Cabo Verde, movimentos sociais e pan-africanismo

A historiografia cabo-verdiana mostra que a história arquipelágica se confunde com a história de resistência cultural e política e de revoltas (Vieira 1986; Silva 1996, 2001, 2005; Carreira 2000 [1972]; Mascarenhas 2014; Pereira 2015). Assim, pensar as vagas dos movimentos sociais em Cabo Verde na esteira dos trabalhos de Aidi (2018) e Mueller (2018) obriga-nos a buscar os antecedentes históricos num arquipélago marcado pela luta de integração étnico-racial e de intermediação (neo)colonialista (Anjos 2000, 2013; Semedo 2006; Fernandes 2013).

Marxa Cabral, 2020Marxa Cabral, 2020

Por um lado, a auto-libertação dos escravos e a edificação de comunidades autónomas espalhados pelos cumes das montanhas e vales profundos de difícil acesso, denominadas por eles de djulangues1 (Silva 2001, 2007; Santos & Rebocho, 2018) podem ser vistas como o primeiro prenúncio de resistência cultural africana contra o sistema colonial esclavagista. Por outro lado, a tentativa de integração como auxiliares na gestão do sistema iniciado ainda no século XVI (Fernandes 2013), por aqueles que viriam a especializar-se no ofício de captura dos escravos auto-libertos em Santiago. Posteriormente, em São Vicente, essa integração foi tentada com a construção da identidade atlântica (Anjos 2000, 2013; Fernandes 2013). 

Integração e intermediação

Estas tentativas de integração e intermediação indicam, pois, a postura ambivalente da elite cabo-verdiana. A mesma elite que vai ter um papel preponderante na reprodução do Estado burocrático racista colonial no pós-independência (Varela 2017), em que, sustentado pelas teorias da Escola da Modernização, constroem o Estado nacional e consolidam a mestiçagem enquanto identidade de todos os cabo-verdianos, marca identitária e civilizacional que o diferencia dos outros povos africanos2.  

Antes, Vieira (1986) aponta os eventos de 1835 como o que poderia ser percebido como primeiro esforço para a independência do arquipélago, com a tentativa de escravos e forros, instigados por homens do círculo da governação, na tomada de posse de Santiago (Carreira, 2000 [1972]). Isso criou no imaginário da elite colonial e nativa o receio da ilha poder vir a transformar-se num segundo Haiti. Em São Vicente, no final desse mesmo século, a crise carvoeira faz despoletar o embrião de um movimento social operário, liderado pela elite intelectual, em que a questão de autonomia da ilha foi pela primeira vez colocada em discussão pública (Silva 2005). 

Esses fatos indiciam que, entre o século XVI e a primeira metade do século XX, o arquipélago foi repleto de revoltas e indignações populares, espelhadas quer nos movimentos dos escravos auto-libertos transformados em seguida em movimentos de campesinato nas ilhas de Santiago e Santo Antão, quer no movimento operário mindelense e mais tarde nos movimentos urbanos político-literários e identitários (Mascarenhas 2014).  

Seguindo a lógica teórico-construtiva dos movimentos sociais africanos apresentada por Mueller (2018), diria que esses seriam as heranças que antecederam a primeira vaga dos protestos anticoloniais cabo-verdianos, materializado nos anos de 1950 com a criação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e o desenvolvimento das suas ações políticas e militares, assim como a prática subversiva ambígua de alguns líderes religiosos nesse processo (Varela 2011). 

Essa primeira vaga fica marcada pela passagem das ideias à prática do projeto do movimento pan-africanista emergida no século XIX, com o objetivo de unir os negros africanos e seus descendentes no combate ao racismo e à subjugação política, fruto do sistema colonial esclavagista. Embora a primeira geração de ativistas que construiu as bases do pan-africanismo tenha sido formada por intelectuais de tradição epistemológica ocidental (Barbosa 2012), contribuíram significativamente para a recuperação do conceito racializado do sujeito africano, assente em caraterísticas como dignidade, valorização própria e solidariedade negra (Mueller 2018). 

Sob a liderança de Henry Silvester Williams, a então recém-fundada Associação Africana organizou o primeiro Congresso Pan-africano em 1900, continuado nos anos de 1919, 1921, 1923, 1927, 1945 e 1970, sendo o segundo e terceiro Congresso organizados por W.E.B. Du Bois3, após ter-se destacado no primeiro, ao proferir a declaração final (Benot 1981 [1969]; Barbosa 2012; Adi 2017). Contudo, é de notar a fraca presença de intelectuais africanos e sul-americanos nos primeiros Congressos, fato explicado por Barbosa (2012) pela inexistência de redes de contato entre os intelectuais negros dessas regiões com o centro de produção intelectual negra da época, os EUA. No caso cabo-verdiano, como indica Semedo (2006), alguns nativistas, considerada a primeira geração nacionalista cabo-verdiana, surgida nos finais do século XIX, já se consideravam ativistas pan-africanistas e tinham participações em publicações organizadas pelo movimento sediada em Lisboa4

Cabo Verde, fruto da ligação estabelecida pela emigração para os EUA, iniciada no século XIX e a influência da maçonaria norte-americana no movimento nativista cabo-verdiano (Semedo 2006), fazia parte dessa rede. Talvez por isso, podemos falar de uma certa influência do pan-africanismo dos EUA dessa época no arquipélago. É de lembrar que esta primeira geração pan-africanista emerge contra a subalternização do negro na sociedade norte-americana e, no plano internacional, “postulava que os negros estadunidenses deveriam guiar os africanos para a civilização”5” (Barbosa 2012: 136). A mesma fórmula do nacionalismo luso-crioulo defendido nas ilhas (Fernandes 2013), radicalizado mais tarde pelo movimento claridoso, visando a busca do reconhecimento português, inventando para isso a personalidade mestiça. É, aliás, possível identificar na tese da mestiçagem nativista, a dupla consciência teorizada por Du Bois (2007 [1903]), importada da dicotomia clássica da filosofia alemã (cultura x civilização) (Barbosa (2012), em que apresenta a personalidade negra norte-americana como alguém que vivia o dilema identitário entre a comunal (negra) e a nacional (norte-americana), entre a busca da especificidade e a integração no ocidente. 

Rede pan-africanista

Foi, entretanto, apenas no Congresso de 1929 que foi estabelecido a necessidade de se criar uma rede pan-africanista espalhada pela África, América, Caraíbas e Europa (Adi 2017), impulsionando dessa feita duas correntes: o pan-africanismo continental africano, que viria a constituir-se na frente mobilizada de unidade dos Estados e povos de África; e a diáspora pan-africana, que retinha ideais do pan-negrismo ligados à solidariedade entre negros e afrodescendentes, fora do continente6 (Ayittey 2010). É, a propósito, no seio da intelectualidade diaspórica, com o caribenho Edward Blyden, que nasce a ideia da personalidade africana. 

Sua teoria buscava fundamentar a ideia de raça dando-lhe um enfoque cultural, enquanto especificidade de um povo, de uma circunstância histórica. No seu entender, a personalidade africana seria o caminho específico do negro (africanos e afrodescendentes) à civilização universal (…) foi um dos primeiros intelectuais a dizer que as sociedades africanas ancestrais tinham valores civilizatórios, como à importância que davam a família, a vida coletiva e ao uso comum da terra e da água (Barbosa 2012: 137).    

Esta ideia surge em Cabo Verde com Cabral (2013 [1970]; 2015 [1963]), quando apela os cabo-verdianos para a (re)africanização dos espíritos e das mentes, como forma de reconquistar a sua personalidade africana, esquecida pela força do poder simbólico colonialista missionário português via processos de assimilação e aculturação. 

Cabral por Vhils, 2019Cabral por Vhils, 2019

Antes, foi precisamente essa ideia que serviu de base ao princípio da unidade entre os povos africanos, levando ao desenvolvimento do movimento Back to Africa, liderado por Marcus Garvey, reforçando o nacionalismo africano e fazendo do Congresso de 1945 um marco para a luta de libertação africana (Nkrumah 1963) e de unidade política da África ocidental (Benot 1981 [1969]), fórmula seguida mais tarde por Amílcar Cabral, aquando da edificação do projeto de frente comum de luta entre Guiné e Cabo Verde, como deixa transparecer Graça (1998). 

É de referir, porém, que a partir dos anos de 1960, as atenções dos Congressos Pan-Africanos centraram-se na questão da luta política para as independências, remetendo para o segundo plano as questões ligadas ao desenvolvimento económico dos territórios, facto que só começou a revelar-se pertinente com as sucessivas independências. Nesse contexto, começaram a surgir as primeiras tensões sobre o futuro do movimento integracionista continental7 (Asante 2010). Uma dessas tensões surge ainda em 1959 com a publicação de um texto da Fédération des étudiants d’Afrique noire en France (Benot 1981 [1969]), em que chamam a atenção para o erro estratégico em propor uma simples solidariedade racial que poderia vir a transformar-se em chauvinismo. Para esses estudantes, era uma forma errada de colocar o problema, uma vez que a luta não se situava ao nível das raças, mas ao nível de exploradores e explorados. Dessa forma, o pan-africanismo corria o risco de vir a ser utilizado pelos diversos imperialismos, o que realmente acabou por vir a acontecer. 

O projeto pan-africanista bi-nacional Guiné e Cabo Verde também viria sofrer tensões. Medeiros (2012) afirma que o maior erro de Cabral foi ter insistido na unidade racial de dois povos culturalmente diferentes um do outro. Alías, como observa Tomás (2018), o entendimento que Cabral tinha da cultura estava ligado muito mais à sua biografia pessoal, do que a uma ideia de nacionalismo capaz de dar conta da realidade étnica bissau-guinnense. Igualmente, a ideia de unidade cultural entre os dois povos, embora estratégica, estava longe de corresponder a sua visão idílica, visto que Cabo Verde e Guiné-Bissau ocupavam uma posição hierárquica diferenciada no contexto do colonialismo português. Convém lembrar que ao cabo-verdiano, não obstante o desprezo luso, nunca foi submetido ao Estatudo do Indiginato. Portanto, estes, mais o fato dos bissau-guineenses não terem sido integrados no governo do arquipélago, ao contrário do que aconteceu com os cabo-verdianos na Guiné-Bissau, são apontados como umas das prováveis causas que levaram ao seu assassinato em 1973 e a rutura da unidade dos dois países, desencadeado pelo golpe de Estado, em 1980 (Lopes 2013 ; Tomás 2018). Isso na sequência das profundas divergências surgidas no interior do movimento pan-africanista cabo-verdiano (Lopes 2012). 

Como mostra António Tomás, embora Cabral seja, em certa medida, um teórico pós-colonial agindo numa situação colonial e ainda que seja considerado o último grande e mais respeitado combatente da liberdade, é certo que “desenvolveu as suas ideias acerca da necessidade de luta armada no momento preciso em que elas perdiam a sua capacidade transformadora” (Tomás, 2018: 57). Desse modo, como aponta o autor, é só através de uma crítica pós-colonial das suas ideias, com base no método a que chama de dialética da pergunta-resposta e, não apenas na sua apropriação mítica (Amado 2012; Silva 2014), se consegue compreender os desafios do nosso presente e a pertinência do seu legado, continuado nos primeiros anos da independência e retomado hoje, sob o lema “a luta continua”, por jovens e movimentos (Barros & Lima 2012, 2018) que se auto-intitulam seus filhos e netos ideológicos.  

Biografia

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  • 1. Palavra esta originária da região dos rios da Guiné, mais concretamente do povo mandinga oriunda da Baixa-Guiné.
  • 2. Mutzenberg (2015) identifica, no período pré e pós-independência, três Escolas concorrentes para a conceptualização e orientação das experiências africanas na construção dos Estados Nacionais. As outras Escolas foram a da Dependência e dos Modos de Produção.
  • 3. Hakim Aidi faz uma incursão histórica sobre os vários Congressos Pan-africanos, dos seus altos e baixos, como foi o caso da fase do Garveyismo e depois numa fase a seguir na década de 1930, marcado pela influência da movimento negro e do marxismo impulsionado por figuras como Aimé Césaire, Léopold Senghor, Léon Damas e Jeanne e Paulette Nardal, até o Congresso dos anos de 1970, em que muitos dos países africanos já tinham adquirido a sua independência.
  • 4. A capital portuguesa recebeu em co-parceria com Londres, no ano de 1923 o terceiro Congresso Pan-Africano.
  • 5. Estas ideias eram defendidas por Alexander Crummel que trabalhou por 20 anos na Libéria, onde pregou o cristianismo como fator de melhoramento civilizacional da raça negra. Devido ao seu caráter paternalista, essa ideia teve tanto muitos seguidores nos EUA como muitos críticos fora.
  • 6. Segundo Adi (2017), surge assim a corrente do pan-africanismo sob a liderança de Malcom X, conhecida como o movimento Black Power, que também acabou por influenciar o movimento sul-africano Black Conciousness Movement, liderado por Steve Biko. Com a fundação da Organização da Unidade Africana, no ano de 1963, essas correntes exigiram uma maior atenção do continente em relação à sua diáspora.
  • 7. O autor descreve muito bem que já em 1961, países como o Gana, Guiné, Egito, Mali, Marrocos, Líbia e governo argelino no exílio formaram o “Grupo Casablanca”, enquanto outras antigas colónias francesas, juntamente com a Nigéria, Etiópia, Libéria e Serra Leoa constituíram o chamado “Grupo Monróvia”. O Grupo Casablanca defendia uma forte união política, com o projeto Estados Unidos de África, apoiado pelos ideais de Kwame Nkrumah, como o pan-africanismo, socialismo e não alinhamento; já o grupo Monróvia defendia uma confederação mais flexível dos estados africanos, como soberanos e independentes, com base na cooperação voluntária no âmbito da economia e cultura, em defesa da integridade territorial e princípio da não ingerência nos assuntos internos de cada estado. É neste clima, que em maio de 1963 se fundou a OUA, com base numa federação de estados independentes e seriamente comprometidos em estabelecer uma extensa cooperação a nível continental.

por Redy Wilson Lima e Stephanie Brito Duarte Barbosa Vicente
Jogos Sem Fronteiras | 16 Março 2021 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, movimentos sociais, pan-africanismo, pos-colonialismo, sociedade