Carta de Berlim: Restitutions Art Lab

Então e o Chibinda Ilunga no Museu de Etnologia de Lisboa?

E as pedras tumulares Mbali roubadas do Namibe?

E o Nkissi Nkondi que está na Sociedade de Geografia de Lisboa?

Dito de outro modo: e quanto aos portugueses, e quanto ao que nós fizemos?


O debate sobre as restituições em Portugal continua praticamente inexistente. Quase emergiu em 2020 quando a ex-deputada Joacine Katar Moreira submeteu uma Proposta de Alteração ao Orçamento do Estado de 2020 para a constituição de uma comissão de especialistas cuja tarefa seria listar os objetos roubados ou “adquiridos” em contexto colonial. Face a esta simples proposição – a de um comissão – logo uma série de argumentos escabrosos saltaram para as páginas dos jornais e inundaram redes sociais: “esse é um debate importado, que não faz sentido em Portugal”, “não há pedidos de restituição”, “e então e os objetos portugueses, como a xorca de Sintra, no British Museum?”.  

A discussão, no espaço público português, ficou por aqui, enquanto que em países como a Alemanha, a Bélgica e a França tem dado frutos, nomeadamente manifestada em devoluções concretas.

Alguns daqueles não-argumentos – no sentido em que apenas pretendem acabar com a discussão – integraram um segmento cómico da performance-ensaio Restitution Art Lab Berlin, de Jens Vilela Neumann, o diretor artístico da companhia teatral Paradise Garden, em que tivemos oportunidade de participar nos dias 17 e 18 de junho, no Volksbühne – o “teatro do povo”, construído pelo povo para o povo, na Praça Rosa de Luxemburgo, e onde trabalharam, entre muitos outros, Bertold Brecht e Heiner Müller.

Trata-se de uma produção que envolveu académicos, artistas, ativistas e músicos angolanos, alemães, camaroneses, holandeses, moçambicanos e suíços com diferentes aproximações à questão das restituições, aproximações essas que resultam não só dos percursos individuais dos participantes, mas também dos contextos nacionais e das histórias coloniais de cada país envolvido. Durante cerca de 8 meses, as reflexões e propostas teóricas e performativas foram sendo desenvolvidas à distância e coordenadas pelo diretor da companhia. Finalmente, entre os dias 12 e 18 de junho encontrámo-nos em Berlim e construímos um objeto cénico-performativo coletivo.

A questão das restituições não está apenas, nem sobretudo, ligada à necessidade de devolver objetos adquiridos de forma quando não ilegal, pelo menos injusta (a impossibilidade de justiça nestas trocas decorre das assimetrias de poder inerentes ao sistema colonial). Pensar sobre restituições é pensar sobre o passado colonial, mas também sobre a forma como a colonialidade está presente hoje, nas malhas com que tecemos as nossas relações sociais e políticas. Iniciar o processo de restituição é, acima de tudo, implicar-se num processo mais abrangente de reparação, que é sempre também de autorreparação. Por isso, devemos pensar a questão das restituições não como uma ameaça, mas como uma oportunidade.

Foi aliás a partir deste pressuposto que integrámos esta performance, com três “quadros”, o primeiro deles baseado em textos pessoais (“O direito a não ser uma perpetuadora” e “Viagem a Bafatá, terra de Amílcar Cabral”). Tal quadro encapsulou o “lugar de fala” de cada uma e desvelou as razões pelas quais nós estamos engajadas com as reparações no seu todo e as restituições em particular.    

No Restitutions Art Lab de Berlim, houve dois objetos centrais para o desenvolvimento da dramaturgia. Ambos os objetos estão expostos no Humboldt Forum, em Berlim.

A estátua de Ngonnso – a mãe dos Nso, etnia dos Camarões. Uma mulher sentada, portadora de uma taça que se confunde com o próprio ventre, apresenta-se coberta por búzios. Em Kumbo, Ngonnso é considerada a imagem ou a personificação da ancestral fundadora da etnia Nso. A estátua foi para Berlim, em 1902, em circunstâncias que não são claras. Sylvie Njobati, a pedido do seu avô, iniciou uma longa batalha pela restituição de Ngonnso aos Camarões. Hoje, o desejo de celebrar o ‘dia da mãe’ na presença de Ngonnso é muito transversal na sociedade camaronesa. No passado dia 27 de junho, já depois da performance, o Conselho da Fundação para o Património Cultural Alemão, autorizou a sua restituição. A estátua, sagrada para os Nso, deverá agora passar por um processo de purificação.

NgonsoNgonsoE a estátua de Chibinda Ilunga – um príncipe da etnia Luba, de uma região que é hoje parte da República Democrática do Congo, nos anos de 1600, casou com a rainha Lueji da etnia Lunda, de uma região que atualmente faz parte de Angola. O casamento foi bem aceite, mas quando a rainha Lueji transferiu o seu poder para o marido, alguns Lunda não reconheceram Chibinda Ilunga como seu rei. Da separação nasceram os Chokwé, que hoje habitam em Angola, RDC, Zâmbia e Moçambique. Chibinda Ilunga é muito lembrado pelos Chokwé como real ancestral, civilizador que mudou a vida política e social daquele povo. Estátuas de Chibinda Ilunga são produzidas até hoje, e o modelo é usado para a formação de novos escultores. O exemplar que está em Berlim é, juntamente com o de Lisboa, um dos melhores exemplares e faz parte de um conjunto de objetos que, sob a iniciativa do Goethe-Institut Angola, do Museu Nacional de Antropologia de Luanda e do Museu Etnológico de Berlim, integra uma parceria que desde 2018 pretende reativar as importantes coleções de Angola nas duas cidades para o público e desenvolver pesquisa conjunta. Não há ainda projeto para a sua restituição.

Por outro lado, o devir arte de “objetos” que não o eram necessariamente à partida obedece ao longo processo descrito por Nicholas Mirzoeff como de classificação, separação e estetização, que estabelece a “visualidade” enquanto prática discursiva com efeitos materiais concretos (2011). Assim, a presença desses mesmos objetos nos museus europeus, faz parte de um longa história de apropriação, mas que pode, nos nossos dias, sustentar uma lógica de abertura de fronteiras e de convivência intercultural. Enquanto provas de um grande crime, os objetos africanos nos museus europeus, são o passaporte e o visto de todos quantos chegam à Europa ou que nela habitam há muitos anos, tal como avançou Ariella Aisha Azoulay (2019).  

ChibindaChibindaParticiparam no Restitutions Art Lab de Berlim:

Ana Lucão (ativista, bailarina e poeta – Alemanha/Angola); Aline Frazão (cantora e compositora – Angola); Àlvaro José Sánchez Rosero (ator – Alemanha/Colômbia); Christine Wünsch (atriz – Alemanha); Inês Beleza Barreiros (Historiadora de arte – Portugal); Jens Vilela Neumann (ator e encenador – Alemanha); Juvenil Assomo (poeta e dramaturgo – Camarões); Kitty Furtado (académica e ativista – Portugal);  Landry Nguetsa (ator e encenador – Camarões); Luka Mukhavele (músico – Moçambique); Melwin Funk (cenógrafo – Suíça); Mystha Mandersloot (diretora de cena – Países Baixos); Philipp v. Rothkirch (músico – Alemanha); Robert Rickli (artista plástico – Alemanha); Sylvie Njobati (ativista e artista multimédia - Camarões); Tila Likunzi (curadora de arte – Angola/Alemanha).

por Inês Beleza Barreiros e Ana Cristina Pereira (AKA Kitty Furtado)
Jogos Sem Fronteiras | 30 Junho 2022 | british museum, carta de berlim, Portugal, pos-colonialismo, restituição património, Restitutions Art Lab