O corpo e os seus percalços
Recuperei há pouco a máquina de escrever de um antepassado. Como me doeram os dedos ao tentar bater nas teclas frases simples. Lembrei-me das primeiras cópias, dos primeiros ditados, dos primeiros cadernos de caligrafia. Recordei-me de que como foi difícil ao meu corpo, às minhas mãos, habituar-se à vontade própria da caneta, à dureza do lápis, ao capricho das curvas e pernas das primeiras letras. Mesmo que para poupar papel nunca deite fora manuscritos velhos e reutilize folhas antigas, quase ninguém tem hoje de se confrontar com o rio neurótico de emendas que é cada livro.
Agora que a maioria de nós escreve ao computador, ganhámos uma nova relação, intangível, com os nossos esboços. Muitas vezes, não nos chegamos a confrontar nem com uma pequena parte dos rascunhos que, no passado, encheriam a nossa casa de papel amachucado. O computador não veio transformar só a relação de quem escreve com a rasura — com o lugar dela nos textos e no quotidiano — mas também facilitou e transformou a relação do corpo com o acto de escrever. Esquecemo-nos de que escrever é uma actividade física, parente do acto de andar, de dançar, de nadar, de correr, como tenho ouvido a vários escritores.
A experiência com a máquina de escrever avivou essa memória. A força necessária para bater nas teclas, o confronto com o atrito e com a impossibilidade de voltar atrás, começaram por me exasperar. Mas, daí a momentos, o som das teclas, a noção de que o papel em branco se transformava por meio da força em texto escrito, o próprio cheiro da tinta (ou a ideia dele), as pontas dos dedos sujas de tocar na página fresca, a luz natural sobre a folha e a inestimável contiguidade entre a dor nos dedos e a folha dactilografada alegraram-me. A principal maravilha é precisamente esta contiguidade: a noção de que a dor que sinto nas mãos está a par do texto na página, de que estou no mesmo plano em que estão os borrões que ela apresenta, marca das vezes em que me enganei e tive de corrigir. No final, a folha dactilografada é não um arquivo imaterial, mas um elo tangível à história da escrita e à história humana a ela associada, como os daguerreótipos o foram nos primeiros tempos da arte fotográfica para os que, pela primeira vez, viram neles as suas caras. A folha escrita como extensão da pele, dos ossos, do corpo, eis o que a máquina de escrever sublinha e o computador obscurece.
Os escritores do passado deixaram-nos testemunho do exigente acto de escrever. Que surpreendente é hoje imaginar os livros que nos acompanham manuscritos ao longo de horas, dias, anos a fio, vislumbrar mesmo que só por momentos a difícil tecelagem da memória hoje sintetizada na prática do Copy / Paste. E, no entanto, apesar de hoje tantos de nós escreverem ao computador, anestesiados em relação à sujidade, logo esquecidos das emendas, escrever é mais parecido com andar, nadar, dançar e carregar sacos de compras do que com as coisas que não envolvem o corpo e os seus percalços: e é uma pena que corramos o risco de o esquecer, nos nossos escritórios arrumados, diante de ecrãs em branco, sem sombra do nosso rasto de papéis.