Lá sou amigo do Rei

18 ou 19 ou 20 horas depois, o meu autocarro chega a Luanda. Acordo com o movimento de pessoas a roçar-me as calças, na tentativa de abrir passagem no corredor do autocarro. Muito silêncio em Luanda, escuridão ainda, as pessoas não demonstram, entretanto, a agitação do costume. Filas grandes. Isso acaba onde…? O que querem essas pessoas? 

Pára um autocarro, corridas, enchente na porta do veículo, gritos, xingaria para os ouvidos do cobrador, a agitação começou, a calmaria durou quase nada. Saco do telefone, 04h37, a esta hora já…? Luanda é uma cidade que madruga! 

Gente já com ar de disposição, agitada, muito agitada, outros, em posição mais resignada, obedecem ao que vai orientando a fila. Senhoras bonitas, bem apresentadas, com pastas coloridas nas mãos, também iam no meio dos empurrões (mais um espanto. Não liguem, provinciano assustado. Deve ser do sono. Na minha cidade, a esta hora ainda estamos a dormir). Olho para uma pessoa que chega lá ao fundo, vê-se, vem de camisa branca, umas calças cinzentas, sim, fácil de ver, está perto do candeeiro montando num poste de iluminação pública. 

Passamos rápido por essa imagem. A fila continua, outra, para outro transporte. Finalmente vem-me a luz, Luanda é uma cidade mergulhada no caos do transporte público, com um trânsito entulhado nas horas de ponta. Seguimos, outras muitas pessoas à beira da estrada devolvem-me um olhar estranho. Começo a me sentir mal, como se estivesse a usufruir de um privilégio retirado às pessoas que vejo. 

Continuamos pelo retângulo do Benfica, oh, agora o meu olhar já é muito claro, o trânsito menos denso. Há também menos gente na berma da estrada. Seguimos, portanto, mais avanço, outras paragens mais adiante, depois, a zona do Futungo. Conheço bem a zona, boas memórias, da última vez que aqui estive, há dois meses, tinha quinhentos kwanzas a mais no bolso, enquanto esperava que o meu irmão viesse me apanhar, copiei metade da ficha de um puto fezadeiro nos jogos de apostas desportivas, muito na moda em Angola, juro, o puto gabava-se dos seus ganhos muitos ganhos. A minha metade entrou. Ganhei 38 mil kwanzas, numa combinação de 6 jogos, o último foi um jogo do campeonato de Espanha, Girona vs Valencia, ganhou o Girona. Caio o dinheiro que me pagou uns tantos funges com aqueles carapaus bigs, grelhados,  que ultrapassam os lados do prato. 

Luanda é mágica, em se tratando de comida farta. Servem-te comida para dois dias, almoço e jantar numa só refeição, em duas ou mais tigelas carregadas de funge, óleo de palma, cebola picada com cubos de tomate verde e maduro, se quiseres umas cucas geladas, as senhoras que te servem ficam muito mais contentes. É pá, é a terra dos excessos. Acorda cedíssimo e exagera nas outras coisas. 

Salto numa zona em que se apanham motas para o Talatona. – É yow, kamone1. – mô king2, mô faray – Jah bless. Me leva aí para aquele ministério e quê e quê e tal - saco do papel com o endereço e mostro ao dono da mota. – conheço, mô king. – granda kamone, baza. - O capacete, Rei…? – Gira. – aperta só aqui e está fofo. – Baza, baza. 

O dread acelera, ultrapassa todos os carros numa velocidade que me assusta. – eh yeaw, kamone, ainda é cedo, vamos só devagar. 

- Calma só, papoite. Está controlado. 

Chegámos. Preço acertado, cada um para seu rumo. Dois punhos fechados, um toque. - Até à próxima, mô king. - Boa sorte, mô kamone. Os dois punhos voltam fechados e batem duas vezes no peito de cada um como se estivesse combinado. Há um kota seguras que nos assiste todo movimento. 

- Kota, é pah, estou a chegar da minha província, não sou daqui. Como faço? Tenho uma audiência. Preciso só de usar uma casa de banho e quê. O kota mede a minha determinação. – É pá, fala aí com o meu boss. – É yeaw, Boss, a situação é essa, uma pilha, please. - Okay, vem comigo. 

Entrámos num cubículo, talvez com 3m2 no total. Era a guarida do pessoal da segurança. Depois desse primeiro espaço, havia uma outra subdivisão com um balneário asseado, fresquinho. Uma sanita, um lavatório com um espelho pendurado, tudo apertado mas dava jeito. O Boss abre a porta, entro, demoro uns tantos minutos e saio, rastas soltas para marcar posição na audiência, uma camisola sem nada de especial, umas calças que são quase fato de treino e umas sapatilhas normais, de fardo, para dar sorte. Sou, pela aparência, um candidato a hippie, mas não há makas, confio nos argumentos do verbo, ahahahha.

- Mô kota, muito obrigado, valeu. 

– Kassule, vai bem. 

Bazo para umas barracas já abertas. Sopa. – Hey, mamã, aqui o meu café, deixa só ferver um coche, depois está tudo bala. - Okay. Fervura. 5 minutos later, uma chávena, cheiro fixe. – Tem açúcar aqui, ó faray. - Not. Não precisa, baza assim mesmo. 

Começo a sentir o calor da sopa a misturar-se já com o do café. A minha camisola começa a deixar formar uma mancha húmida entre a gola e o peito. Ao levantar, sinto a camisola colar-se à cadeira. É a Luanda do calor. Não importa se é de manhã ou se é mais tarde. Fico mais um bocado para ver se fico com melhor aparência. Deixo as coisas acalmarem. 

Volto para o edifício. Espera, espera. Abre-se a porta principal, tenho acesso ao elevador e à frescura do ar-condicionado. Sou dos primeiros a chegar. Alojo-me num sofá preto. Espera e mais espera, tensão, ansiedade, sono. Pisco, cabeceio, tenho a mão direita aberta a aguentar a cabeça, apago por uns minutos. – Bom dia, Senhor. Está a dormir…? Em que posso ajudar…? – Explicação, blás, blás e blás e portantos e portantos, o chefe… os documentos, o visto, - añh okay. 

Esperas… 

Lá veio o chefe, todo formal, ar lá pra cima, mas bem cordato. - Oh, Doutor, bom dia - aperto de mão – em que posso ajudar? 

Entro para o gabinete, bonito, sumptuoso, com cheiro de à detergente fresco. – Doutor, explique-se lá então… – É assim, preciso dos documentos, o visto, o visto, o doutoramento, e mais umas e outras vírgulas. 

Esperas, esperas no gabinete, depois naquele hall que tinha o sofá preto. Lembram-se..? 

– Aqui está. Pode ir, Doutor. 

Sigo. Outra mota até à Multiperfil (paragem) – é yeaw, mô king, são 1000 kz para ti. - É pá, desconta esse mambo. - Conversa mais conversa. - Tira já o 200 do táxi. 

Apanho o táxi, mudados agora os táxis de Luanda, não têm a barulheira do kuduro. Começam a crescer as conversas de táxi, à medida que avançamos por uma avenida. O cobrador começa a chamar nova rota, Mutamba, seguimos, eu nas contas das horas. O céu começa a ficar fechado, uns tantos minutos, passamos pela zona da Samba, montes de gente por todos os lados, coisas espalhadas pelo chão numas quitandas modernas, a ponte que dá para o Prenda, a subir, a subir, começa a se mostrar o grande edifício da Assembleia da Repúblico, sempre a subir, a ir dar à zona da Mutamba, com os prédios todos modernos e uma zona bem diferenciada. Ponto final da viagem, saco os 200 kwanzas e já está. 

Agora subir e subir uma encosta lixada que vai dar à Embaixada Portuguesa. Passo mais passo, suores a correrem-me pela camisola, subidas de suores, eu à procura de pontos de distracção para facilitar o domínio da encosta. Sobe-se, portanto. Mais à frente, uma senhora com um fogareiro em forma de roulote, ginguba torrada numas misturas com areia da praia. Uma descoberta que fiz, as senhoras de Luanda fazem a jinguba cozer com a temperatura da areia da praia para evitar que se queime. Mão no bolso, umas moedas que me sobraram de um gasto qualquer, jinguba com banana assada. Começo a me sentir um bocado kaluanda nessas misturas de sabores. 

Ando e vou dar então a uma fila muito grande à porta da Embaixada, um mar de pessoas em busca de ajustar os papéis para o visto. Tantas pessoas assim a quererem sair do país…? Aquela senhora tem um ar cansado de tantas vezes que limpa o suor que lhe salta da testa, o outro, um senhor em conversa com dois rapazes, os três com gestos ríspidos, devem estar desentendidos. Ganho coragem, vou, ultrapasso, muitas das pessoas que tenho à frente e chego ao senhor polícia que tapa a porta para impedir entradas sem autorização. - Bom dia, meu senhor. - Bom dia. - O visto e tal, o de estudante, os documentos todos aqui na capa de processo. – Para este teu caso é daquele lado, no outro edifício, sem marcações, sem essas enchentes aqui, é tudo directo. 

Salto para o outro edifício, o tal do tratamento directo das coisas, quase 13 horas já, e continuo nas pressas, directo para uma sala de espera, muitas, muitas pessoas, que vão chegando à medida que segue o tempo. Há um lugar com poucas pessoas onde se acumulam os estudantes que se prestam à espera, e lá estamos apenas cinco. Ponho-me já a conversar, a tentar saber do tempo que aí estão, do que tiveram de esperar até agora, se sabem de pessoas já atendidas. - Nenhum grupo ainda. 

Mal me chega a resposta, chega alguém com a informação que devêssemos descer os cinco, no seguimento de um grupo maior que se fez às escadas. Lá vamos. Há chuva lá fora e as minhas pernas a quererem fraquejar. Estou cansado mas sigo. Senhas, esperas, sono, um toque leve do companheiro ao lado, poucos minutos depois. - Hey, a nossa vez está próxima. Poucos minutos depois, o funcionário:

- Este e este e este documentos estão certos, o kumbú é X. - Não há makas. Pago uma parte em cash e outras duas por estes dois cartões. Eu a juntar os trocos e a pensar - Yes. Tudo resolvido. O funcionário, - É pá, falta aqui um documento que é muito importante, o da universidade que diz que estás matriculado neste ano lectivo – É pá, tenho este. – O que conta é outro, com a assinatura visível e tal e tal. – Tenho só no telefone - Baza aí para baixo e imprime rápido, enquanto fico aqui à espera. 

Saio disparado, perguntas e perguntas. Encontro a casa de cópias. – É pá, a coisa é assim, assim e assim, tenho no telefone, preciso de mandar para o vosso Whatsapp. – Aqui tens o número, manda. - Aqui vai. – confirmado. 

A moça que me vai atendendo revira-se na pressa, manda para a impressão e nada, nada que sai. Descoberta, a impressora está sem papel. – Moço, estamos sem papel. Tenho de ir comprar naquela loja ao fundo da rua e com essa chuva… 

Eu na minha súplica – meu Deus, dá para acreditar…? – É pá, não há nem papel de rascunho, um assim com um lado limpo? – Nada. Tenho mesmo de ir comprar. 

Olho para a moça, diligente até, a ver se encontrava o guarda-chuva, com muita calma nos movimentos todos. Eu tinha de sair a voar. – Moça, gira aqui o guarda-chuva, eu vou. Olho para a chuva, um arrependimento imediato, com essa chuva toda…? - Já me tinha comprometido. Tinha os olhares das pessoas na minha direcção, a elogiarem a minha atitude. – Manda para aqui o guarda-chuva e o dinheiro. Ela diz-me o preço e saio disparado. 

Ao sair da loja para a rua, nos primeiros passos ainda procurava os espaços para pôr os pés, consegui uns bons cinquenta metros, entre um e outro tropeço, depois, uma conduta nalgum ponto se rompeu, vi uma torrente de água agressiva a descer a rua. Entrei na loja a correr. Todos os fantasmas sobre aquelas imagens de dias de chuva em Luanda a voltarem rápido para a minha cabeça assustada. Entro para a loja, resolvo o mambo, tenho de sair agora, ir para o meio da chuva, na pressa. O horário já vai longo, se perco a oportunidade, complico tudo, mais uns dias em Luanda, não posso. 

Estou no meio da rua, de regresso à casa das cópias, uma mão no guarda-chuva e outra a apertar a resma de papel. Com a água que cobre toda estrada, não sei onde pôr os pés, encho o  peito e prossigo, tenho a água perto dos joelhos, vou mais para o meio da estrada, para fugir dos esgotos ou dos buracos no passeio, tenho de garantir que vou estar seguro, sem nenhuma lesão. Não há carros à vista, sou único por enquanto no trajecto que escolhi, estou a sofrer com essa água muito amarelada, a arrastar lixo de toda espécie. 

Eu a seguir, a tentar com força manter-me de pé, a arrastar os pés, pesados, e a pensar, se me virem assim, humilhado como me sinto, no meio desta chuva, não se esqueçam, lá na minha terra, sou amigo do rei, tenho cavalos para passear perto de casa, comida fresca dos campos e uma mulher que põe as mãos no meio das rastas. Juro-te o caminho ficou mais fácil!

Cheguei com as costas molhadas, os sapatos ensopados, as calças sujas, tiro a resma salta de debaixo do braço, encaro todo sorridente a moça que me atendeu, só a pensar, Lá sou amigo do rei3

30.12.2024

Braga, casa do sol 

 

  • 1. Kamone: (calão), forma de tratamento usada em meios informais, dirigida a uma pessoa (normalmente rapazes) com quem se quer manter uma relação de proximidade, equivalente a “meu amigo” - possibilidade.
  • 2. King: (calão) forma de tratamento usada normalmente para indivíduos com estilo rastafari, equivalente a Rei, na acepção rastafari. O mesmo que faray.
  • 3. Verso retirado do poema Vou me embora para Pasárgada de Manuel Bandeira.

por Zezé Nguellekka,
Cidade | 31 Dezembro 2024 | angola, emigração, luanda, Portugal, regressos, rua, transporte, visto