida em Lisboa” e, mais abaixo, nacionalidade angolana. Isso diz muito sobre o que significa o processo de naturalização e o que significa mesmo todo o sistema jurídico e legal de Portugal com a sua herança colonial. É um objeto que me liga a Angola duma forma efetiva, porque de facto eu passo a ter uma nacionalidade dum país que eu desconheço fisicamente.
Em relação à minha família, este documento também mostra uma certa ausência, porque o meu pai é de São Tomé e Príncipe, e a impossibilidade de eu fazer o meu processo de naturalização mais cedo deveu-se ao facto de ele não estar presente. Eu tive que fazer 18 anos, para, enquanto maior de idade, poder fazer o processo de naturalização, que, por sua vez, demorou três anos. Aos 21 anos tive o meu primeiro bilhete de identidade português. Então este documento também fala muito sobre uma família monoparental, sobre raízes que eu não conheço e que é uma coisa que também está presente na minha escrita, essa procura das raízes, essas gavetas que nós abrimos e nas quais encontramos objetos que depois ganham significados para além deles próprios.
O que significa o conceito identidade nacional para ti?
Penso realmente que é muito importante considerarmos esse pluralismo das identidades nacionais. E penso muito na própria ideia de nação se for de um ponto de vista fronteiriço, tal como conhecemos hoje, que tem a ver com superfícies, linhas e pontos que foram politicamente impostos. Acho que estamos a falar de uma construção extremamente violenta. Acima de tudo, quando olhamos para o continente africano ou, concretamente, para um país como Angola, estamos a considerar fronteiras impostas desde uma Conferência de Berlim, de uma forma geométrica, quadrada, e que não considera uma série de relações étnicas, relações tribais, relações de movimento e a própria relação de fronteiras que não sejam ontologicamente eurocêntricas. E a mim o que me parece é que quando pensamos em fronteiras coloniais, isso é interessante do ponto de vista da organização, porque os países têm, ao fim e ao cabo, de seguir uma constituição, seguir uma série de normas e leis para que o povo tenha o mínimo de direitos e de cidadania. Mas, ao mesmo tempo, é preciso considerar essa permeabilidade das fronteiras.
Então tenho algumas tensões sobre esse conceito, não só porque ele é construído através dum processo violento de destituição cultural, muitas vezes. Estou a pensar em manifestações culturais que estão no centro da identidade nacional de determinados países, como o tango: muitas pessoas não sabem que é uma palavra que vem do quicongo, do norte de Angola, e que só chega à Argentina graças à escravatura e aos rituais de matriz africana que aconteciam nessa região. Então as identidades nacionais são feitas de apropriações, de manifestações, de epistemicídios e, para mim, acabam por ser muito mais complexas do que aquilo que entendemos como Estados-nação e fronteiras de Estados-nação.
Acho que a minha identidade é muito separada da minha cidadania. Por um lado, eu preciso de reivindicar a minha portugalidade, duma forma efetiva, através dum processo de naturalização; duma forma mais subjetiva, usando filigranas, por exemplo, para dizer que “a casa é nossa”1 e que nós fazemos parte desse território. Mas isso tem a ver com a minha cidadania do ponto de vista concreto e objetivo. A minha identidade eu acho que é outra coisa, eu acho que é uma coisa bem mais subjetiva, singular e que não se define através de fronteiras físicas concretas.
Dirias que as identidades nacionais estão em crise? Onde te situas no meio destas crises?
A questão da crise de identidade nacional tem muito a ver com uma dificuldade que sentimos, dentro das próprias nações, em lidar com a diversidade de pessoas que habitam os territórios. E quando eu falo em uma crise de identidade nacional, neste caso, em Portugal, tem a ver com muitas das matrizes que estão na fundação dessa identidade: vamos pegar, por exemplo, o fado, que tem uma grande influência africana e cigana, tal como o flamenco… parece-me que a própria ideia partilhada dessa identidade não reconhece, na sua origem, quais são as influências que constroem essa identidade. E, quando pensamos nessa questão que nos atravessa ultimamente muito, que é ser negro em Portugal – no meu caso concreto, ser mulher negra em Portugal –, estamos a falar de um constante apagamento e silenciamento daquilo que é a produção não só cultural, mas também científica que essas mulheres realizam. Então nós, enquanto pessoas da diáspora africana, temos esse papel duplo, também, de revisitar a memória, de reconstruir as nossas histórias, de reconsiderar outras mulheres que fizeram parte deste panorama nacional e que contribuíram imenso para aquilo que é Portugal hoje. E parece-me que é uma luta muito legítima, mas que acaba por ser desgastante. Para mim, ser mulher negra em Portugal implica fazer esse trabalho de procurar referências, procurar influências, aquelas que não nos são demonstradas e oferecidas durante o nosso processo de crescimento. É esse trabalho também de perceber como é que nós conseguimos ocupar esse lugar, não só na literatura: nas artes, nas ciências, na política. Então acho que ser mulher negra em Portugal, neste momento histórico, implica essa responsabilidade de estarmos numa constante negociação sobre os espaços que ocupamos, as parcerias que fazemos ou com quem colaboramos. E, nesse sentido, há um processo de apagamento que nós próprias temos que fazer, ou de desaprendizagem, de uma série de referências que nos foram dadas como normas, como padrões e como cânones: cânones literários, cânones artísticos etc.
Na tua poesia deteto um sujeito lírico que tem dificuldade em identificar-se com Portugal, por exemplo no poema “ser poeta é ser mais baixo”. A que se deve essa dificuldade?
O poema “ser poeta é ser mais baixo”, onde eu digo que ser poeta “é estar cansado de representar Portugal / e viver dentro das suas margens”, tem a ver com eu ter ganho o prémio nacional de poetry slam. E, consequentemente, eu fui representar Portugal a vários países. A minha resistência e a minha tensão têm a ver com eu de repente ter que responder a uma expetativa do que é ser poeta portuguesa. E aí eu sinto que não só uma grande parte da minha identidade é posta de lado, é retirada, como eu tenho que levar comigo toda essa bagagem da portugalidade.
No poema “planeta áfrica” há versos que dizem “gostaria que África (…) / fosse um planeta em vez de um continente”. É a expressão do desejo de um lugar mais proeminente no mundo para o continente africano?
O poema “planeta áfrica” tem a ver com eu ver-me numa diáspora africana sem conhecer o território africano. Eu tive uma experiência, em 2013, de residência em São Tomé e Príncipe, que é o país do meu pai. Foi o único país africano em que eu estive. E… a ideia da África é muito romantizada, não é? E nós acabamos por criar uma ilusão sobre o que isso pode significar para nós em termos de lugar, eu não diria perfeito, mas de lugar original. E, quando pensamos em todo o processo neocolonial e a forma como esse corpo-território é explorado e é violado e é roubado, dá-me essa ansiedade de fuga, que tem a ver também com a minha procura dum lugar que eu desconheço e que não é só um continente. Então tem a ver com dilemas de viver na diáspora e de ser mulher negra na Europa.
Alguns dos teus poemas expressam preocupações sociais, por exemplo “retratos”, com a cabo-verdiana Dona Jasmim. É uma preocupação central do teu projeto artístico?
Eu cresci na margem sul do Tejo. Então a própria ideia de periferia foi uma coisa que nós fomos percebendo no corpo: a cada vez que eu tivesse que ir trabalhar ou estudar, eu tinha que aguardar pelo autocarro, fazer uma imensa travessia, apanhar um barco de oito minutos para chegar à capital ou ao centro – o centro cultural, epistemológico. A periferia enquanto espaço de existência foi se construindo em mim e com todas as modalidades artísticas que isso implica. Os “retratos” falam sobre precariedade, falam sobre a dependência de drogas, falam sobre alcoolismo, falam sobre exploração infantil e falam sobre a Dona Jasmim, que é esta senhora que estaria muito tempo em Portugal já e que, por isso, o “ser portuguesa com certeza”, para trazer um pouco esta música da Amália Rodrigues, mas também para dizer que ela passa a habitar dois lugares em simultâneo: esse Portugal e esse território de Cabo Verde, que é donde ela viria.
Três dos teus poemas parecem ser entradas de dicionários que definem as três palavras que dão título ao livro. Nota-se uma preocupação linguística, uma busca dos traços semânticos das palavras, um questionamento da polissemia das palavras e da fala… Trata-se de uma tentativa de descolonizar a língua?
Eu acho que sim, sempre me preocupei muito com a questão da descolonização da língua e da linguagem, com o que é que nós podemos fazer enquanto autores, trabalhando com essa matéria, para perceber como é que a língua oprime e liberta, como é que voltar a olhar para a língua, na sua relação colonial, como é que isso nos vai ajudar a perceber como o sistema está montado etc. Eu não fiz isso duma forma muito programática.
O livro está organizado em três partes: cada parte corresponde a uma das palavras do título; e começa com uma definição que fez o mapeamento dos vários significados possíveis, não só dum dicionário, mas de diversos dicionários, uns mais antigos, outros mais contemporâneos. E há várias coisas que me surpreenderam, por exemplo, em “ingenuidade”, uma das definições é: “condição de pessoa que nasceu livre, que nunca foi escrava”. Então temos aqui toda a dimensão colonial e como é que uma pessoa ingênua consegue autodeterminar essa ingenuidade se uma pessoa escravizada não está na sua condição natural, ou seja, como é que a própria língua legitima uma série de diferenças sociais e diferenças de vida.
A oralidade é um elemento essencial do teu projeto literário. A teu ver, o que acrescentam a encenação e a declamação ao poema?
Como eu venho de um percurso muito ligado à performance e ao spoken word, percebi que o corpo tem um papel na poesia, tem um papel de coreografar o que as palavras estão a dizer, tem o papel de tornar flagrante a nossa hesitação, a nossa respiração, a nossa insegurança. Acho que a voz é uma marca que nos deixa completamente vulneráveis perante o público ou, neste caso, o leitor, por trazer camadas de memórias, de traumas, de vícios, de muletas orais. Quando decidi fazer o livro, tinha que ter essa componente da oralidade e, mais do que a oralidade, da oratura mesmo. Então tive que encontrar uma editora de audiolivros, que é a Boca, e tive que encontrar também uma editora que tivesse uma preocupação especial com a estética do livro, com a questão da impressão, da serigrafia etc, a Animal Sentimental. E tive que encontrar uma pessoa que pudesse dialogar comigo nessa construção oral, neste caso, um músico, Yaw Tembe, para também conseguirmos fazer um objeto que fosse completo.
Ainda na questão da oralidade e da oratura: acho que também há outra responsabilidade de os artistas em geral reivindicarem o lugar do corpo nas artes, nas fases em que nós estamos cada vez mais a desconsiderar o que é um corpo, um corpo que morre de COVID-19, um corpo que morre no Mediterrâneo… nós começamos a falar muito em números e parece que o corpo perde o seu significado e o seu respeito. Nesse sentido, acho que é diferente uma pessoa ler um poema e outra coisa é ouvir quem escreveu o poema, ouvir esse corpo. Por fim, faço um bocado uma reivindicação na introdução do livro sobre a poética do corpo presente, em que estou a falar disto mesmo: sobre a necessidade de existir um corpo para além dos arquivos, para além dos livros e que seja presente.
Esta entrevista é a primeira de uma série de entrevistas com escritores/as que transitam entre Angola e Portugal. Pertencendo a diferentes gerações, tornam-se testemunhas das relações culturais e políticas entre estes países, e da herança do colonialismo que os une e os separa. A série faz parte do projeto “Identidades Nacionais em Diálogo: Construções de Identidades Políticas e Literárias em Portugal, Angola e Moçambique (1961-presente)”, coordenado por Doris Wieser, financiado pela FCT e sediado no Centro de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
29 de setembro de 2020, transcrição e edição de vídeo: Paulo Geovane e Silva.
- 1. “A casa é nossa”: em referência ao espetáculo Aurora Negra.