Senhora Ontem
Poucas coisas nos dão uma noção tão palpável da nossa mudança como escrever. O que dissemos ontem é hoje passado, não interessa mais, não nos revela. Só interessa viver pelo que está por escrever. É espantoso como somos tão pouco tolerantes para com as versões antigas da nossa sensibilidade, como estamos prontos a virar-lhes a cara como não viraríamos à pessoa que éramos ontem.
A escritora alimenta-se do futuro como uma insolente sem respeito por ninguém, mesmo quando só se roça em memórias.
A cara dos nossos textos de ontem, a sua voz, é descabida, inepta, ridiculamente grave, esganiçada. Não importa o que se tem para dizer, aquilo que se quer tentar perceber, mas que apenas amanhã seremos justos com o que somos hoje — valentes e livres como nos sonhamos.
Por isso é tantas vezes insuportável ler em voz alta ou regressar ao que se escreveu. A voz do ano passado (da semana passada; de anteontem) é burra ou amarga — e nós tão sublimadas, resolvidas, tão perenes agora.
Não importa o que se diz sobre a busca e a descoberta de uma voz contínua e distinta. Aquele velho texto de há dois dias ressona como uma velha rouca aos nossos ouvidos jovens de amanhã. Revela-nos, como um espelho implacável, que mudamos todos os dias sem darmos conta.
A mão corre atrás do minuto presente, aquele em que coincidimos com o mundo e com o que achamos que somos. E ninguém chega nunca, nem nós que o escrevemos, a conhecer esse futuro em que, por milagre, a nossa voz condiz com o tempo das coisas. Porque o mundo muda tanto como nós, e também ninguém o agarra.