Aprender a Desaprender: Diálogos para a Descolonização da Arquitetura

O livro “Aprender a Desaprender – Diálogos para a descolonização da arquitetura” publicado conjuntamente pela Dafne Editora e INSTITUTO, é apresentado no dia 12 de Setembro, quinta-feira, pelas 18h30,  no Hangar, em Lisboa. O evento conta com uma Introdução por Paulo Moreira (editor da publicação) e André Tavares (Dafne Editora); e uma conversa entre Ana Balona de Oliveira (IHA / NOVA-FCSH), Marta Lança (Buala) e Yolana lemos (CITAD, Banga Colectivo). Este é um dos 45 projetos apoiados pelo programa «Arte pela Democracia», uma iniciativa da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril em parceria com a Direção-Geral das Artes.

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Lançamento do livro Aprender a Desaprender, 13 de Junho 2024, no INSTITUTOLançamento do livro Aprender a Desaprender, 13 de Junho 2024, no INSTITUTO

Não tenho formação em arquitetura e as minhas dificuldades com as questões levantadas pela inevitabilidade de ocupar espaço têm sido resolvidas ao longo do tempo de forma mais ou menos espontânea e, as mais das vezes, irrefletida. Porém, também eu - à semelhança da maioria dos intervenientes neste livro - tenho passado grande parte da vida adulta a tentar aprender a desaprender. Aprender a desaprender o que me ensinaram na Escola, mas também, e em grande medida, o que assimilei de modo informal e inconsciente, através das múltiplas influências que me moldaram; isto significa, desaprender quase todas as coisas que chegaram até mim como naturais e que não são mais do que a ideologia vigente. Chamamos a isto descolonizar. Descolonizar a nossa relação com o espaço parece-me especialmente urgente, porque a posse da terra e, para esse efeito o seu mapeamento - que dá origem precisamente a toda uma construção da nossa relação com o espaço -, constituiu o primeiro grande gesto colonial e a manutenção dessa relação está no cerne do próprio colonialismo.

Não é por acaso que Paulo Moreira abre a introdução destes Diálogos para a Descolonização da Arquitetura com uma pequena piada sobre a sua posição “de cabeça para baixo” no momento em que escreve, por se encontrar na África do Sul. Não sei se existem coincidências, mas foi ao ser confrontada por um mapa australiano que questionava justamente essa ideia de mundo “ao contrário” de que fala Moreira, que me comprometi a, doravente, inverter de cabeça para baixo o mundo criado pelo colonialismo. Foi há muitos anos que fiz esta espécie de pacto com aquele mapa-mundo e encontro-me ainda amiúde a braços com dilemas de perspetiva. 

Aprender a Desaprender, Dafne Editora, 2024. Fotografias Barbara Gocníková / INSTITUTOAprender a Desaprender, Dafne Editora, 2024. Fotografias Barbara Gocníková / INSTITUTO

Esclarecida a minha proximidade ao tema da obra, quero começar por destacar a importância da Introdução feita por Paulo Moreira, o coordenador e ideólogo do projeto deste livro. Penso aliás que nenhuma apresentação de Aprender a Desaprender: Diálogos para a Descolonização da Arquitetura fará melhor – ou sequer tão bem - o que a Introdução de Moreira faz. Isto porque, com uma prosa simples e elegante, Paulo Moreira, não só nos apresenta o propósito do livro (já lá irei), como nos conduz através do seu percurso, enquanto arquiteto comprometido com as questões da descolonização da arquitetura, para compreendermos como nasce o livro e como tem acontecido o “aprender a desaprender” do coordenador da obra: os anos de formação em arquitetura; o trabalho em ateliers prestigiados, porém tradicionais em muitos aspetos, depreende-se; a ida para Londres; o interesse por Luanda e como este nasce; a formação do INSTITUTO enquanto extensão do seu próprio gabinete de arquitetura; as residências artísticas com criadores africanos; e o Arquiteturas Film Festival. Compreender o percurso de Paulo Moreira e do INSTITUTO é importante para percebermos que este trabalho tem uma continuidade, que há um comprometimento no tempo com as questões aqui pensadas, e um interesse que se fortalece a cada projeto. Este aspeto reveste-se de particular importância num tempo em que as palavras decolonial (que em português não quer dizer nada, porque nada quer dizer o prefixo ‘de’), descolonizar e reparações, entre algumas outras, são cada vez mais esvaziadas de significante político e a própria ideia de aprender a desaprender tem feito o seu caminho e chegará em breve a muitos títulos.

Tal como o subtítulo Diálogos para a Descolonização da Arquitetura indica, o livro consiste num conjunto de conversas. É importante serem várias conversas, ou várias vozes de diferentes latitudes, porque se evita o risco de tentar uma teoria única pós-colonial da arquitetura. E também porque os livros de conversas permitem-nos enquanto leitores uma relação muito livre com o objeto livro. Independentemente da lógica que o organizador seguiu, podemos começar por ler a última entrevista, porque conhecemos um dos conversadores e queremos saber o que diz, ou começar pelo meio porque um dos intervenientes nasceu no mesmo sítio que nós, ou começar por uma conversa desenvolvida entre artistas que não são arquitetas, mas têm um pensamento sobre o espaço, etc. Podemos até nem ler todas as conversas na mesma altura… Ler um livro de conversas é um processo muito livre e traçado na própria relação com a obra, na medida em que os livros de conversas são livros sem pré-requisitos entre capítulos.

Contudo, apesar de ser ‘apenas’ um livro de conversas, não o tomemos como pouco ambicioso. O projeto anunciado é o de ajudar a perceber “Como é que o campo disciplinar da arquitetura pode oferecer abordagens para a descolonização do presente? Que métodos podemos empregar para posicionar a arquitetura no debate sobre a descolonização? E, pensando numa pedagogia transformadora, como podemos re-imaginar instituições ligadas à arquitetura, e as suas formas de operação?” (pág. 7-8). A obra articula assim, pensamento, praxis e pedagogia, uma vez que responder a estas três perguntas significaria apresentar as filosofias ou o pensamento decolonial na arquitetura, depois, descrever os métodos para aplicar os referidos princípios filosóficos e também explicar qual a sua pertinência política e finalmente caracterizar modos e instituições adequados para ir transmitindo tudo isto às futuras gerações de arquitetos.

Banga Colectivo, Quadros, Chapéus e BotasBanga Colectivo, Quadros, Chapéus e Botas

Cada capítulo do livro é, portanto, uma conversa que pode parecer-se mesmo com aquilo a que vulgarmente chamamos uma conversa, ou aproximar-se mais do formato entrevista, ou ainda de um exercício conjunto de reflexão a partir de uma experiência comum. Transversal a todas as conversas ou a uma larga maioria delas a ideia de desaprender o fazer de arquitetura transmitido na escola; uma necessidade de dar visibilidade ou mesmo de reaprender técnicas e processos que foram desprezados e esquecidos por via do eurocentrismo; e ainda preocupações políticas muito evidentes, que colocam as questões de género, de raça e de classe como problemas que dizem respeito à arquitetura e a par destas, talvez menos surpreendente para quem não estudou arquitetura, as preocupações climáticas. Todas estas preocupações ou ideias transversais, podem aparecer ligadas à criação ou ao ensino.

Cartografia Negra, Rosário, 2 tempos, 2018Cartografia Negra, Rosário, 2 tempos, 2018

O livro abre com uma conversa entre Ibiye Camp e Margarida Waco que acontece na intersecção da arquitetura, teoria crítica e os Black Studies para refletir sobre matéria, forma, toxicidade e a influência de conjunturas políticas e também da tecnologia no que somos. Luísa Santos entrevista Mónica de Miranda - que não é arquiteta, mas sim uma artista visual com uma relação especial com o espaço - e falam sobre a forma como a arquitetura pode influenciar e ser influenciada pela arte, através de uma reflexão sobre algumas obras de Mónica de Miranda e sobre o seu processo criativo. O capítulo seguinte é protagonizado pelos coletivos Banga Colectivo e Cartografia Negra, que pensam a arquitetura, a arte e o urbanismo partindo de questões políticas, questionando heranças do colonialismo, sempre com uma perspetiva afrocentrada que, de certa forma, provincializa a europa. Depois, Natache Iilonga e Thaís Andrade percorrem as ruas do Porto e percebem a presença nesta cidade de muitos problemas que julgavam exclusivos do Sul – concretamente da Namíbia e de Cabo-Verde. Esta conversa é especialmente interessante, porque percebemos a forma como as autoras reinterpretam a história que julgavam conhecer, o que nos permite enquanto leitores, estabelecer a ligação com a reflexão feita mais adiante, na conversa, sobre as fronteiras e sobre a forma como estas acabam por funcionar, muitas vezes, contra a sua própria ontologia de separação. Aparece em seguida um dos capítulos mais intensos do livro, trata-se da entrevista de Lara I. C. Ferreira a Gabriela Leandro Pereira (AKA Gaia) que dialogam sobre a forma como o contexto cultural pode mediar a pesquisa e o exercício da arquitetura, ou seja, uma conversa muito política. Uma conversa/entrevista que parte da obra de Gaia, que por sua vez é baseada numa realidade autobiográfica e familiar determinada pelo classismo e pela racialização partindo daí para a arquitetura e não o contrário. O livro fecha com uma entrevista de Paulo Moreira a Demas Nwoko (Leão de Ouro, na Bienal de Arquitetura de Veneza 2023 – esta Bienal também é muito transversal ao livro), com a presença de Anyibofu Nwoko Ugbodaga (Bofu, filha de Demas), sobre o ensino da arquitetura e da sua intersecção com a arte, concretamente através do projeto New Culture Studios, a escola pensada, em grande medida, por Demas Nwoko.

Demas Nwoko, New Culture Studios, ala residencial. Oremeji, Ibadan, Nigéria, 1967– em curso. Fotografia Andrew AsieboDemas Nwoko, New Culture Studios, ala residencial. Oremeji, Ibadan, Nigéria, 1967– em curso. Fotografia Andrew Asiebo

São conversas internacionais, não só porque quem conversa tem origens em diferentes geografias, como já referi, mas porque todas as pessoas participantes partilham uma condição entre-lugar. Essa condição diaspórica, ou em trânsito influencia, claro está, a forma de pensar e de produzir. Se este livro tivesse uma tese, seria a de que as pessoas que desenvolvem um olhar oposicional (bell hooks é muitas vezes citada, por razões diferentes) tendencialmente criam também formas de pensar e de fazer diferentes daquelas que já estão acessíveis no mercado das aprendizagens. É um processo a que poderíamos chamar auto-reparação, ou de restituição da interioridade usurpada, para citar Djaimilia Pereira de Almeida (2024). Esta restituição da interioridade usurpada pelo colonialismo, segundo a autora, apenas pode ser levada a cabo pelos espoliados e tem na arte um local privilegiado de desenvolvimento. 

 

Almeida, Djaimilia Pereira de. 2014. O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo. Lisboa: Companhia de Letras.

hooks, bell. 2023. Cinema Vivido: raça, classe e sexo nas telas. São Paulo: Elefante.

por Ana Cristina Pereira (AKA Kitty Furtado)
Cidade | 10 Agosto 2024 | arquitetura, arte, auto-reparação, descolonização, diáspora, instituto, Paulo Moreira