Um mundo mais parecido com uma biblioteca
Verdade, talvez Fidel seja hoje uma palavra para remorsos. Não posso jamais ganhar coragem para lhe abrir a porta. As palavras que mais me tocaram na missa desde menina: “Senhor, eu não sou digno de que entres em minha morada”. Nunca tinha pensado nelas assim. Pensando que, às vezes, é mais duvidoso que se seja digno de quem bate à nossa porta; pensando que ser o guardião da nossa morada significa muitas vezes ser mais atreito à cobardia e menos aberto à música da vida que os outros — os esfarrapados que nos batem à porta — nos trazem.
Numa casa nova, ouço barulhos atrás das paredes e no andar de cima, onde não mora ninguém. Não é preciso que sejam tempestades eléctricas: são as dobradiças que rangem, o soalho que dilata, o vulto, quem sabe, da velha senhora que aqui morreu após cinquenta anos.
Que sabia eu sobre o Fidel, quando ele me aparecia a más-horas, dizendo que o perseguiam? Só sabia que precisava de comida e abrigo e eu não abria a porta, pensando correr perigo. De facto, corria. No começo da quarentena, andei às voltas com o verbo ‘aventurar’. E se o fim do mundo tivesse chegado antes de me abrir à vida, de me aventurar, de perder o medo, de mudar de vida.
O mundo continua e a aventura está, meses depois, não em fechar mas em abrir a porta. O Fidel, morto querido, encapsula esse risco contornado para sempre, inalcançável. Batia à minha porta — e eu não abria. Mas quem perdeu fui eu.
Este Inverno fui abordada por um leitor numa livraria: disse-me que a literatura escrita por africanos é uma literatura de nicho, de gueto. Passei a Primavera a remoer as suas palavras. Falaria ele de gente como Fidel, personagens de nicho apenas num dos centros possíveis do mundo? Onde é preciso que seja o centro para Fidel, por ser Fidel, ser um subterfúgio, um homem de segunda, cuja vida não abarca a totalidade da experiência humana?
Era pobre e, desde o começo, homem secundário e dispensável. Mas será que o leitor se referia ao seu aspecto físico ou à totalidade da sua percepção da realidade? Ao bairro onde Fidel vivia, ao seu quotidiano e indumentária, condição social, cor de pele, ou a outra condição limitadora? A Primavera não chegou para explicar a mim mesma por que razão as dores de Fidel, os seus medos, os amores de Fidel, os seus anseios, são dores, amores, anseios de segunda — anseios, medos, dores e amores com um grau inferior de generalidade ao da gente que costumamos encontrar dentro dos livros a que chamamos romances.
Remorsos leva-os o vento, mas não é o Fidel que não pode jamais voltar a bater-me à porta. Sou eu que nunca mais a poderei abrir e estar à sua altura e à altura dos meus fantasmas.
Só existem personagens de segunda num mundo em que existem pessoas de segunda. Pela mesma razão, nem sequer as expressões literatura negra ou asiática ou ocidental têm, para mim, qualquer utilidade. Existem livros que contam histórias de pessoas, histórias humanas. Pouco me importa a cor de Fidel ou a cor de quem quer que me apareça dentro de um livro — ou na rua.
Gostava de viver numa rua, numa cidade, num mundo, mais parecidos com o modo como concebo a literatura: um mundo mais parecido com uma biblioteca, onde todos de quem se fala estão mortos ou a caminho disso (como todos estamos), pardos como os mortos, indistintos uns dos outros, como gente deitada à terra e comida pelos bichos.
Na livraria, dei razão ao leitor como se dá razão para desconversar ou terminar uma conversa. Era afável e inteligente, não o levei a mal. Achará ele que escrever sobre fantasmas é um exercício menor? Pessoas de um dia, que por aqui andaram e não nos deixam dormir descansados: ou porque lhes faltámos ou porque lhes valemos.