O Presépio doméstico português: a dialética, o palimpsesto e a história
Não há imagem mais dialética e palimpséstica do que a do Presépio doméstico português, no sentido que Walter Benjamin explorou: uma montagem de elementos irreconciliáveis, formando uma constelação de significados que liga o presente ao passado e, nisso, libertando a história. Estamos em Belém da Palestina, onde Jesus nasceu (e onde hoje morre todos os dias), ou numa qualquer aldeia do interior de Portugal?
Na verdade, no Presépio doméstico português, a plêiade de diferentes personagens, arquiteturas e paisagens coexistem numa montagem não só dialética – entre o sagrado e o profano, o erudito e o popular, o exuberante e o espartano, o solene e o lúdico –, mas também palimpséstica, em que distintas temporalidades se vão acomodando: os antigos palestinianos atravessam os mesmos caminhos que pastores, lavadeiras e pescadores da década de 1940 (e não por acaso desta década, já lá vamos!); as casas da aldeia evocam a arquitetura tradicional portuguesa e há até uma igreja católica com uma torre sineira e um padre de batina, que integra o cortejo para ver Jesus-menino, apesar do advento do Cristianismo estar a decorrer nesse exato momento em que o estamos a ver; um soldado inglês da Primeira Guerra Mundial faz a segurança na porta do castelo de Herodes, rei da Judeia, sendo tão alto quanto o próprio castelo, que é, por sua vez, medieval! A perspetiva renascentista não tem lugar no presépio doméstico português, daí que personagens, animais, casas e árvores “flutuem” à mesma escala como que numa pintura pré-Giotto.
Trata-se de um teatro de “gestos suspensos” (como Benjamin descreveria os globos de neve): a lavadeira lavando roupa no rio, a mulher que carrega um galo na cabeça, a outra que leva uma abóbora, o pastor que pastoreia, o seu cão rindo e a ovelha atónita atrás dele, o moleiro com o seu burrinho carregando a farinha colina abaixo para o padeiro na aldeia cozer o pão, os patos que deslizam no papel prata, o homem que vai buscar água à fonte, os músicos do século XVIII tocando sanfona, às vezes, com sorte, a mulher que fia e o ceguinho que pede esmola… O clima é de festa processional em direção à manjedoura onde está Jesus-menino com os seus pais, Maria e José, que o olham embevecidos, e a vaca e o burro que, sorrindo, o aquecem. Há comunhão de classes e há anjos andrógenos em cima da manjedoura. Há porcos e galinhas, burros, cavalos e camelos e, às vezes, até elefantes. Na retaguarda, em montes feitos de papel de jornal, cortiça e musgo, o castelo, o moinho e o rebanho. Cá em baixo a aldeia, o poço, a fonte, a ponte sobre o rio, a comitiva solene dos Reis Magos, talvez astrónomos: Belchior, Gaspar e Baltazar. Ouro, incenso e mirra. E embora a neve seja rara na Palestina e em Portugal, a montagem do Presépio doméstico português nunca está concluída sem lhe conferir aquele alvo acabamento…
Na infância, esse tipo de “incongruências” temporais e espaciais, os “problemas” de perspetiva, incomodavam-me, imbuída que estava dos estritos códigos da visualidade renascentista, que colonizaria o imaginário ocidental para sempre. Isso, no entanto, parecia não incomodar o meu avô Joaquim, com quem construí muitos e sofisticados presépios, com ele colhendo o musgo na mata e a areia na praia para fazer os caminhos que algumas destas mesmas figurinhas haviam de atravessar. Foi ele que me transmitiu, como tantos avôs e tantas avós por esse país fora, o encanto do Presépio, precisamente pela sua dialética e o seu palimpsesto, qualidades que só muito mais tarde eu viria a apreciar e a compreender.
Após a morte do meu avô, em 1999, durante muitos anos não montei o Presépio. Até que um dia retomei, estabelecendo as minhas próprias tradições, que são também políticas: passei a colocar Baltazar, o Rei Mago negro, à frente de Belchior e Gaspar; adicionei a personagem do Presépio catalão, o escatológico el caganer, como amuleto para uma boa colheita; e intensifiquei a presença de animais de todo o tipo. Apesar das minhas inovações, mantive uma instalação elétrica com uma pequena lâmpada vermelha improvisada pelo meu avô para fazer de lareira da manjedoura. Todos os anos, ao montar o presépio, receio que a precária instalação elétrica não funcione, mas ela funciona sempre – querido avô – para que “o menino Jesus não passe frio”…
Breve história do Presépio
Reza a lenda que São Francisco de Assis foi quem primeiro montou um presépio vivo na noite de Natal de 1223 dentro de uma gruta num bosque nas imediações de Greccio, em Itália, com a devida autorização papal. Durante a celebração, Cristo terá aparecido ao dito Santo e Giotto (c. 1267-1337) havia de registar tal aparição num dos mais belos frescos da Basílica de Assis, para sempre memorializando essa primordial Natividade como uma das principais cenas da vida de S. Francisco. A tradição é, no entanto, anterior: pelo menos desde o século IV que a Natividade foi sendo representada em relevos e pinturas afresco e depois, ao longo de toda a Idade Média, em túmulos, retábulos e até mesmo capitéis, como afirmou Diogo de Macedo em Presépios Portugueses. Na Flandres e na Itália do século XV há notícia de ser cultivado e é então que terá entrado em Portugal. Mas será no século seguinte que o vamos começar a encontrar nos conventos e mosteiros, chegando mesmo, via colonização, ao Brasil, e, através da ordem franciscana, sua criadora e principal difusora na Europa desde o século XIII, a Oriente.
Será preciso esperar pelo século XVII para que o Presépio ganhe autonomia e para o encontrar nas igrejas e nas casas particulares. O seu apogeu artístico dá-se no século XVIII, sobretudo devido à atividade de escultores como António Ferreira (c. 1700-1750), Machado de Castro (1731-1822) e Barros Laborão (1762-1820), que lhe conferem monumentalidade e o representam como “grande teatro do mundo”. Podem encontrar-se magníficos exemplares no Museu Nacional de Arte Antiga (como o dos Marqueses de Belas), na Basílica da Estrela e na Igreja das Mercês, todos visitáveis, dentro das suas espetaculares maquinetas-oratório, com as suas cenografias complexas feitas de cortiça, musgo, espelhos, flores e conchinhas, e os seus céus em trompe-l’oeil, com astros, anjos e até cegonhas, da autoria de pintores célebres, como Pedro Alexandrino (1729-1810). Nestas representações destaca-se o exótico, triunfal e sinuoso cortejo dos Reis Magos, bem ao jeito barroco, que vai descendo até à gruta onde o rei-menino é adorado por José e Maria e os pastores. Em quadros escalonados ao longo da composição o povo é representado em diversas etapas da vida: crianças, jovens, adultos e velhos, nos seus gestos de trabalho quotidiano ou em ambiente de grande festa e até algazarra.
Objeto “transgénero”, expressão feliz de Nuno Saldanha em “Naturalismo e Presépios”, o presépio português do século XVIII tem clara influência napolitana. Mas enquanto que, ensina-nos o especialista Alexandre Nobre Pais em “A Tradição dos Presépios”, os presépios napolitanos são de roca (com vestidinhos de seda, cetim ou brocado), os portugueses são de terracota e enquanto que os napolitanos têm um carácter mais laico, representando cenas do quotidiano, porquanto são sobretudo uma arte cortesã, os presépios portugueses são mais narrativos, integrando cenas bíblicas como a Anunciação, a Matança dos Inocentes e a Fuga para o Egipto, porquanto são sobretudo uma arte de instrução e difusão da fé.
No século XIX assiste-se a um progressivo declínio, que é possível que se fique a dever, segundo Arnaldo Pinto Cardoso em “O Presépio Barroco”, aos custos elevados da sua montagem, às Invasões Francesas e à extinção das ordens religiosas, em 1834, que eram as principais encomendantes juntamente com as grandes famílias. Surgiria uma vez mais no século XX, durante a ditadura de Salazar, pela mão de António Ferro e o seu esforço, nunca igualado, na definição do país, através precisamente de uma visualidade, a que se vem juntar o Presépio. É Ferro que, na Vida e Arte do Povo Português (1940), descreve Portugal, com uma mestria imagética quase táctil, como um “grande presépio” e o torna um objeto pop.
O gosto doméstico havia de permanecer até aos dias de hoje, por via das emoções que o Presépio produz sobretudo nas crianças, “eternas guardiães do que merece sobreviver”, segundo Giorgio Agamben, sendo ainda hoje possível adquirir figurado de barro, sobretudo o de Barcelos, em feiras, mercados e lojas “de nostalgia”. É esse presépio português, a que chamei de “doméstico”, mas que se pode também designar de popular, aquele que está mais próximo do gesto inicial e iniciático de São Francisco de Assis, não por acaso o patrono dos animais.
Objeto dialético e palimpséstico
É difícil acreditar que Walter Benjamin, que passou uma temporada em Nápoles e era fascinado por globos de neve (que, segundo Theodor Adorno, ele colecionou), nunca se tenha deparado com os fascinantes presépios napolitanos na Via San Gregorio Armeno, também conhecida como o coração da arte dos presépios. Inclusive, outros alemães famosos que se apaixonaram pela cidade italiana, como Goethe e Humboldt, neles são retratados como certa vez mo mostrou Manuela Ribeiro Sanches. Porém, num texto escrito com o seu grande amor, a jornalista soviética Asja Lacis, Nápoles é descrita como um “labirinto poroso” que desconsidera o tempo e o espaço e onde a “linguagem dos gestos vai mais longe do que em qualquer outro lugar de Itália” (1925). Em certo sentido, a sua descrição vívida de Nápoles, tal como a de António Ferro sobre Portugal, ecoa a de um presépio dialético e palimpséstico.
Assim como os globos de neve para Benjamin, o Presépio, é então uma “dialética suspensa”. Por um lado, des-historiciza a experiência das continuidades temporais; por outro, é uma estrutura messiânica que se reafirma na sua natureza morta (imóvel), abrindo a história para algo fora do tempo cronológico (e bem sabemos que esta precisa de ser aberta). Giorgio Agamben, em “Fábula e História: Considerações sobre o Presépio”, desvenda precisamente, numa análise que muito deve ao pensamento de Benjamin, a natureza cairológica do Presépio, que permite aprofundar a sua dimensão dialética e palimpséstica:
“Não há como compreender o presépio se não se compreender, antes de mais, que a imagem do mundo que ele apresenta em miniatura é uma imagem histórica. Pois o que nos mostra é o mundo da fábula precisamente no momento em que desperta do encantamento para entrar na história (…). No centro da intenção figurativa do presépio não está um acontecimento mítico ou, menos ainda, um acontecimento espácio-temporal (isto é, um acontecimento cronológico), mas um acontecimento cairológico. É na sua essência uma representação da historicidade, que se dá no mundo através do nascimento messiânico. Assim, na sumptuosa e infinita proliferação de figuras e episódios, em que a cena sagrada original está quase esquecida e os olhos se cansam de procurá-la, todas as distinções entre o sagrado e o profano caiem, e as duas esferas ligam-se na/pela história” (1992).
Imagem do mundo em miniatura, o Presépio é para Agamben uma “imagem histórica” e, ao mesmo tempo, um momento de transição que liberta a história da cronologia e a abre ao tempo cairológico – o tempo oportuno, providencial. Esta leitura do Presépio permite ainda compreender a relação entre o homem e o animal, pois é o “gesto histórico” que os separa, segundo o filósofo. Não por acaso o Presépio está repleto de animais, em relações ambíguas, outras subalternas e outras ainda de grande violência (lembrar aqui que a matança do porco é uma cena recorrente dos grandes presépios barrocos portugueses, mas não dos domésticos – nesses os porcos correm livres e a relação entre humanos e animais é mais ambígua se não mesmo igualitária).
O Presépio como modo de ver
Não é preciso ser católico ou ser criança para se deixar enredar por este fascinante objeto – “teatro do mundo”, de contemplação, de meditação. Até porque, à exceção de São Mateus e São Lucas brevemente, apenas os Evangelhos Apócrifos dão mais detalhes sobre a Natividade, em particular o de Pseudo-Mateus também conhecido – et pour cause – como Evangelho da Infância, sua principal fonte iconográfica. E, afinal, o Presépio tem uma mensagem para todos e todas nós. Aquilo que se supõe ser apenas a imagem do momento sagrado do nascimento de uma criança (que como toda a criança e todo o nascimento são sagrados) – um momento que tudo paralisou e silenciou e que os presépios domésticos portugueses vieram rodear de pormenores pictorescos na sua dialética palimpséstica – é afinal também a imagem de um evento cairológico (do vínculo), areia na engrenagem do tempo cronológico (da produção), e sem o qual não se faz a história. Por isso, e também, o Presépio doméstico português é um modo de ver, ou seja, um dispositivo que nos permite não só aceder ao advento histórico, mas à vertigem de todos os adventos da história. Por exemplo, a propósito de caso recente que tem feito as parangonas dos jornais nesta última semana do ano, o Presépio enquanto dispositivo permite ver que, à semelhança das suas figurinhas, os protagonistas da política são insignificantes; o que é significante são as relações que tais protagonistas estabelecem uns com os outros. E que os seguram ou fazem cair.
Há uns anos, enquanto montava o Presépio, a compreensão da sua natureza dialética e palimpséstica finalmente me atingiu num relampejo, como para Benjamin devem ser as “verdadeiras imagens”. Ao confrontar-se com minhas angústias formais e temporais a respeito do Presépio – o seu anacronismo, afinal – o meu avô respondia-me sempre: “é assim que a história é e sempre foi!”. Levei uma vida, e precisei de um doutoramento, para entender o que o meu avô Joaquim me queria realmente dizer. Essa memória da história é afinal a mensagem do tosco Presépio doméstico português, atualizada ano após ano, e que igualmente não tem de separar humanos de bichos.
DEDICATÓRIA: Dedico este texto, cujo esboço foi escrito no Natal de 2016, ao meu querido avô, Joaquim da Silva, com quem construí tantos e tão sofisticados presépios.