O labirinto em que vivemos, por António Tomás
Tive, finalmente, a oportunidade para fazer uma visita à nova centralidade do Kilamba. O que penso sobre esse grandioso projecto urbanístico não me vai ocupar aqui neste espaço. O que me chamou a atenção foi o cenário que me pareceu ter sido montado para a inauguração. Como só um terço da obra estava concluído, o que se pensou foi cobrir as partes inacabadas com chapas metálicas, pintadas a várias cores, criando assim uns acessos por onde terá passado a comitiva da inauguração, e outros grupos de visitantes ilustres que lhe seguiram. Este corredor tinha cerca de dois metros de altura, e quem por ele passasse de carro só veria a parte de cima dos prédios. Quando fui visitar o Kilamba, há coisa de quatro semanas, já várias secções do tapume estavam quebradas. Por buracos então descobertos pelas chapas em falta já se podia ver o que tinha sido escondido à comitiva inaugural: uma cidade em construção atrasada, com grandes partes ainda por construir, os passeios partidos e sobretudo o entulho.
A cidade de Kilamba que deste modo podia ser observada, vista e apreciada, no dia da inauguração, com a sua racionalidade impecável, as suas estradas de várias vias, os seus prédios coloridos, foi recortada do resto, da parte ainda por fazer e pintar, do entulho. Este cenário era, pois uma espécie de simulacro. O alvo de tal encenação era menos as pessoas que lá acorrem no dia da inauguração, para as quais a cidade ainda tinha muitos dias de trabalho pela frente. Mas para quem só viu a inauguração pela televisão ou pelas fotografias nos jornais, o cenário montado não poderia deixar de ser mais eficaz. Este cenário da inauguração não era mero acidente, pois faz parte da forma como a nossa realidade tem sido construída pelo regime, o que tem sido sabiamente ampliada pelos órgãos de comunicação social “públicos”, tais como a TPA, a RNA e o JA.
Portanto, os meios de comunicação do Estado parecem hoje ter sido tomado pela lógica da comunicação institucional. Raramente oiço a RNA, mas sou um frequente leitor do JA e vejo de quando em vez os noticiários da TPA. Já não acompanho osnoticiários da TPA na esperança de saber qualquer coisa interessante sobre o país. O que mais meinteressa ver esses noticiários transformam informa-ção em propaganda. É como se, metaforicamente, todos os dias, em quase todos os seguimentos noticiosos, esses órgãos, nos fizessem percorrer os labirintos do Kilamba, onde só nos fosse mostrado o que eles quisessem que víssemos.
Angola tem, desde há um tempo a essa parte passado por uma crise de imagem, o que tem resultado na proliferação de gabinete e serviços, em todos os níveis do Estado, dedicado à “imagem”. Espaços como “Nação Coragem” e “Angola em Movimento” criaram escola e constituem hoje o essencial da linguagem de comunicação entre o Estado e a sociedade. E o resultado de todo este esforço parece que está à mostra. Hoje, há muito poucas formas independentes que ofereçam à sociedade uma imagem real do que vai pelo país. Quantas pessoas souberam por exemplo, que num determinado baldio, que não deve ter aparecido na televisão aquando da visita de uma individualidade estrangeira, viviam 500 famílias cujas casas foram destruídas 24 horas antes de tal visita? É certo que essas famílias receberam casas no Zango. Mas ainda assim é legítimo levantar a questão sobre até que ponto a deslocação dessas famílias tinha sido motivada mais por razões de estética, ou imagem, do que propriamente o seu
bem-estar.
Nas notícias do Estado tudo está bem. Pode haver problemas reais, como as faltas de luz, água, etc., mas tudo isso é enquadrado numa narrativa explicativa. É que houve guerra, lembram-nos, mas que o Governo está a trabalhar para resolver os problemas. Intenções são apresentadas como factos consumados. Uma visita de uma dignitária do Estado para anunciar um programa de luta contra pobreza pode consumir uma grande parte do noticiário da TPA, e ter mais destaques do que as notícias verdadeiramente do dia. Lá no meio do Jornal, então, uma pequena notícia sobre a oposição: que Isaías Samakuva esteve na aldeia tal e encorajou os angolanos a acorrer ao registo eleitoral. Ou ainda que Abel Chivukuvuku lançou um novo partido. Como em notícia tudo é questão de ponto de vista, o que interessa nas redacções do Estado é menos até que ponto a iniciativa de Chivukuvuku complica as contas de deputados para o próximo parlamento, ou que recomposição do xadrez político isso anuncia, mas a brecha de deserções que este partido pode abrir no seio da UNITA.
Os órgãos de comunicação social podem prestar um grande serviço ao Governo. Mas contribuem para exclusão da sociedade na resolução das questões sociais. Porque falham aí onde deveria estar o seu objecto, que é servirem de veiculo para a circulação da conversa nacional. Ou seja, servirem de mostruário da pluralidade da sensibilidade nacional. Porque há quem pense que democracia é estar sempre de acordo; mas a história tem mostrado que democracia é precisamente o contrário: estar em desacordo a ainda assim construir as bases para uma vida em comum. Enquanto insistirem os meios de comunicação do Estado em nos colocar nesse labirinto, estarão eles muito longe de contribuir para a democracia no país.
Antonio Tomás, crónica Trocando em Miúdos, Novo Jornal, 23 Março 2012