Ele estendeu-me a mão e fui
Não foi um passeio planeado: ele estendeu-me a mão e fui. Está um dia de Inverno com cara de começo da Primavera, domingo igual aos outros, excepto que hoje fomos passear pelo bairro. Não saía de casa há dias. Espantou-me a temperatura do ar, ao sair do prédio: não estava tanto frio como imaginei. A dona da Bessie viu-nos mal cruzámos o passeio e achou estranho não trazermos a cadela connosco. É uma senhora curiosa que, começando por ser a vizinha mais antipática e rezingona do bairro, se tornou a nossa vizinha mais gentil. Vimos o casal do primeiro andar, que aparenta estar à beira do divórcio, desde que deixou de abrir as persianas. O filho, menino dos seus nove anos, vinha à frente dos pais, com o olhar mais triste do país e os seus caracóis louros, celestiais. A temperatura namorou a minha cara, a aragem húmida, exalada pelo relvado diante do prédio, o sol nas folhas dos loendros, agora sem flor. Bebemos um café na esplanada vazia, tirámos duas ou três fotografias, antes de ele me estender a mão para irmos andar um pouco a pé.
É o bairro onde cresci, mas ele, que nasceu longe daqui, conhece-o muito melhor do que eu, tantas são as suas caminhadas. Troquei duas saudações de Ano Novo com um amigo com paralisia cerebral, perguntou-me o que ando a escrever agora. Vinha estremunhado, de camisola de lã cinzenta, coçada, barba por fazer, parecia ter acabado de acordar. Como será o seu domingo, pergunto-me agora? Igual a todos os outros dias. É o João, um dia disse-me que me queria ajudar, que queria ser meu amigo. Sempre que falamos, na minha dificuldade de entender as suas palavras, sinto que lhe falto, que o desaponto um pouco.
Ontem deitámo-nos tarde. Li as memórias de Tranströmer. Às duas da manhã, quando me sinto perdida, a sua rememoração do dia em que se perdeu da mãe em Estocolmo chegou-me como um sonho meu, que lamentei não ter visto concretizado:
“Uma vez, em meados dessa década de 30, aconteceu perder-me em Estocolmo. Tinha ido com a minha mãe a um concerto da escola. Na confusão da saída do auditório, a Konserthus, a minha mão desprendeu-se da da minha mãe.”1
Contei-lhe este episódio já na cama, antes de adormecermos. Ele contou-me que também se perdeu da mãe em menino, o que eu tinha esquecido. Desejei ter-me perdido também, o que nunca me aconteceu. Mas pareceu-me uma imagem da liberdade: uma criança que consegue encontrar o caminho de volta, no meio dos vultos de uma Estocolmo escurecida, entre o tráfego da hora de ponta e a indiferença dos adultos.
Noutro passo, Tranströmer fala daquilo a que chama “a arte de ser pisado conservando a dignidade”: “Quando ele”2, Hasse, um colega mais alto que se metia com ele nos intervalos das aulas na escola primária, “se aproximava, eu fazia de conta que O Meu Eu tinha voado para outro sítio e deixado ali um cadáver, um trapo sem vida que ele podia deitar ao chão à vontade. Acabou por ser fartar.”
Tranströmer continua: “Penso no que este método, de uma pessoa se transformar num trapo sem vida, terá significado para mim ao longo da minha vida. A arte de ser pisado conservando a dignidade. Não terei recorrido a este método com demasiada frequência? Umas vezes resulta, outras não.”3
“Sinto-me reflectida nestas palavras”, disse-lhe. Ler a pergunta de Tranströmer faz-me pensar na minha vida. Ele tirou-me daí a cabeça, pareceu-lhe uma ideia terrivelmente triste: “não quero nem gosto que te deixes pisar.” Adormeci comovida, a pensar na sorte de ter alguém que nos diz uma coisa destas, alguém que nos protege.
As palavras de Tranströmer já não estavam dentro de mim quando saímos esta manhã. Voaram para longe como o domingo, a ideia do domingo, voaram assim que começámos a percorrer a pé a Alameda. Vimos as azedas pelo chão, tão frescas que apetece apanhá-las de novo, como fazia em menina, e chupar as suas raízes amargas. Alguém deixara sacos de lixo pretos cheios de plantas secas sobre um grande buraco na grama alta, que depois os jardineiros da Câmara Municipal recolhem. Meninos brincavam no parque infantil, vigiados pelas avós agasalhadas. Ouvi passos atrás de nós, mas era só uma senhora de nariz aquilino e o seu caniche castanho a caminhar nas patas esguias.
Pude sentir o efeito dos passos alastrando-se pernas acima até à cintura e a borracha da sola das botas em contacto com a sola dos pés, marcando o ritmo da marcha. O ar no pescoço, que habitualmente trago tapado com cachecóis, o frio nas pontas do cabelo lavado e ainda húmido. Cruzámos a esquina mais triste do bairro, num cruzamento entre dois prédios em que não se percebe por que se plantaram tantas árvores, ali dispostas como fantasmas engaiolados.
Fotografei os prédios onde cresci, o que nunca fizera, procurei pela janela da casa dos meus avós, agora casa de outra família, janelas de onde cheguei a atirar grandes pedras, balões de água, copos de leite com chocolate e açúcar que me dava nojo beber em criança. Comprámos tabaco, pusemo-nos a caminho de casa, de novo na rua, pelo mesmo caminho.
“Não há razão para medo, nem é preciso coragem: vai cada um metido na sua vida”, disse-me ele. Em todos os carros, todos os comboios, todas as estações, nos cafés, nos hospitais, nos aeroportos, nos centros comerciais, nas grandes avenidas e nas ruas estreitas, cada um na sua vida.
“Lembro-me muito bem dessas caminhadas, sempre com vento, sempre com o nariz a pingar e os olhos a lacrimejar”4, relembra Tranströmer sobre a sua ida até ao Museu de História Natural, que visitava quando era rapaz.
“Não me lembro do caminho de regresso. É como se eu nunca voltasse a casa, como se só houvesse a ida, aquela caminhada com ranho e lágrimas a correr, cheia de expectativa, até ao enorme edifício babilónico.”5
Mas eu lembro-me. Ainda sinto a rua nas minhas pernas. Tenho os dedos das mãos no presente, coisa rara: a felicidade das ruas vazias, das passadeiras sem carros, o velho que nos olhou do outro lado da estrada e depois continuou caminho, a casa branca, de esquina, renovada e pintada de fresco, a rua curta que em criança me parecia mais longa e agitada do que a Fontes Pereira de Melo, com os seus cães de guarda a cada portão, mão na mão do meu pai, a caminhada depois de uma fiada de pinheiros, à procura da lagarta do pinheiro, que regressou ao bairro há semanas com as suas procissões belas mas venenosas, o banco de jardim vazio onde alguém pintou a spray duas manchas, uma azul, outra vermelha, as pinturas na parede que, morando aqui há cinco anos, nunca tinha visto: uma árvore com sapatos, uma garrafa aberta, a palavra liberdade escrita na parede, ninguém na rua e o alívio da sensação de que, sendo apenas eu nela, eu mesma me persigo, me abordo, me hostilizo, me agrido, nem memórias más nem medo, só as mãos dele ao longo do seu tronco, a inteireza do seu corpo ao lado do meu, carregado com as máquinas fotográficas que de tão amadas me enciumam, a alegria nos seus olhos por sermos dois na rua, porque me conseguiu arrancar de casa, abrigo que me vai enlouquecendo de tanto me abrigar.
No fim do passeio, já perto de casa, sentados num banco, ele chamou-me a atenção para o céu muito belo: as nuvens pareciam aspiradas por uma boca invisível, também elas, como as pessoas com que nos cruzámos, abençoadamente indiferentes a nós dois, ao fumo do cigarro que acendi, à importância daquele momento para nós, as nuvens passando, somos uma ínfima parte de uma ínfima parte, apesar de toda a energia, dos nervos acesos, do medo, até da nossa alegria por estarmos vivos e juntos, ao frio.